Prova de fé

Na Idade Média nasceu uma expressão dizendo que a filosofia é serva da teologia. Para teólogos e filósofos medievais a filosofia ajudava a esclarecer a fé.

Hoje sabemos que, se existiu esse casamento, os cônjuges estão divorciados e cada um segue seu destino. A filosofia com suas indagações, preocupações e afazeres e a teologia continua justificando as práticas religiosas. Vez por outra se encontram na discussão e esclarecimento de algum tema espinhoso. É o caso da discussão atual sobre a fé.

Sabemos que a filosofia se detém sobre o conhecimento racional e que pode ser sustentado por argumentos racionais, lógicos e, consequentemente, coerentes. Sabemos que a teologia continua apresentando novos e mais profundos elementos que justifiquem os atos de fé, que esclareçam as posturas dos crentes.

Mas, nem a filosofia nem a teologia se ocupam com a produção da fé. As pessoas têm fé ou não. Tendo ou não, a filosofia se ocupa em explicar as implicações disso. Entretanto a finalidade não é aumentar ou ridicularizar a fé ou a crença de quem a possui. O que a filosofia se propõe é desafiar aquele que crê a justificar sua crença, a fundamentar seu ato de fé. Talvez para ajudar a evitar que o crente se deixe enganar por espertalhões que, sabemos de sua existência, aproveitam da singeleza e honestidade dos crédulos para tirar vantagens, principalmente financeiras. E, nesse ponto filosofia e teologia acabam se juntando, pois a função da segunda, como ciência do sagrado e das práticas religiosas, relaciona-se com o esclarecimento dos fundamentos da fé: Em que consiste? Como se manifesta? Quais são as posturas condizentes? Quais as repercussões da fé na vida cotidiana... mas sem a preocupação de fazer com que a pessoa acredite ou deixe de acreditar. A fé, dizem os teólogos é um dom, portanto independe do agraciado: ele simplesmente tem fé, que pode ser mais esclarecida em seus fundamentos.

Isso implica dizer que, tanto para a filosofia como para a teologia a fé refere-se a um ato que dispensa explicação. E isso por uma razão simples: se a fé for explicada deixa de ser fé, perde sua razão de ser. Portanto, hoje não se justifica a discussão patrística e medieval entre fé e razão. A fé (teologia) e a razão (filosofia) possuem objetos e objetivos distintos, embora se possam ajudar mutuamente, mas cada uma em seu campo específico de ação.

Disse isso tudo com dois objetivos: questionar algumas posturas de pregadores que anunciam milagres como elemento essencial para que alguém creia. Mas se a atitude de fé depende do milagre, que é uma demonstração, deixa de ser fé pois foi comprovada. O milagre portanto é uma prova. E se alguém depende da prova para ter fé, no momento em que for provado, não precisa mais de fé, pois a evidência da prova se impõe por si mesma.

E isso nos leva ao segundo objetivo: comentar a postura de Tomé e dos demais discípulos que viram o “mestre” após a ressurreição pascal. Jesus se manifesta aos apóstolos reunidos e amedrontados e lhes confere uma missão: anunciar ao mundo que ele havia ressuscitado. A aparição não tinha a finalidade de produzir fé, mas de conferir uma missão. Ausente, Tomé pede uma prova para crer. Quando o ressuscitado se apresenta diz ao incrédulo: “bem aventurados os que creram sem ter visto”.

Essa é a nossa questão: se a fé depende de comprovação ou dos milagres, é porque não existe fé e não existirá; se determinada igreja (por meio de suas lideranças) faz questão de usar os milagres para produzir fé... é bom tomar cuidado, pois pode ser que ali exista algum charlatão querendo ludibriar as pessoas.

Portanto é bom tomar cuidado com aqueles ajuntamentos de pessoas que fazem eloquentes discursos convidando a assistir alguma cura miraculosa. Não que não ocorram os milagres, mas não como prova do transcendente. O milagre é uma prova e a prova elimina a fé. E se alguma igreja insiste no milagre como pré-requisito da fé, desacredite dela, pois pode estar querendo apenas te ludibriar.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO