Pudovkin - Stanislavski e a sua importância para o audiovisual

 

Aproximadamente pelos anos de 1920, com o advento do cinema falado, a interpretação gestual e as expressões faciais diminuem em importância levando a um estilo de interpretação mais subtil. O que anteriormente fora necessário ser expresso com o corpo, agora poderia ser dito somente com palavras. E o que tinha de ser expresso com o corpo e reforçado com a palavra poderia agora ser percebido como redundante. Em 1952, o diretor, ator e escritor russo Vsevolod Illarionovich Pudovkin (1893-1953), que ficou conhecido pela influência que exerceu nas teorias de montagem no cinema, realizou um importante trabalho sobre o “Sistema” de Stanislavski.

O artigo chamado “Stanislavsky´s System in the cinema”, foi publicado na revista britânica Sight & Sound, pelo British Film Institute (BFI), e constitui um estudo minucioso sobre a técnica de Stanislavski adaptada para o cinema. Através dele pudemos entender melhor a razão que levou o “Sistema” a ser tão útil para os atores desde a época da sua criação até os dias de hoje. Para Pudovkin, o grande mérito de Stanislavski reside no fato de os resultados da sua análise teatral, escrupulosamente verificada pelo experimentação, terem produzido um número de princípios objetivos que podem servir a qualquer ator para construir uma metodologia, independentemente do seu temperamento ou talento individual (cf. PUDOVKIN 1952: 34). O escritor russo afirma ser necessário ter em conta que o princípio fundamental, subjacente ao “Sistema” de Stanislavski, consistia em que a arte fosse propriedade de todos. Propriedade no sentido de que qualquer pessoa, mesmo que não dotada de um talento especial, pudesse ter acesso à arte de atuar. Esta é a chave para compreender o compromisso de Stanislavski que continua a produzir resultados valiosos não somente na arte do teatro soviético, mas também na arte em geral e na arte cinematográfica em particular (cf. PUDOVKIN 1953: 34).

Relevante é o fato de, ao estudarmos o “Sistema” direcionado unicamente para o cinema, podermos compreender a amplitude do método que abarca toda a base do trabalho do ator, indiferentemente da linguagem para a qual atua. Pudovkin defende que Stanislavski queria criar um teatro realista[1], que fornecesse os dispositivos estéticos usados para decifrar o real, fazendo do teatro «a vivid reflection of life» (PUDOVKIN 1953: 34). Neste mesmo artigo, Pudovkin confirma que Stanislavski desenvolveu uma nova perceção da técnica, retratada em Minha vida na arte.

Neste livro, Stanislavski relata uma ocasião na qual os seus atores tiveram de representar numa sala muito pequena, determinando a necessidade de adequação do trabalho excessivo de gestualidade e de voz ao espaço. Tudo o que havia de mais subtil, como os subtextos[2], ganhou extrema importância, ao mesmo tempo que a intimidade não usual entre ator e espectador produzia um sentido de sinceridade que deu aos atores a oportunidade de se comportarem como na vida real. Pudovkin assegura que este fato mostrou a Stanislavski novas possibilidades de alterar as formas teatrais e transformar a performance do ator no palco de acordo com as exigências da realidade (cf. PUDOVKIN 1952: 35).

Do ponto de vista de Pudovkin, tal descoberta seria totalmente apropriada ao cinema, afirmando que a atuação do ator de cinema, aproximando-se tanto quanto possível do comportamento humano normal, fundiu-se por completo com a paisagem natural fielmente reproduzida na tela (PUDOVKIN 1952: 35). Porém Stanislavski foi muito criticado ao querer cercar as suas personagens de um realismo considerado supérfluo no palco. Esse realismo nas personagens está relacionado com a sua tentativa de criar personagens o mais próximo possível de uma vida humana, daquilo que está convencionado no tempo e na sociedade como real.

O “Sistema” de Stanislavski não foi simplesmente tomado de empréstimo pelo cinema pois, de acordo com Pudovkin, teve de ser desenvolvido em novas condições técnicas, mais ricas e mais complexas. Para isso tornou-se necessário ao ator criar uma fusão entre a personagem a desempenhar e a sua própria personalidade natural (cf. PUDOVKIN 1952: 36). O objetivo era criar um sentido de realidade que conquistasse o público através de um trabalho consistente e não por causa divina ou acidental.

Quando se refere ao “Sistema”, Pudovkin nomeia, como acima se viu, os tópicos designados por Stanislavski de “princípios objetivos”, e esta é exatamente a forma como Stanislavski os organiza nos seus livros, Preparação do Ator e Construção da Personagem, por exemplo. A primeira tarefa para alcançar uma interpretação próxima da realidade seria encontrar a simplicidade e a espontaneidade, exigência que Pudovkin também reconhecia, ao dizer que uma reprodução artificial do natural não era suficiente. Um dos principais objetivos de Stanislavski, observados por Pudovkin, seria a implantação de um processo a que chama “transmutação”, entendida como a habilidade de o ator transferir os seus pensamentos e sentimentos para a personagem, pensando e agindo como uma pessoa real. “Transmutação” pode ser identificado com “I am being”, outro conceito segundo o qual o ator deve abrir mão dos seus próprios pensamentos e emprestá-los à personagem, de maneira a que não haja quebra durante a atuação e cada momento seja parte de um “todo”. Opunha-se ao “as if”, pois o conceito de transmutação iria além do “agir como se fosse”, ficando mais próximo do conceito de “ser”. Neste ponto do trabalho a imaginação seria fundamental para o ator que deveria tê-la preparado anteriormente para que no momento da cena pudesse concentrar-se nas suas próprias emoções.

