Renata Oliveira Marques Gomide

Resumo

Este trabalho apresenta uma reflexão teórica acerca dos processos polifônicos e dos agenciamentos discursivos numa abordagem enunciativa da linguagem. A partir da letra da música “Amigo é para essas coisas”, de Aldir Blanc e Silvio Silva Jr., analisa-se os mecanismos de natureza configuracional que apontam para as vozes e modalizações que estabelecem o posicionamento enunciativo dos interlocutores no decorrer do discurso.

Palavras-chave: Enunciado; Enunciação; Enunciadores; Processos polifônicos; Dialogismo; Agenciamentos discursivo-enunciativos. 

 À luz de uma abordagem enunciativa da linguagem, este trabalho apresenta uma reflexão teórica a respeito dos processos polifônicos e dos agenciamentos discursivos com base na letra da música “Amigo é para essas coisas”, de Aldir Blanc e Silvio Silva Jr.

Uma vez que o texto em questão estrutura-se como um diálogo em que emergem diversas vozes, estuda-se o funcionamento dos mecanismos enunciativos e das estratégias textual-discursivas concernentes ao envolvimento dos interlocutores e à interação em curso. Reconhecendo elementos polifônicos e dialógicos que promovem determinados efeitos de sentido na enunciação, são analisados os mecanismos de natureza configuracional que apontam para as vozes e modalizações que estabelecem os posicionamentos discursivos dos interlocutores. Assim, são investigadas como as estratégias textual-discursivas, por meio das quais os mecanismos de enunciação se manifestam, controlam e regulam o funcionamento do discurso em função dos propósitos comunicativos. Em linhas gerais, a partir das concepções de Bakhtin e Ducrot principalmente, e tendo em vista os desdobramentos de suas contribuições para o interacionismo sociodiscursivo, são analisadas marcas de interação e pistas enunciativas que demarcam movimentos de emergência dos interlocutores, isto é, a constituição dos interlocutores no decorrer do discurso.

Enunciação/enunciado/enunciadores

Ao estudar os processos polifônicos e os agenciamentos discursivos numa abordagem enunciativa da linguagem, primeiramente, faz-se necessário apresentar os conceitos referentes a enunciação/enunciado/enunciadores, bem como as concepções de língua e linguagem que norteiam a reflexão aqui empreendida, afinal, analisar a enunciação como espaço de mediação entre a língua e o discurso é fundamental para a compreensão do funcionamento dos mecanismos enunciativos e das estratégias textual-discursivas que assinalam as vozes e modalizações que engendram o discurso.

Reconhecendo que a linguagem é muito mais que um instrumento de comunicação, atualmente, os estudos linguísticos buscam compreendê-la não mais apenas como um sistema formal de signos, mas também como uma atividade atravessada por manifestações sociais e subjetivas. Sendo uma atividade social, histórica e cognitiva, a língua refere-se a uma das várias formas de manifestação dos sistemas comunicativos desenvolvidos socialmente. Sendo a língua o próprio lugar da interação, o sujeito se constrói e é construído por meio da linguagem. Desse ponto de vista, o modo pelo qual o sujeito percebe a si é indissociável da coletividade na qual se insere: a subjetividade pressupõe a socialização.

Por outro lado, ao incorporar a relação dialógica entre locutor-ouvinte, a investigação linguística desloca a noção de sujeito como fonte absoluta do sentido e volta-se aos aspectos sociais e históricos que perpassam as condições de produção. Perdendo seu papel central, o sujeito tende a ser entendido como um conjunto de diversas vozes sociais que o tornam um sujeito histórico e ideológico. “Descentrado, o sujeito divide-se, cinde-se, torna-se um efeito de linguagem, e sua dualidade encaminha a investigação para uma teoria dialógica da enunciação.” (BARROS, 2003, p.3). O discurso, então, passa a ser visto como heterogêneo e polifônico, de modo que “o centro da relação não está nem no eu nem no tu, mas no espaço discursivo criado entre ambos.” (BRANDÃO, 2004, p.76) (grifos da autora).

