PROCESSO PENAL E ATIVISMO JUDICIAL NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA: UMA ABORDAGEM CRÍTICA ACERCA DO CONFLITO ENTRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES 

 

Caroline Lima Veloso [1]

Thiago Pinheiro da Silva[2]

 

 

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Breves considerações sobre o ativismo judicial; 3 Atuação do STF na seara processual penal: limitação do poder punitivo estatal; 4. o conflito entre o Princípio da Dignidade Humana e o Princípio da Separação dos Poderes; 4.1 Breve análise sobre princípios constitucionais; 4.2 O conflito existente entre os princípios da separação dos poderes e dignidade da pessoa humana no âmbito da Suprema Corte (STF) em matéria processual penal, Conclusão; Referências.

 

 

RESUMO

 

O presente trabalho pretende analisar a atuação do Supremo Tribunal Federal na seara processual penal no sentido da limitação do poder punitivo estatal. Argumenta-se a prática do ativismo judicial na Suprema Corte em defesa das garantias fundamentais do acusado. Analisa-se os princípios constitucionais como base do ordenamento jurídico. Disserta-se sobre o conflito existente entre os princípios da dignidade humana e da separação dos Poderes no âmbito processual penal. 

PALAVRAS- CHAVE: Processo penal; ativismo judicial; Dignidade Humana; Separação dos Poderes.

1 INTRODUÇÃO

 

Com a Constituição de 1988, diversas mudanças surgiram no campo de competência do Supremo Tribunal Federal, como, por exemplo, a criação de novas garantias constitucionais.

Sabe-se que o Poder Judiciário interpreta a lei e a aplica ao caso concreto, fazendo com que haja o retorno à harmonização das relações jurídicas, verdadeiro ato de pacificação social. Estar a se falar das lacunas da lei, as quais são preenchidas pelos julgadores aplicando conhecidas técnicas de interpretação de leis, normas, princípios e, e em alguns casos permitidos, utilizando-se de usos e costumes, com a aplicação da hermenêutica constitucional.

O Supremo Tribunal Federal, sob a justificativa de exercer seu papel de guardião da Carta Magna, utiliza uma postura ativista, redefinindo, contudo, os limites de sua própria competência. Seria a prática do ativismo judicial condizente com seu papel de Estado Democrático de Direito? Há princípios constitucionais em conflito neste caso?

Diante dessa indagação, espera-se compreender o debate sobre o ativismo judicial que ocorre atualmente no Supremo e sua relação com a concretização das garantias fundamentais do acusado no processo penal.

2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATIVISMO JUDICIAL

 

O ativismo judicial é uma expressão que advém dos Estados Unidos e que foi empregada como rótulo para qualificar a atuação da Suprema Corte durante os anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e 1969.

No Brasil, cientistas do Direito e o próprio legislador começam a ter consciência de que a lei não tem capacidade de contemplar todas as situações decorrentes das interações sociais e das relações jurídicas travadas ao longo do corpo da sociedade.

Dessa forma, como diz o Ministro do Supremo Tribunal, Celso de Mello[3], o ativismo judicial surgiu como uma “necessidade transitória de o Poder Judiciário suprir omissões do Poder Legislativo ou do Poder Executivo que são lesivas aos direitos das pessoas em geral ou da comunidade como um todo”.

Noutras palavras, seria o ativismo judicial:

O exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflito de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). (RAMOS, 2010, p.309).

Leciona TEBET (2009) que esta não é uma prática única e exclusiva do Poder Judiciário Brasileiro. Como visto acima a expressão teve em vista a atuação da Corte Norte Americana. Sobre o assunto, comenta o autor:

Destaca-se como um dos maiores exemplos dessa postura ativa a atuação da Suprema Corte norte-americana a partir da década de 50, sob a presidência do Chief Justice Earl Warren, a Warren´s Court, na qual houve a produção de notável jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais. (...) A atuação da Suprema Corte brasileira não inova ou extrapola; apenas aplica ao caso concreto os princípios constitucionais que são ou desprezados pelos outros atores políticos (seja pela falta de regulamentação), ou pela erronia de sua interpretação (invariavelmente feita pelas instâncias judiciais ordinárias em sede processual penal no sentido da "busca pela verdade real", ou em "defesa da sociedade" em detrimento do princípio da dignidade humana.