Há uma frase famosa de Stanislavski, citada por Pudovkin neste seu artigo, na qual diz “I don´t believe it!”, utilizada como um recurso para interromper o ator durante a sua fala, a fim de o levar a rever a vivência integral entre o que estava a sentir e o que estava a falar. Se o ator assumisse as emoções em vez de as disfarçar, elas iriam transparecer no seu olhar. Agora está-se no lugar oposto ao “as if”, visto que o ator não precisava de se preocupar em senti-las, pois o sentimento seria o reflexo desta criação imaginária. No teatro pode-se perder este pormenor da emoção, ao passo que tanto na TV como no cinema ele é essencial por veicular em conjunto as subtilezas das emoções.

Partindo do princípio de que os pequenos detalhes podem ser sempre ampliados no audiovisual, o público irá perceber exatamente o que a personagem está sentindo ou verá o esforço do ator “espremendo” a emoção para tentar expressá-la. Daí a importância da sua preparação e do treino constante para os momentos em que não haverá tempo para preparar-se, fato comum ao cinema e ao audiovisual.

Como indica Pudovkin, o valor científico do trabalho de Stanislavski reside na descoberta dessas conexões, na elaboração de métodos e na arte de utilizá-los para encontrar a técnica para o papel a desempenhar (cf. PUDOVKIN 1952: 40). A técnica não deve consistir em “erros e acertos”, mas numa sequência natural de sentimentos, gestos e fala. Este seria o caminho para uma arte próxima da representação da realidade, fundada basicamente num conhecimento completo da real natureza do comportamento humano.

 

 

1.4. O gesto e a ação física

 

Pudovkin tinha em comum com Stanislavski a busca pelo realismo na atuação, no sentido de propor a conformidade entre personagens e pessoas da vida real e especialmente no que concerne ao “gesto”. O gesto nunca poderia ser mais forte do que o sentimento, para não se identificar com o famoso “gesto teatral”, usualmente associado ao trabalho de Meyerhold. Note-se que o dito “gesto teatral” era observado nos atores que não haviam passado pela escola de Stanislavski, que tinha por principal objetivo ensinar os seus alunos a preservarem uma conexão real entre sentimento, movimento e fala. Pudovkin concordava que sem treino constante e imaginação criativa o método não poderia garantir sucesso a nenhum ator. Pudovkin procedeu ao estabelecimento de dois campos na “imaginação criativa”, um relacionado com a expressão externa de pensamentos e sentimentos em forma de “comportamento”, outro relacionado com o estado emocional. Com o “comportamento” seria relacionado um dos princípios de Stanislavski conhecido como “ação física”, descrita como uma ação ou movimento dirigidos por um sentimento ou pensamento. A ação física deve ser considerada o mais importante e decisivo elemento a ter em conta pelo ator no set de gravações. É através deste tipo de ação que o público poderá interpretar o pensamento ou o sentimento da personagem, por mais subtil que seja.

Pudovkin considera que o “gesto” deve estar diretamente ligado à emoção, entendido como expressão primitiva de um estado emocional. Afirma que, mal as emoções surgem no ser humano, o gesto inevitavelmente aparece e empresta à palavra o colorido emocional designado de entonação. Assim, para a entonação ser vívida e o gesto sincero deve ser verdadeira e diretamente evocados pelo sentimento (cf. PUDOVKIN 1952: 39). Parece ser sobre tal base que se define o caminho do método do ator no cinema. O princípio do método da “ação física” constituiu talvez um dos mais mal compreendidos, especialmente por aqueles que procuram um gesto para significar uma emoção. O processo, como refere Pudovkin, acontece de dentro para fora, em particular no cinema, pois se não há um pensamento ou um olhar que transmita uma emoção, a probabilidade do gesto não ter significado ou perder a sua importância é grande.

Pudovkin dedica uma parte do artigo ao relato da sua experiência com “não-atores”, ou atores “não-profissionais”. Aí revela a dificuldade quanto à perceção da diferença de trabalho entre aquele tipo de atores e os que conheciam e haviam estudado o “Sistema” de Stanislavski. Afirma que, assim que começou a trabalhar com “não-atores”, descobriu imediatamente que eles se deparavam com um grande número de dificuldades que ameaçavam destruir a verdade do seu comportamento (cf. PUDOVKIN 1952: 38). Essa verdade poderia estar relacionada com a coerência entre sentir e exprimir em conformidade com o perfil das personagens. Além disso, o ambiente e a presença das câmaras criavam uma rigidez que não conseguiam ultrapassar sem auxílio do diretor. A fim de libertar o “não-ator”, Pudovkin dava-lhe uma tarefa física simples para desempenhar no set e na qual ele ficasse totalmente concentrado. Esse método consistia, deste modo, em dar-lhe uma tarefa e nesse caso desapareceria aquela expressão de “sou um figurante” e criava-se uma nova vida, através de uma personagem credível. Desse modo o “não-ator” poderia estar a representar como se não estivesse. Era também notável para Pudovkin a diferença entre escolher um “não-ator” para um papel no qual ele só precisasse de desempenhar a si mesmo e criar uma personagem distante de si. A dificuldade residia no facto de o “não-ator” ter de imaginar um desejo para coisas que ele não sentiria na vida real e, consequentemente, não possuir as técnicas para desenvolvê-lo.



[1] «Realism may be no more than a set of technical responses to narrative constraints, both formulated to some extent according to the times and the pressures of social control» ( PAVIS 1998: 303).

[2] Algo que não é dito no texto, mas que pode ser percebido através da interpretação do ator.

Referência:

Pudovkin. Stanislavsky's System in the cinema. 1952. Disponível em http://www.unz.org/Pub/AngloSovietJ-1952q3-00034