Nessa mesma perspectiva, Bakhtin (2004, p.112) concebe a enunciação como “um produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados” sendo que “mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor.” As relações sociais, então, condicionam a escolha das palavras, dos signos, já que “a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações.” (BAKHTIN, 2004, p.123). Assim, o horizonte social determina a atitude ideológica dos indivíduos, sendo que a orientação da palavra está sempre em função do interlocutor, bem como de papéis sociais e condições de produção bem definidos, afinal, “a situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação.” (BAKHTIN, 2004, p.114). O emprego da língua realiza-se na própria atividade comunicativa em forma de enunciados concretos, únicos e proferidos pelos integrantes do campo de atividade em contextos sociais situados: “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais chamados gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2004, p.127) (grifos do autor).

Percebe-se que, para Bakhtin, enunciado e enunciação remetem à mesma rede conceitual que envolve a categoria gênero. Os gêneros discursivos compreendem a linguagem em uso, já que são artefatos linguísticos, historicamente construídos e intimamente dependentes das condições de produção, recepção e circulação em que se constituem. Caracterizados por seus aspectos formais, isto é, estruturais ou linguísticos, os gêneros do discurso podem ser definidos pelo conteúdo, funcionalidade, estilo e composição peculiares, marcados pela especificidade das esferas de comunicação e, por isso, são complexos e heterogêneos.

Assumindo um ponto de vista semântico-pragmático da linguagem, Ducrot (1987), por sua vez, concebe o enunciado como um fragmento de discurso e julga importante diferenciá-lo da frase, que, para ele, constitui uma entidade abstrata, não observável e “suscetível de ser manifestada por uma infinidade de enunciados” (DUCROT, 1987, p.167). A partir dessa oposição entre enunciado e frase, Ducrot apresenta uma distinção entre as noções de sentido e significação. A primeira diz respeito à característica semântica da frase; a segunda, à característica semântica do enunciado. “O sentido”, diz Ducrot (1987, p.170), “pertence ao domínio do observável, ao domínio dos fatos”. Já a significação, estaria relacionada a “um conjunto de instruções dadas às pessoas que têm que interpretar os enunciados da frase, instruções que especificam que manobras realizar para associar um sentido a estes enunciados” (Ducrot, 1987, p.170). Considerando, pois, o sentido como uma descrição/representação/qualificação da enunciação, o autor defende que “interpretar uma produção linguística consiste, entre outras coisas, em reconhecer nela atos e [...] este reconhecimento se faz atribuindo ao enunciado um sentido, que é o conjunto de indicações sobre a enunciação” (DUCROT, 1987, p.173). O sentido, então, exigiria a consideração da situação enunciativa; a significação seria o resultado de relações estabelecidas unicamente no plano do enunciado.

A enunciação é concebida por Ducrot a partir de três definições, a saber: a) atividade psicofisiológica implicada pela produção do enunciado; b) produto da atividade do sujeito falante, um segmento do discurso; e c) acontecimento instituído pelo aparecimento de um enunciado. Optando por essa última acepção, o autor explica: “A realização de um enunciado é um acontecimento histórico: é dado existência a alguma coisa que não existia antes de se falar e que não existirá mais depois” (DUCROT, 1987, p.168).

Essas considerações permitem perceber que, na perspectiva aqui assumida, o enunciado corresponde àquilo que é dito ou escrito em uma determinada situação de interlocução. É a manifestação verbal e concreta da atividade comunicativa entre indivíduos situados em contextos sociais de interação. A enunciação remete à situação em que o enunciado é produzido: tempo, lugar, modo, interlocutores e relações sociais entre eles e os objetivos visados. A cada nova enunciação temos, pois, um novo enunciado, um novo texto.

Dialogismo e processos polifônicos

Na concepção bakhtiniana, o dialogismo é o princípio fundador da linguagem e representa uma das formas mais importantes da interação verbal: “a unidade real da língua que é realizada na fala não é a enunciação monológica individual e isolada, mas a interação de pelo menos duas enunciações, isto é, o diálogo.” (Bakhtin, 2004, p.146). Num sentido amplo, o dialogismo pode ser entendido “não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.” (Bakhtin, 2004, p.123). O discurso é, assim, sempre atravessado por outros discursos: “os enunciados longamente desenvolvidos, ainda que eles emanem de um interlocutor único [...] são monológicos somente em sua forma exterior, mas, em sua estrutura interna, semântica e estilística, eles são, com efeito, essencialmente dialógicos.” (VOLOCHINOV, 1981, p.292 apud Charaudeau & Maingueneau, 2006, p.161).