Contudo, como bem elenca RAMOS (2010, p.310), há parâmetros fornecidos pelo ordenamento jurídico para identificação do ativismo judicial, dentre eles: o limite da textualidade, ao qual deve atentar-se o intérprete-julgador; a existência de normas principiológicas implícitas e os vínculos funcionais entre as categorias desse ordenamento, pressupostos pela correta operação do sistema jurídico.

Em relação à discussão do ativismo judicial em matéria penal, o embate apresentado ao operador do Direito é a postura política a ser adotada. Opta-se pelo ativismo judicial ou pela autocontenção judicial. BARROSo (2011, p.366) faz essa destinção da seguinte maneira:

(...) o ativismo é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandido o seu sentido e alcance. (...) O oposto do ativismo é a autocontenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações de outros Poderes.

 3 ATUAÇÃO DO STF NA SEARA PROCESSUAL PENAL: LIMITAÇÃO DO PODER PUNITIVO ESTATAL

A Constituição Federal de 88 representou a passagem de um Estado de Polícia, devido à conjuntura ditatorial, ao Estado Democrático de Direito, renovando valores do ordenamento jurídico, antes dominado por uma violência institucionalizada.

O Poder Judiciário brasileiro não tem agido unicamente na função jurisdicional. Determinações de cunho político-administrativo têm lhe tem propiciado uma posição de destaque no sistema governativo do país, sempre que chamado a decidir questões em que os demais poderes não cumprem suas missões de atender aos mandamentos constitucionais, mormente na asseguração de direitos individuais.

Assim, o Supremo Tribunal Federal, na seara processual penal, vem atuando no sentido de primar pela efetividade constitucional (centrada na dignidade humana) extraindo ao máximo as potencialidade do texto constitucional, em detrimento do eficientismo penal, limitando, assim, o poder punitivo do Estado sem a observância das garantias fundamentais do acusado.

As críticas que recaem sobre o ativismo judicial penal apontam para situações de extrapolação das ações do Judiciário ou ausência de legitimidade democrática para exercer determinadas funções, por tenderem à contenção e limitação do poder punitivo estatal.

Contudo, em observância aos postulados constitucionais, no tocante às ciências penais, e, principalmente, em relação ao processo penal, esse exercício jurisdicional não mais pode ser analisado sob a otíca estritamente posistivista e conservadora, como muitos críticos a fazem. Bem recorda DIAS (2004, p. 74) que “os fundamentos do Direito Processual Penal são, simultaneamente, os alicerces constitucionais do Estado; a concreta regulamentação de singulares problemas processuais é conformada jurídico-constitucionalmente”.

Assim, os fundamentos do Direito Processual Penal tem que estar coadunados com a nova posição que o juiz assume no Estado Democrático de Direito.

Na mesma linha de pensamento, postula LOPES JR. (2005, p. 283):

O juiz assume uma nova posição no Estado Democrático de Direito, e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais de todos e de cada um, ainda que para isso tenha que adotar uma posição contrária à opinião da maioria. Deve tutelar o indivíduo e reparar as injustiças cometidas e absolver, quando não existirem provas plenas e legais (atendendo ao princípio da verdade formal).

Em defesa do ativismo judicial penal, o  Ministro Celso de Mello, ao votar pela aprovação da súmula nº 14 (direito de ampla defesa), posicionou-se no intuito de coibir potenciais abusos na esfera pena, como segue no exerto:

O Estado não pode ignorar nem transgredir o regime de direitos e garantias fundamentais que a Constituição da República assegura a qualquer pessoa sob investigação criminal ou processo penal. Ninguém ignora, exceto os cultores e executores do arbítrio, do abuso de poder e dos excessos funcionais, que o processo penal qualifica-se como instrumento de salvaguarda das liberdades individuais. Daí porque se impõe, às autoridades públicas, neste País, notadamente àquelas que intervêm no procedimento de investigação penal ou nos processos penais, o dever de respeitar, de observar e de não transgredir limitações que o ordenamento normativo faz incidir sobre o poder do Estado.

