Confesso que não nutro grande simpatia pela Dra Fátima Campos Ferreira, nem lhe reconheço, sinceramente, grandes competências como moderadora de debates de grande dimensão. Contudo, tento abstrair-me desta minha pequena aversão, colocar na gaveta as minhas reservas e sempre que os temas do Prós e Contras me parecem ser prometedores e socialmente relevantes, vejo, ouço e escuto, com sentido critico mas também com toda a atenção. Tristemente o digo, salvo raríssimas exceções, a sensação com que fico no final dos debates é que estive cerca de duas horas a beber “copos cheios de coisa nenhuma”.

Assim sendo, perguntar-me-ão: porque vê?

Simples – vejo porque para ter direito ao contraditório a isso me obrigo – é uma questão de honestidade intelectual e sim, eu sei que é um termo em desuso e que já nem entra no vocabulário oficial, mas continua a ser um dos meus pilares de reflexão e posterior ação  quando é caso disso.

Mas voltemos ao dito programa. Poderia encontrar vários exemplos da fraquíssima qualidade e da superficialidade das abordagens, mas vou apenas referir os dois últimos debates  que vi : o dos professores e o desta semana , sobre violência doméstica. Depois de ver e digerir, a única coisa que se me ocorre dizer é : que pobreza meu Deus…

Eu sei que a senhora está num canal público e não se pode “esticar” porque arrisca-se a perder o emprego, mas a leveza e falta de assertividade, a falta de consistência e não sei se o medo, ou se a incapacidade de ir ao cerne das questões é confrangedora de tal forma que chego a colocar a mim mesma a questão, se sou eu que estou a ver mal, ou este programa é cada vez mais uma feira de vaidades, onde os convidados vão para ter os seus 15 minutos de fama porque podem expor os seus méritos nas abordagens que fazem das problemáticas em questão e nunca verdadeiramente para pôr o dedo na ferida. Normalmente as intervenções mais contundentes saem do público e não dos convidados e são rapidamente silenciados para que o “vírus” não alastre.

Vamos a dois exemplos para ilustrar a minha visão da coisa, que pode estar completamente errada, mas é a minha e assumo-a na íntegra.

No dia do debate sobre o problema da colocação dos professores, falou-se de tudo menos do essencial no problema da educação em Portugal. Para aguçar o apetite o programa começou com um “doce” – o diretor de um agrupamento ( do público, claro ) que teve a coragem de bater com a porta e disse porquê, e terminou com outro “doce”, com a intervenção de, novamente alguém do publico, que tentou colocar o dedo na ferida ao abordar a  não existência de paradigma educativo consistente e estruturado ,a não existência de um modelo e sobretudo a não existência uma escola virada para a sociedade, a não ser no papel. A apregoada autonomia das escolas é uma treta e nunca será uma realidade enquanto se “parirem” modelos educativos ao sabor das “paixões” ( ou melhor dizendo , dos “cifrões” ) e sempre numa lógica de conteúdos e não de competências.

Todo o resto do programa foi palha, alimentos de egos e propaganda pura e dura, de um sistema que se sabe estar errado, mas no qual se insiste de forma cega e surda.

 Se existe coisa que me choca, enquanto mãe e enquanto cidadã é a forma selvagem como é incentivada a competição entre os alunos nas escolas desde os primeiros anos, competição que raia a crueldade em muitos casos e é completamente alimentada pelos agrupamentos cuja preocupação fundamental é o ranking das suas escolas e não os cidadãos que ajuda a formar.

E por favor, não me venham dizer que a escola estimula e promove a criatividade a livre discussão das ideias e o questionamento porque, salvo raras e honrosas exceções que saúdo com a devida vénia até porque conheço alguns(mas) resistentes, isso não é verdade.

Na generalidade a escola formata e ostraciza os que ousam questionar e pensar – sei-o porque o vivi, enquanto aluna e enquanto mãe, mas sinceramente, prefiro de longe ter filhos que não foram quadros de “mérito” mas pensam e questionam o mundo em que vivem, do que serem uns vendidos ao sistema apenas para terem sucesso. Prefiro de longe que tenham sido castigados na escola por terem sido solidários do que por terem sido indiferentes ao sofrimentos dos outros; que tenham tido negativas por terem ousado por em causa a relevância pedagógica, social e humana de determinada abordagem, do que tenham ficado calados só para conseguirem a nota ao final do período que lhes permitiria estar entre os notáveis ( ocos e apáticos em muitos casos, mas notáveis porque “enquadradinhos” naquilo que a sociedade espera deles…).

Ora bem dir-me-ão vocês, mas o que é que isto tem a ver com a violência doméstica? E eu direi …muito mais do que aparentemente possa parecer. É uma questão cultural, de educação para a cidadania, de respeito pelo outro, na sua essência e na sua integridade física e emocional. A igualdade e respeito de género educa-se, de preferência desde bem cedo e a escola tem também um papel crucial nessa matéria, ou pelo menos deveria ter, na minha modesta opinião.