Sendo o enunciado um produto da interação discursiva, a recepção ativa do discurso de outrem é fundamental para o diálogo: “Quando falamos, não estamos agindo sós. Todo locutor deve incluir em seu projeto de ação uma previsão possível de seu interlocutor e adaptar constantemente seus meios às reações percebidas do outro.” (DAHLET, 1997, p.61). Trazendo, pois, sempre a perspectiva de outra voz, “a palavra”, assinala Bakhtin (2004, p.113), “é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte.” (Bakhtin, 2004, p.113) (grifos do autor).

O dialogismo bakhtiniano é, portanto, composto por uma dupla fase. Todos os discursos são heterogêneos, ou seja, são constituídos por relações que marcam tanto a presença de outras vozes num mesmo discurso (relações interlocutivas) quanto pelas relações que todo enunciado estabelece com aqueles anteriormente produzidos (relações interdiscursivas). O enunciado é, pois, “um elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas.” (Bakhtin, 2003, p.300).

Também assumindo o dialogismo como constitutivo da linguagem, Ducrot anuncia sua filiação às concepções bakhtinianas admitindo que “do ponto de vista empírico, a enunciação é ação de um único sujeito falante, mas a imagem que o enunciado dá dela é a de uma troca, de um diálogo, ou ainda de uma hierarquia das falas.” (Ducrot, 1987, p.187). Para Ducrot, o sujeito é um ser dotado de uma atividade psicofisiológica; é a origem dos atos ilocutórios; e, em um enunciado, é designado pelas marcas sintáticas da primeira pessoa. Mas, para que o conceito de enunciação “não encerre em si, desde o início, a noção de sujeito falante”, Ducrot deixa de lado a noção da autoria dos atos de fala e defende que o importante “é simplesmente o fato de que um enunciado aparece” (DUCROT, 1987, p.169). Contudo, o autor reconhece que a enunciação tenha origem em um ou vários sujeitos e defende que “é necessário distinguir entre estes sujeitos pelo menos dois tipos de personagens, os enunciadores e os locutores” (DUCROT, 1987, p.182). Os ‘enunciadores’ remetem a “estes seres que são considerados como se expressando através da enunciação, sem que para tanto se lhe atribuam palavras precisas”, de modo que “se eles ‘falam’ é somente no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas palavras.” (Ducrot, 1987, p.192).

Já o ‘locutor’ é visto como uma ficção discursiva, um ser do discurso “que é, no próprio sentido do enunciado, apresentado como seu responsável, ou seja, alguém a quem se deve imputar a responsabilidade deste enunciado. É a ele que refere o pronome eu e as outras marcas da primeira pessoa.” (Ducrot, 1987, p.182). Responsável pelo enunciado, o locutor organiza as atitudes e os diferentes pontos de vista dos enunciadores, podendo se assimilar a eles e, atualizando-os, pode até tomá-los como seus representantes. Por outro lado, o locutor pode associar-se a alguns enunciadores e, “mesmo que ele não se assimile a eles”, diz Ducrot (1987, p.193), “sua aparição mantém-se significativa”.

 É importante ressaltar que o locutor “pode ser distinto do autor empírico do enunciado, de seu produtor — mesmo que as duas personagens coincidam habitualmente no discurso oral.” (DUCROT, 1987, p.182). Portanto, “não somente o locutor pode ser diferente do sujeito falante efetivo, mas pode ser que certas enunciações, tal como são descritas no sentido do enunciado, não apareçam como o produto de uma subjetividade individual” (DUCROT, 1987, p.183). Ducrot distingue o locutor enquanto tal (L) do locutor enquanto ser do mundo (λ):

“L é o responsável pela enunciação, considerado unicamente enquanto tendo esta propriedade. λ é uma pessoa ‘completa’, que possui, entre outras propriedades, a de ser a origem do enunciado - o que não impede que L e λ sejam seres de discurso, constituídos no sentido do enunciado, e cujo estatuto metodológico é, pois, totalmente diferente daquele do sujeito falante (este último deve-se a uma representação ‘externa’ da fala, estranha àquela que é veiculada pelo enunciado).” (DUCROT, 1987, p.188).

