Profissões em família

Vila Mariana e Paraíso, sendo bairros nobres da cidade de São Paulo, concentram cidadãos de classe média que moram em prédios de alto padrão e possuem carros. Alguns mais de um carro, para driblar o rodízio implantado pela prefeitura há mais de dez anos, visando aliviar o caos do trânsito paulista.

Ruas largas e movimentadas, repletas de lojas caras, unem esses  bairros e fazem a conexão com a Avenida Paulista.

Odair José da Silva, pintador de placas desbotadas de carros, trabalha na calçada, ou melhor, ao lado da calçada, deitado sobre um papelão no asfalto.

Haviam-me avisado que a Companhia Estadual de Trânsito pensaria que propositalmente tentei apagar minha placa para fugir dos radares. A dor no bolso foi insuportável. Precisava pintar minha placa.

- Há um cara que pinta placas e está sempre na Tutoia, na esquina do Instituto Biológico de São Paulo – me orientou o frentista de um posto do Paraíso.

- Onde? Eu passo todo dia por lá e nunca vi ninguém! – argumentei.

- Ele tem uma placa no chão avisando o que faz.

         Era verdade, lá estava ele. Baixinho, negro, poucos dentes, de calça jeans surrada, blusa xadrez desabotoada, deixando a descoberto o peito muito magro e suado, calçando sandália croc e meias pretas. Puxa de uma perna e usa um bonezinho de um verde indefinido que o protegia do sol, onde se lia “crianças bem de vida”.

         Odair, de cinquenta e um anos, duas filhas menores, deita no chão e pinta placas com o dedo. Suas ferramentas são um papelão entre ele e o asfalto e uma latinha pequenina de tinta preta onde ele suja a ponta do dedo indicador esquerdo – ele é canhoto – e, em não mais de quinze minutos, deixa as placas como novas e livres de multas.       Completam o cenário, uma cadeira velha de fórmica amarela e a cartolina laranja desbotada que avisa “pintam-se placas”.

- Param muitos carros por dia aqui. Já sou conhecido. Mas paravam mais quando o Detran ficava a um quarteirão daqui. Eu cobro dez reais por placa e isso dá pra viver – responde Odair.

- O dedo não fica esfolado de tanta tinta? – perguntei.

-Não, depois eu limpo. Meu pai sempre trabalhou assim. Eu trabalho aqui faz dois anos. Herdei a profissão do meu pai. Ele tem  oitenta e quatro anos e trabalhou aqui durante quarenta, e durante trinta pagou como autônomo ao Estado para receber a aposentadoria.  Às vezes ele vem e pinta algumas placas.

         A necessidade é isso, formata profissões e famílias.

         O empalhador de cadeiras da Rua Maria Figueiredo, uma das que atravessa a Rua Tutoia e começa na Avenida Paulista, tem um irmão que lhe ensinou a profissão. O trabalho do empalhador de rua não é igual ao do que empalha numa loja protegida da chuva, do frio e do sol. Antes de pegar seu banquinho, sua mochila com a marmita e as ferramentas para instalar-se numa esquina, ele precisa ouvir no rádio a previsão do tempo e apostar na sua intuição.

- Eu e meu irmão trabalhamos na rua, aqui e no Bom Retiro. Nós viemos da Paraíba há mais de vinte anos. Às vezes não dá pra sair por causa da chuva. Não pode deixar molhar a palha – conta Josinaldo Mariano da Silva, mais preocupado com a matéria prima do que com sua saúde.

- Tem bastante trabalho nesta esquina?– indaguei.

- Sempre tem e a Prefeitura não me incomoda. Eu não me considero um artista, eu presto um serviço e por isso me deixam em paz, não pago taxas.

         Josinaldo, magro, calça jeans menos surrada do que a do pintador de placas, sentado no banco de plástico, trança as fitas da palha dando forma ao assento de uma cadeira. A propaganda do seu negócio é feita por enorme feixe de palha de três metros de altura amarrado a um poste da Eletropaulo. É um enfeite na esquina de cimento e pedra, ao lado de um prédio de vinte andares.

         Perto dele, uma tábua de madeira de quase dois metros de comprimento, apoiada em três cavaletes, serve de barraca para os  abacaxis vendidos por Francisco Oliveira de vinte e sete anos e de calça jeans não surrada. A barraca é do irmão que se reveza com ele para vender o abacaxi fresquinho.

- Que delícia! Nunca comi um abacaxi tão doce! – exclama um comprador que acabou de pagar um real por uma rodela. Se quisesse levar abacaxis inteiros pagaria três por dez reais. Uma pechincha!

- A gente pega o abacaxi numa granja particular, não é do CEASA. Estamos nesta rua há mais de oito anos e temos uma clientela fixa. Todo mundo gosta! – conta Francisco.

         Os profissionais que trabalham na rua são tolerados pelos cidadãos com mais de um carro porque prestam serviços baratos, úteis e bem executados. Quem disse que para ser artista em sua profissão precisam ter um teto para protegê-los?

A convivência com os “doutores” é pacífica, e estes profissionais pobres, que dependem da bondade de algum comerciante das redondezas para usar um banheiro limpo, agradecem por poder levar para casa o pão nosso de cada dia.