Juntamente à defesa das garantias fundamentais ligadas ao sistema punitivo, difícil é imaginar, atualmente, a aplicação do direito processual penal sem levar também em consideração a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, vez que o Brasil aderiu  ao Pacto de São José da Costa Rica.

Conforme entendimento de BINDER (in TEBET, 2009) necessária é recuperação da “ ‘visão política’ sempre que se tratar de garantias e salvaguardas previstas diante do exercício do poder estatal de coerção penal, sendo o conjunto dessas garantias o fator decisivo para a ‘forma constitucional do processo penal’ ”.

Outros exemplos de ativismo judicial penal são a aplicação do princípio da insignificância aos agentes de delitos contra o patrimônio; derrogação parcial do art. 5º, inciso LXVII da Constituição Federal (prisão civil por dívida do depositário infiel) e a discussão da interrupção de gestação de fetos anencefálicos, configurando atipicidade em relação ao delito de aborto.

4. o conflito entre o Princípio da Dignidade Humana e o Princípio da Separação dos Poderes

 

4.1 Breve análise sobre princípios constitucionais

O entendimento doutrinário na atualidade é o de que tanto as regras quanto os princípios são espécies do gênero norma jurídica. Os princípios são o alicerce de toda norma ou fonte de qualquer ordenamento jurídico. Os estudos de Robert Alexy e Ronald Dworkin, fundamentalmente, estabeleceram que a moderna hermenêutica jurídica deveria analisar os princípios como categorias ou diretrizes destinadas a orientar o intérprete ou o aplicador da lei na determinação semântica dos textos legais.

 Assim, os princípios deixaram de ser vistos apenas como fonte de direito, passando a ser utilizados na importante tarefa de solucionar conflitos entre regras, eliminar antinomias jurídicas e suprir lacunas existentes no ordenamento.

Contudo, Eros Grau (1990) aponta, com muita precisão, que:

O princípio introduz uma razão a argüir em determinada direção, porém, não implica uma decisão concreta a ser necessariamente tomada, mas pode haver outros princípios apontando a direção oposta, de modo que, em determinado caso, aquele mesmo princípio não prospere.

Deste modo, por possuírem generalidade e não haver hierarquia entre eles, sendo evocados em um caso concreto, podem os princípios entrar em conflito entre si, vez que, por apresentarem as  características já elencadas, comportam série infinita de aplicações.

4.2 O conflito existente entre os princípios da Separação dos Poderes e da Dignidade da Pessoa Humana no âmbito da Suprema Corte (STF) em matéria processual penal.

Atualmente, o STF, como já dito alhures, tem a missão de salvaguardar a Constituição e fazer a interpretação que melhor se alinhe ao texto constitucional.

Em matéria processual penal, o legislador constituinte originário dispôs várias garantias e direitos fundamentais à pessoa do acusado em um processo penal. São ambos cláusulas pétreas, que não podem fazer parte de propostas de Emendas à Constituição.

Todavia, é latente ainda a aplicação do processo penal em uma forma que não se coaduna aos ditames constitucionais, ou seja, tenta-se penalizar o acusado sem respeitar suas garantias fundamentais.

Com isso, o princípio da Dignidade Humana toma relevo quando há ativismo judicial por parte do Supremo, em que busca viabilizar este princípio como núcleo essencial na defesa dos direitos fundamentais do acusado em que responde a um processo penal.

Disserta Mendes (2011, p. 436) sobre o referido princípio:

Na sua acepção originária, esse princípio (da Dignidade Humana) proíbe a utilização do homem em objeto dos processos e ações estatais. Tomando-se o homem como um fim em si mesmo e não como objeto de satisfação de outras finalidades (...) cumpre função subsidiária em relação às garantias constitucionais específicas do processo.

Assim, o susomencionado princípio escolhido pela Constituição vigente como um dos fundamentos no Estado Democrático de Direito encontra guarida no ativismo judicial da Suprema Corte, defendido pelos seus ministros por constituir um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, CF).