Feitas essas distinções, o autor admite a existência de duas formas de polifonia: a primeira prevê a existência de dois locutores diferentes em casos de ‘dupla enunciação’ — fenômeno que se torna possível pelo fato de o locutor equivaler a um ser de discurso, participando dessa imagem da enunciação fornecida pelo enunciado; a segunda é permitida pela noção de enunciador (acima já apresentada). A polifonia, então, é concebida como a possibilidade de uma enunciação proferida por um locutor ser também atribuída a um outro locutor, como é o caso do discurso relatado em estilo direto, em que há o desdobramento do locutor: “Relatar um discurso em estilo direto seria, pois, dizer que palavras foram utilizadas pelo autor deste discurso” (DUCROT, 1987, p.186). Do mesmo modo, de acordo com Bezerra (1995, p.194), “o que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico”, no entanto, “esse regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria e recria, mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no homem um outro ‘eu para si’ infinito e inacabável” (Bezerra, 1995, p.194).

À luz dessas considerações, é possível admitir que, embora a polifonia esteja presente na teoria bakhtiniana, sua perspectiva é sempre dialógica, isto é, leva em consideração a materialidade da interação verbal entre os sujeitos. Como visto, para Bakhtin, os sujeitos, ao interagirem, trazem sempre em seus enunciados outros já existentes — além daqueles que ainda vão existir. Já a polifonia ducrotiana, é voltada para o ressoar de vozes na organização interna de um mesmo enunciado, ou seja, Ducrot não está interessado no sujeito empírico e suas relações sociais, mas tão somente na estrutura enunciativa da linguagem. Assim, do ponto de vista do linguista francês, conforme apontam Charaudeau & Maingueneau (2006, p.386-7), “a estrutura polifônica se situa efetivamente ao nível da língua (ou da frase), e é a razão pela qual ela não se descobre por um estudo das interpretações ou dos empregos possíveis dos enunciados, mas apenas por um exame dos (co)textos aos quais estes são suscetíveis de se integrar”.

 O conceito de polifonia, então, remete à multiplicidade de vozes presentes num mesmo enunciado, enquanto o dialogismo, constitutivo de todo discurso/linguagem, remete à situação social de interlocução. Nesse sentido, a depender das estratégias discursivo-enunciativas ativadas, os textos podem ser polifônicos ou monofônicos. Nos textos polifônicos as vozes são apresentadas explicitamente, o que equivale ao que Authier-Revuz (1985, p.118 apud Charaudeau & Maingueneau, 2006, p.162) designa como “dialogismo mostrado”: “representação que um discurso dá, em si mesmo, de sua relação com o outro, do lugar que ele cria, explicitamente, designando, na cadeia do enunciado, por meio de marcas linguísticas, pontos de heterogeneidade”. O “dialogismo mostrado” é o discurso que mostra explicitamente, seja intencionalmente ou não, outros discursos que o atravessam. Já nos textos monofônicos, as vozes são encobertas por uma única voz, o que corresponde ao “dialogismo constitutivo” que “se esconde ou se mascara atrás das palavras, das construções sintáticas, das reformulações ou das reescrituras não ditas dos discursos segundos.” (Charaudeau & Maingueneau, 2006, p.162). Sendo assim, monofonia e polifonia, conforme aponta Barros (2003, p.5-6), podem ser relacionados aos efeitos de sentido decorrentes de procedimentos discursivos que se utilizam em textos, por definição, dialógicos. Os textos são dialógicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitos de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir.

 Visto que os elementos polifônicos e dialógicos promovem determinados efeitos de sentido na enunciação, a próxima seção aborda como os agenciamentos discursivo-enunciativos estão implicados na construção da letra da música “Amigo é para essas coisas”, de Aldir Blanc e Silvio Silva Jr[1].

