Sandro Xavier

Há poucos meses, como trabalho para avaliação de alunos do mestrado em Lingüística, fomos estimulados pelo prof. Dr. Dioney Moreira Gomes, da disciplina de Morfologia, no Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade de Brasília, a escolher temas para uma apresentação e uma monografia. Eu escolhi o uso do gerundismo. Elegi esse tema porque a aversão por essa prática também tomava conta de mim, assim como de muita gente. É bom entender por gerundismo o uso da construção "verbo ir + estar + gerúndio", por exemplo, "vou estar resolvendo".

A intenção era mesmo encontrar, pelos estudos histórico-lingüísticos, bem como por outras áreas dessa linha de pesquisa (como a pragmática, por exemplo), maneiras para provar que o uso é realmente, além de irritante e esteticamente "feio", errado. Todavia, o que se deu foram, basicamente, dois resultados significativos: o primeiro foi a constatação de que a utilização do termo "gerundismo", em si só, já é pejorativa e preconceituosa. Muitas palavras que são utilizadas para menosprezar algumas correntes são construídas com o sufixo –ismo. Portanto, ao longo da pesquisa, sugeri que utilizássemos o termo "gerundização", para dar a idéia de que não se quer tratar o fenômeno com a carga negativa que lhe é imposta, mas com o simples intuito de verificação do que está ocorrendo com a língua nesse ponto. A segunda constatação foi que se trata de um fato lingüístico-pragmático inegável, do qual se lança mão como estratégia comunicativa, perfeitamente compreensível por parte do ouvinte. Como exemplo, vamos refletir, mais adiante, sobre o Decreto do Governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, demitindo o gerúndio (Decreto nº 28.314, de 28 de setembro de 2007, do Governador do Distrito Federal).

Primeiro é importante deixar clara a dificuldade que temos de compreender o gerúndio. Classificado como tempo verbal, deixa a todos confusos. Afinal, quando falamos de tempo, pensamos logo em passado, presente ou futuro. Contudo, o gerúndio não dá idéia disso.  Na verdade, o gerúndio é uma forma de mostrar aspecto imperfeito, ou seja, uma ação ainda não concluída, seja no presente, no passado ou no futuro. Dá uma idéia de continuidade, não é? Bem, mas isso é o gerúndio sozinho. Quando se constrói a gerundização, a coisa pode mudar de figura. Por que se utiliza essa estratégia? É mais fácil para nós concluirmos simplesmente que a pessoa não sabe falar, que está querendo enrolar etc. Mas, depois de pesquisas em gramáticos e em comentários de pesquisadores, percebi que a crítica que eu tanto queria fazer não poderia ser feita...

No tocante ao uso da gerundização, percebemos que há um caráter pragmático único. Quem leva muito a culpa da utilização desse fenômeno são os operadores de telemarketing. Contudo, a utilização das formas compostas com gerúndio é comum já na época clássica (como esse comentário não é um trabalho acadêmico, não vou me ater a exemplos, mas quem quiser pode procurar na Gramática histórica da língua portuguesa, de Said Ali). E essas formas tinham vários significados, muitos mesmo. Certamente, nessa época ainda não havia telemarketing. Hoje em dia, antes de criticarmos a utilização repetitiva da gerundização, devemos perceber seu sentido contextual. Quando utilizada, ela pode querer dar a entender uma forma respeitosa, deferente, formal. Contudo, também pode carregar certa falta de compromisso, que também deve ser melhor observada. Ela pode estar tanto relacionada a uma forma de deixar o cliente tranqüilo, mesmo sabendo que seu assunto não vai ser significativamente tratado, quanto também pode demonstrar que o atendente não tem autonomia para garantir a resolução do problema. Pode significar que ainda vai consultar o chefe, o regulamento ou ver se terá tempo para tal. Notem que isso que estou falando não é nenhuma novidade. Quem fala e quem ouve sabe isso. No caso do telemarketing (mais acusado de abusar da gerundização), o cliente sabe que não tem garantia de ser atendido em sua demanda, mas pela forma respeitosa acaba tendo mais paciência. Essa é a pragmática dessa forma de modalizar o aspecto do gerúndio. Isso significa que o aspecto imperfectivo – ou seja, com idéia de continuidade, de que o fim da ação não está claro – pode ser utilizado para diminuir a possibilidade de concluir o que se pede: o que está no verbo. Possibilitando, também, que não se diga de forma acintosa que não é totalmente possível, uma maneira respeitosa, portanto. É uma forma de dizer "vou tentar muito (ou não), mas não posso garantir". Agora me responda: com que tempo verbal você diria isso, sem ser tão direto? Os legítimos falantes da língua resolveram dessa forma... afinal, como vimos, não tem a ver com tempo verbal, mas com aspecto e modalidade.

O outro fator é que, muitas vezes, torna-se irritante para algumas pessoas a utilização repetitiva dessa construção. Mas o fato de ser irritante não acontece somente com a gerundização. Isso também ocorre com "tipo assim...", "véio..." e tantas outras expressões que doem no nosso calo (talvez só no meu, que já passei dos vinte faz tempo). Mas, ao invés de procurar condenar, busco entender, para me comunicar melhor e compreender as outras pessoas. O que não podemos fazer é usar o gosto estético para dizer que algo está "errado" ou classificar quem se utiliza da gerundização como ignorante ou burro. Afinal, o uso da linguagem freqüentemente é utilizado para depreciar as pessoas. Isso acontece até com o presidente da República.

Sobre o decreto do Arruda, eu concordo e discordo. Concordo porque ele quer que as respostas dos funcionários públicos sejam mais pontuais, mais afirmativas. Isso ele fez porque reconheceu (antes de pesquisar, concluo) que a gerundização transmite a noção de incerteza. Por isso, espero que agora o governo possa dar mais condições aos atendentes da população do DF para passarem respostas conclusivas ao povo. Sem contar que concordo por outro motivo: o uso da gerundização é chato pra caramba... irritante! Mas essa posição puramente estética e pessoal não deve ser levada em conta nesse caso. Sobre o fato de ele utilizar o Diário Oficial para passar recados carregados de bom humor, não quero nem comentar. Pode passar uma má idéia utilizar um órgão oficial para essa finalidade.

A discordância está no fato de que, por decreto, não se muda nada na língua. Valério Probo, no século 1, já escreveu um apêndice dizendo para o povo parar de utilizar formas populares e voltar a fazer uso do que a gramática latina clássica orientava. Um exemplo é a palavra oculum, que nas ruas se falava oclum. Se tivessem obedecido, não falaríamos "olho" hoje. É um caminho sem volta. Um decreto para utilização do gramaticismo (olha o –ismo aí...) só pode funcionar com ameaças de prisão ou coisas parecidas. Só assim falamos português hoje e não a língua geral, já que o Marquês de Pombal mandava prender quem não utilizasse o português. Dessa forma, o decreto de Arruda pode ser chamado de Appendix Arrudae, já que não vai adiantar nada. Talvez nos domínios do GDF, se ele impuser alguma punição a quem utilizar a gerundização, mas sem o gerúndio (que é o que está escrito no decreto), não da para passar.

Por fim, entre as várias notícias sobre o assunto, uma pessoa dando entrevista disse o seguinte: "Acho que o governador tem coisa mais importante para ele estar fazendo, não é?" Brilhante!

Lamento dizer, até para mim mesmo, que essa prática não vai acabar. Repito que concordo com a irritação que o (ab)uso nos traz. Mas ela já existe e, como vimos acima (ainda que superficialmente), serve para satisfazer algumas demandas da sociedade.

Outubro de 2007

(segunda edição)