 A produção de súmulas vinculantes, tais como a de nº 11, 14 e outras jurisprudências da Suprema Corte no tocante ao direito processual penal revela que a dignidade da pessoa humana está acima de tudo entre os postulados da referida Corte e às vezes, essa aplicação ao extremo pode confrontar com a Separação dos Poderes pela atuação legislativa da cúpula do Judiciário.

Como pondera RAMOS (2010, p. 314):

“Uma das principais causas do recrudescimento do ativismo judicial é, contudo, de ordem institucional, reportando-se à ineficiência dos Poderes representativos na adoção das providências normativas adequadas à concretização do projeto social-democrático desenhado pela Carta de 1988. (...) dentre os fatores de estímulo ao ativismo judicial a assunção de atividade normativa atípica por parte do Supremo Tribunal Federal, vale dizer, o exercício pelo órgão de cúpula do Judiciário brasileiro de competências normativas que, se não confrontam com o Princípio da separação dos Poderes, dele não decorrem e, mais do que isso, não contribuem para o seu fortalecimento; ao contrário, provocam certa tensão em relação ao conteúdo prescritivo de seu núcleo essencial”.

Na outra ponta, o Princípio da Separação dos Poderes apregoa queem um Estado Constitucionalcada Poder tem suas competências e finalidades que devem desempenhar, de modo que harmoniza os órgãos e funções de um Estado. Ele é a base da teoria constitucional.

No escólio de RAMOS (2010, p. 112-113) o princípio da Separação dos Poderes “parte da identificação das principais funções a serem desempenhadas pelo Estado, para a consecução de seus fins, o que, à evidência, está sujeito a toda sorte de condicionamentos históricos”.

Por conseguinte, este princípio tem o objetivo de evitar o choque entre os três Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário, e também organizar a estrutura político-administrativa de um Estado regido sob a influência de uma Constituição.

Contudo, como aduz BARROSO (2011, p. 372), “o fato de a última palavra acerca da interpretação ser do Judiciário não o transforma no único – nem no principal – foro de debate e de reconhecimento da vontade constitucional a cada tempo”.

CONCLUSÃO

 

O artigo pretendeu expor e analisar o conflito de princípios existente no âmbito do STF referente ao ativismo judicial penal da Corte na defesa das garantias e direitos fundamentais do acusado em um processo penal, assim como da sua prática, sem  extrapolar a competência do Judiciário em detrimento da função legiferante. Tentou-se, também, entender de maneira científica como o processo penal é aplicado naquela Corte, sendo importante para desmistificar sua visão monocórdia e inquisitória.

Com o intuito de evitar o conflito entre aplicação dos princípios abordados, o ativismo judicial deve seguir parâmetros e limites, como forma de resguardar os direitos fundamentais do acusado no processo penal e manter, da mesma forma, independência entre os três Poderes da República.

Defende-se, portanto, que o ativismo judicial pelo Supremo Tribunal Federal deve ser praticado em consonância com o fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, que é a Dignidade Humana dentro dos limites impostos pela Separação dos Poderes.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Processual Penal. Coimbra: editora Coimbra. 2004, p. 74.

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e

Crítica). São Paulo: RT, 1990.

LOPES JR. Aury. Introdução crítica ao Processo Penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6ª  ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p.309.

Suprema Corte brasileira e o exercício de suas atribuições constitucionais. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=165752. Acesso em 24 de outubro de 2011.

TEBET, Diogo. Processo penal e ativismo judicial: Supremo Tribunal Federal e a proteção à dignidade humana. Disponível em: http://www.arcos.org.br/periodicos/revista-eletronica-de-direito-processual/volume-iv/processo-penal-e-ativismo-judicial-supremo-tribunal-federal-e-a-protecao-a-dignidade-humana/.  Acesso em: 25 de outubro de 2011.



 

[1] Acadêmica do 6º período noturno do Curso de Direito da UNDB, [email protected]

[2] Acadêmico do 6º período noturno do Curso de Direito da UNDB, [email protected]

[3] Em matéria veiculada no site do STF. Suprema Corte brasileira e o exercício de suas atribuições constitucionais. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=165752. Acesso em 24 de outubro de 2011.