Agenciamentos discursivo-enunciativos

Uma vez que a enunciação se dá por agenciamentos discursivos da língua e que “uma cena enunciativa se caracteriza por constituir modos específicos de acesso à palavra dadas as relações entre as figuras da enunciação e as formas linguísticas”, tem-se que “na cena enunciativa ‘aquele que fala’ e ‘aquele para quem se fala’ não são pessoas mas uma configuração do agenciamento enunciativo” (GUIMARÃES, 2005, p.23). É nesse sentido que os mecanismos enunciativos, ao postularem o envolvimento dos interlocutores, garantem a coerência interativa, pragmática do texto, “explicitando, de um lado, as diversas avaliações (julgamentos, opiniões, sentimentos) que podem ser formuladas a respeito de um ou outro aspecto do conteúdo temático e, de outro, as próprias fontes dessas avaliações” (BRONCKART, 2003, p.319). São, portanto, mecanismos de natureza configuracional, que têm como função estabelecer os posicionamentos enunciativos, que correspondem às vozes “que assumem (ou às quais são atribuídas) a responsabilidade do que é enunciado” (BRONCKART, 2003, p.326). Para analisar os mecanismos enunciativos é preciso identificar quais as vozes que atuam no texto e o que elas dizem, bem como avaliar como se dão as modalizações, que concernem ao modo como elas dizem, “orientando o destinatário na interpretação de seu conteúdo temático”. (Bronckart, 2003, p.330) (grifos do autor).

A letra da música “Amigo é para essas coisas”, de Aldir Blanc e Silvio Silva Jr., está estruturada na forma de um diálogo, o que, já de início, pode ser interpretado como uma estratégia enunciativa, a partir da qual emergem, de fato, mais do que duas vozes. Uma pista disso é dada pelo próprio título, que recorre a uma expressão cristalizada pelo senso comum: “Amigo é para essas coisas”. Diversos outros exemplos presentes nos enunciados permitem afirmar que há uma rede polifônica atualizada na fala de cada um dos interlocutores. Os aspectos temáticos são, em geral, apresentados na materialidade dos enunciados por expressões proverbiais, “frases feitas”, “lugares comuns”, generalizações, que trazem uma multiplicidade de vozes sociais (polifonia), assumindo status de estratégias discursivas na configuração do texto: “Todo amor um dia chega ao fim”, “Pra frente é que se anda”, “Minha memória é fogo!”.

O texto é fundamentalmente dialógico e polifônico, entretanto, é preciso distinguir a “simulação do diálogo” que estrutura a música do dialogismo constitutivo da linguagem. No primeiro caso, trata-se de um procedimento realizado unicamente pelo “discurso direto”, configurando uma interlocução no enunciado, que se estrutura por meio de marcas interativas como perguntas: “Como é que vai?”, “Posso sentar um pouco?”; hesitações, truncamentos: “Pô...”, “Pode ser...”, “Tá...”; e complementaridade entre os enunciados: “— Amigo, há quanto tempo! — Um ano ou mais”, “— Meu Deus, por quê? — Nem Deus sabe o motivo”.

Já o dialogismo discursivo, como já foi dito, remete à situação de enunciação, o que, no caso, implica a consideração dos aspectos mais amplos da cena enunciativa, incluindo a recepção do texto pelo leitor.

No plano do enunciado, os processos polifônicos são estabelecidos a partir de um diálogo entre dois amigos que se reencontram — Locutor 1 (L1) e Locutor 2 (L2), de acordo com a perspectiva ducrotiana. O plano temático se desenvolve em torno de uma espécie de ‘desilusão existencial’, manifesta de modo notório nas falas de L1[2]: “A vida é um dilema”, “Vida ruim”. Essa desilusão é ‘amorosa’: “Rosa acabou comigo”; e, de certa forma, ‘religiosa’: “[Deus] Não foi bom para mim”. É também uma desilusão social: “Não sei quando eu lhe pago”, “Estou desempregado”. Disso decorre a desesperança em relação ao futuro: “— E amanhã? — Que bom se eu morresse”; e em relação ao presente: “[...] eu vivo ao Deus dará”.

No entanto, restrito ao enunciado, o jogo polifônico deixa de lado alguns aspectos importantes relativos aos efeitos de sentido do texto, tendo em vista que

Se para construir uma prática enunciativa qualquer os falantes se movem pelos enunciados, devemos admitir que, ao menos em princípio, a concepção daquela torna necessário que reconheçamos aspectos da constituição desses últimos, pois é no plano da enunciação que proposições se transformam em práticas de linguagem efetivas (MARI, 1999, p.241).

Logo, vale comentar brevemente a situação de enunciação inicial, para, em seguida, mostrar de que maneira essa situação está inscrita na própria letra.