Infelizmente Portugal, apesar da enorme mudança de atitude sobretudo a nível legislativo, é um dos países do mundo dito civilizado, que durante séculos, não só legitimou a violência de género com fundamentação legal a suportá-la, como a alimentou, pela forma direta ou subliminar como recusava à mulher o estatuto de cidadã de pleno direito, não só no exercício do voto, como no acesso à educação, ao emprego e à forma como o seu trabalho era e é remunerado. A subserviência ao homem ( marido, companheiro, patrão ) faz parte da matriz sociológica portuguesa e não é por se criar legislação muito avançada que se mudam décadas de mentalidades que trazem a violência encrustrada no seu ADN.

O debate a que assisti na passada segunda feira , no dizer da moderadora e passo a citar – “ o maior e mais alargado espaço de reflexão sobre violência doméstica feito até hoje no nosso país “, deixou-me na pele o sabor amargo da traição às vítimas. A matriz do programa foi a mesma do que referi anteriormente – um painel cheio de altas individualidades, alegadamente a trabalhar em rede e em parceria no combate a este flagelo que só este ano já fez 27 vítimas mortais. Algumas vítimas deram a “voz”, a maioria de rosto tapado e voz distorcida, acompanhadas ou não de mecanismos de apoio como a teleassistência à vitima e o recuso às casas de Abrigo da APAV e da UMAR – vitimas à anos a viver uma “não-vida”.

Depois de os ouvir a todos, inclusive uma jovem vitima colateral de um histórico familiar de violência sobre a mãe, que felizmente não culminou no pior cenário, a sensação que fiquei é que independentemente dos ditos avanços da legislação e das parcerias das redes institucionais - tutela, ministério público, saúde, polícias, associações, independentemente do problema ser crime público e todos termos voto na matéria, o sistema não é eficaz e o agressor continua a estar em vantagem, mesmo que condenado e a cumprir pena.

Como é possível que passem anos a fio de queixas sem consequências, que as vítimas, mesmo as que estão a ser ajudadas, estejam obrigadas a viver aquela “ não-vida”, escondidas, anónimas, aterrorizadas e os agressores quando são condenados ( o que é raro ) saiam por bom comportamento e quando em precária reincidam, não exista intervenção imediata das autoridades?

Como é possível que a dúvida de conduta recaia sempre sobre a (o) agredido e o benefício da dúvida sobre o(a) agressor(a)? Quantas mais pessoas terão que morrer para deixarmos de ser cínicos e hipócritas?

A violência doméstica é um crime hediondo, na maioria dos casos silencioso mas com inúmeros sinais de alerta já sobejamente conhecidos. Quando se torna público e as vítimas pedem ajuda, como e porque é que a nossa tão avançada legislação e as nossas redes tão “oleadas” não respondem com prontidão?

Entre a passada segunda-feira e hoje passaram dois dias e morreram mais duas mulheres. Uma quis, mais uma vez apresentar queixa às autoridades e foi impedida “ porque já não era hora e iam entrar em fim de semana. Teria que esperar por segunda-feira…” – Infelizmente não viveu para contar... Este episódio que ouvi ontem incrédula num dos jornais nacionais, só vem corroborar a minha indignação em relação à forma como este tipo de debates se fazem no nosso país e desmonta todas as pseudo boas intenções de informar e alertar a população para a necessidade da denúncia atempada e precoce. A realidade é bem mais a preto e branco do que o colorido ecran do auditório da fundação Champalimaud.

Haja seriedade e caso não consigam…pelo menos tenham vergonha de vir para o grande écran apregoar moral e boas práticas que só existem no papel. Haja coragem de dizer que nesta matéria ainda está quase tudo por fazer em Portugal, a começar pelas mentalidades dos legisladores e pela coragem reformista de realmente punir com celeridade, quem maltrata desta forma. Bastou ouvir as vítimas para perceber isso mesmo.

Nunca me ouvirão a defender que os agressores não devem ser objeto de estudo e possibilidade de reinserção, mas por amor da santa, não desvalorizem quem efetivamente é o elo mais fraco deste paradigma, de difícil resolução sem dúvida, mas a necessitar de firmeza e determinação.

É que, de boas intenções está o inferno cheio e ser agressor em Portugal, continua a compensar e de que maneira.

Mais uma vez na passada segunda feira, vi o Prós e Contras e tive vergonha de ser portuguesa, ( exceção feita à APAV , à UMAV e às corajosas vítimas que lá se deslocaram ), mas ver o programa foi o alimento para mais uma vez…denunciar. Pode não servir de nada, mas como cidadã sinto que cumpri o meu dever.

27 mortes só este ano.

Até quando permitiremos que isto continue? Mas mais ainda – o que pode o cidadão comum, por muito proactivo que queira ser nesta matéria, fazer, quando institucionalmente choca com paredes, portas fechadas e quantas vezes com enormes doses de arrogância e preconceito?

Fica a pergunta… o desafio e já agora o apelo – os portugueses merecem maior seriedade intelectual na abordagem dos problemas que afligem a nossa sociedade. Se é só para fazer de conta…não vale mesmo a pena.

Graça Costa

Socióloga