 A letra em questão veio a público em 1970[3], em pleno regime militar. O Brasil, à época, era governado pelo general Médici, que se manteve no poder entre os anos de 1969 e 1973, justamente o período do denominado “milagre econômico”. O mesmo período, porém, também ficaria conhecido como os “anos de chumbo”. Por um lado, o desenvolvimento econômico, o otimismo e a euforia, potencializados pela conquista do tricampeonato da Copa do Mundo em 1970. Por outro, o aumento da concentração de renda, a omitida e crescente pobreza da população e a intensificação da censura. Trata-se de dois momentos antagônicos que ocorreram ao mesmo tempo, ainda que se negando mutuamente, como observou Elio Gaspari (2002, p.13): “O Milagre Brasileiro e os Anos de Chumbo foram simultâneos. Ambos reais, co-existiam negando-se. Passados mais de trinta anos, continuam negando-se. Quem acha que houve um, não acredita (ou não gosta de admitir) que houve o outro.”

Esse antagonismo, de certo modo, é recobrado na letra da música. De imediato, o texto chama atenção para a série de oposições estabelecidas entre os dois locutores. De um lado, os valores positivos do otimismo e da esperança: “Deus é bom”, “No amor a gente fica em paz”, “Pra frente é que se anda”. Em contraposição à já mencionada desilusão presente na fala de L1, as vozes presentes nas colocações de L2 atualizam um certo discurso do poder. A frase “Pra frente é que se anda” é sugestiva nesse sentido. Espécie de slogan da ideia de progresso então vigente, é muito semelhante ao canto patriótico entoado em comemoração ao tricampeonato da seleção brasileira, conquista sabidamente explorada pelo regime militar: “Noventa milhões em ação / pra frente, Brasil / do meu coração [...] / Salve a seleção”[4] (grifo meu).

De outro lado, está a desilusão e outros conceitos negativos a ela relacionados, como infelicidade, desesperança, frustração etc.: “A vida é um dilema”, “[a vida] Nem sempre vale a pena”, “Vida ruim”, “Que bom se eu morresse!”, “Na morte a gente esquece”. Ao final da letra, quando L2 oferece dinheiro a L1 (“Tome um cabral”), fica clara a superioridade de um em relação ao outro. Além disso, fica implícita a constatação de que o ‘milagre’ não aconteceu para todos.

Por fim, em um exemplo de complementaridade entre os elementos do enunciado e a situação de enunciação, essa postura crítica em relação ao milagre econômico revela-se, sobretudo, no último período: “O apreço não tem preço, eu vivo ao Deus dará”. Por meio de um jogo sonoro com a palavra ‘preço’, a primeira oração atribui à ‘estima’ um valor acima do econômico. A seu turno, a segunda oração indica, dentre outras significações possíveis, ‘abandono’ e ‘miséria’, mas o faz por meio de uma expressão de fundo religioso. O “milagre econômico”, dessa forma, é duplamente negado.

Considerações Finais

A análise aqui desenvolvida buscou contemplar as marcas linguísticas presentes na materialidade da letra da música, que configuram um agenciamento de vozes restrito à esfera dos enunciados. Ao analisar o processamento discursivo, no entanto, é preciso ter em vista as condições de produção envolvidas na cena de enunciação, o que no caso, vai muito além da encenação do diálogo que estrutura o texto. Nesse sentido, no texto analisado é relevante não apenas o contexto sócio-político da ditadura, como também os papéis sociais de resistência ao regime assumidos nos meios artísticos e culturais da época. É nesse plano que se situam a intenção do enunciador, a imagem que os interlocutores fazem de si, os conhecimentos partilhados e a situação de interlocução. Vale lembrar que tudo isso, de acordo com Bakhtin, caracteriza a enunciação.

Por outro lado, não significa que o leitor não produza sentidos se não levar em conta a inscrição no texto de um determinado contexto histórico e social, pois o fato de o leitor situar-se, hoje, em um contexto bastante diverso, não impede que, a partir da materialidade da letra, seja possível realizar muitos dos processos de significação acima mencionados. Aqui, contudo, interessa saber como essa pluralidade de vozes, para além dos enunciados, remete à representação que o texto faz de sua própria situação de enunciação; e saber, ainda, de que modo esse processo configura posições interlocutivas indissociáveis da consideração da série de fatores envolvidos na situação enunciativa.

Referências Bibliográficas

ALBIN, Ricardo Cravo. O livro de ouro da MPB: a história de nossa música popular de sua origem até hoje. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Michel Lahud & Yara Frateschi Vieira. 11. ed. São Paulo: HUCITEC, 2004.

BAKHTIN, M. M. Os Gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.261-335.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. p.1-9.

BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. p.191-200.

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004.

BRONCKART, Jean-Paul. Os mecanismos enunciativos. In: Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. Tradução de Anna Raquel Machado & Péricles Cunha. São Paulo: EDUC, 2003. p.319-336.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. Tradução Fabiana Komesu et al. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.

DAHLET, Patrick. Dialogização enunciativa e paisagens do sujeito. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1987. p.59-86.

DUCROT, Oswald. Esboço de uma teoria polifônica da enunciação. In: O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987. p.161-222.

GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GUIMARÃES, Eduardo. Enunciação e acontecimento. In: Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. 2 ed. Campinas, SP: Pontes, 2005. p.11-31.

MARI, Hugo. Análise do discurso e semântica: das diferenças e das implicações. In: MARI, Hugo et al (Orgs.). Fundamentos e dimensões da análise do discurso. Belo Horizonte:Carol Borges, 1999. p.239-258. 

Discografia

BLANC, Aldir; SILVA, Silvio Jr. Amigo é para essas coisas. Intérpretes: MPB-4. In: Quarteto em Cy & MPB-4. Millennium. São Paulo: PolyGram, 1998. 1 CD. (66 min.). Faixa 2.

Anexo

 “Amigo é pra essas coisas”

MPB4 (1998)

Composição: Aldir Blanc e Silvio Silva Júnior

 — Salve!

— Como é que vai?
— Amigo, há quanto tempo!
— Um ano ou mais...
— Posso sentar um pouco?
— Faça o favor
— A vida é um dilema
— Nem sempre vale a pena...
— Pô...
— O que é que há?
— Rosa acabou comigo
— Meu Deus, por quê?
— Nem Deus sabe o motivo
— Deus é bom
— Mas não foi bom pra mim
— Todo amor um dia chega ao fim
— Triste
— É sempre assim
— Eu desejava um trago
— Garçom, mais dois
— Não sei quando eu lhe pago
— Se vê depois
— Estou desempregado
— Você está mais velho
— É
— Vida ruim
— Você está bem disposto
— Também sofri
— Mas não se vê no rosto
— Pode ser...

— Você foi mais feliz

— Dei mais sorte com a Beatriz
— Pois é
— Pra frente é que se anda
— Você se lembra dela?
— Não
— Lhe apresentei
— Minha memória é fogo!
— E o l´argent[1]?
— Defendo algum no jogo
— E amanhã?
— Que bom se eu morresse!
— Pra quê, rapaz?
— Talvez Rosa sofresse
— Vá atrás!
— Na morte a gente esquece
— Mas no amor a gente fica em paz
— Adeus
— Toma mais um
— Já amolei bastante
— De jeito algum!
— Muito obrigado, amigo
— Não tem de quê
— Por você ter me ouvido
— Amigo é pra essas coisas
— Tá...
— Tome um cabral[2]
— Sua amizade basta
— Pode faltar
— O apreço não tem preço, eu vivo ao Deus dará



[1] “argent”: fr. dinheiro.

[2] Referência ao dinheiro da época. No songbook de Aldir Blanc, a referência foi atualizada: “dou um real”.


* Trabalho apresentado ao curso “Da enunciação ao enunciado: um estudo dos modos de enunciação, da emergência de posições (inter)subjetivas e o gerenciamento de vozes, numa abordagem do dialogismo bakhtiniano”, ministrado pela Prof.a Dr.a Jane Quintiliano, no 1º semestre de 2008, no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas.

** Mestre em Linguística e Língua Portuguesa na PUC Minas.

[1] A letra completa da música encontra-se no anexo ao final deste trabalho.

[2] Isso é reforçado pelos aspectos prosódicos e melódicos da música.

[3] A música foi classificada em 2º lugar no III Festival Universitário de MPB, em 1970. Ver ALBIN, 2003, p.316.

[4] Composto por Miguel Gustavo, esse jingle foi vencedor do concurso organizado pelos patrocinadores das transmissões dos jogos da Copa do Mundo de 1970, no México. Ver http://www.clubedojingle.com.

[5] “argent”: fr. dinheiro.

[6] Referência ao dinheiro da época. No songbook de Aldir Blanc, a referência foi atualizada: “dou um real”.