PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA: Uma reflexão acerca das possibilidades constitucionais de tolhimento do direito de ir e vir.*

 

  Henrique Kaian Souza Fonseca**

      Idbas Ribeiro de Araujo

 

 

 

Sumário: Introdução; 1 Histórico da prisão civil por dívida; 2 Característica dos dois casos permitidos pelo ordenamento jurídico brasileiro; 3 Posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Conclusão; Referências.

"Compara-se muitas vezes a crueldade do homem a das feras, mas isso é injuriar estas últimas."

(DOSTOIÉVSK)

 

RESUMO

Este trabalho consiste em uma investigação acerca da prisão civil por dívida, traçando uma evolução que remonta à antiguidade, passando pelas Constituições brasileiras até chegar á Constituição cidadã de 1988. Trataremos, portanto, de estabelecer uma relação entre o inadimplemento de uma obrigação e o tolhimento do direito de ir e vir. Há que se falar em justa medida, uma vez que cerceia-se a liberdade em função do inadimplemento? Por fim, faremos uma análise crítica acerca das permissões constitucionais da prisão civil por dívida, apresentando argumentos caracterizadores de verdadeira afronta a direitos fundamentais essenciais.      

PALAVRAS-CHAVE

Inadimplemento de obrigação. Prisão civil. Direitos fundamentais

 

 

INTRODUÇÃO

 

As discussões acerca da prisão civil por dívidas se mostram frequentes no Brasil, sejam do ponto de vista doutrinário, sejam do ponto de vista jurisprudencial. Parece-nos oportuno fazer uma reflexão acerca deste instituto tão importante que põe em cheque um direito fundamental para o cidadão, qual seja, o direito de ir e vir.

Buscaremos no decorrer deste trabalho compreender o processo histórico responsável por criar a prisão por dívida, remontando a épocas remotas das civilizações, até chegar aos nossos dias.

Apontaremos ainda algumas características do depositário infiel, bem como do inadimplente de obrigação alimentícia, de forma a identificá-los com a precisão pretendida pelo legislador constituinte, dando ênfase ao entendimento da Suprema Corte brasileira sobre o instituto em análise.

Por fim, faremos uma análise crítica acerca da prisão civil por dívida, elencando argumentos capazes de fundamentar a sua extinção do ordenamento jurídico pátrio.

            

    

1. HISTÓRICO DA PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA

A prisão civil é o recolhimento ao cárcere de determinado cidadão em função do inadimplemento de obrigação. Tem origem em uma dívida e consiste em um instrumento coercitivo do Estado capaz de obrigar este cidadão a pagar aquilo que deve. A este respeito, assim se pronuncia Álvaro Vilaça Azevedo[1]    

Prisão civil, assim é a que se realiza no âmbito estritamente do Direito Privado, interessando-nos, neste estudo, essencialmente, a que se consuma em razão de dívida impaga, ou seja, de um dever ou de uma obrigação descumprida e fundada em norma jurídica de natureza civil.  

Percebemos diante do brilhante esclarecimento do autor que tal instituto se dá em âmbito privado e não implica em uma condenação como as prisões de ordem penal.

Ainda sobre o instituto da prisão civil, o renomado jurista Pablo Stolze[2], ratificando o exposto acima, diz tratar-se de uma “medida de força, restritiva da liberdade humana, que, sem conotação de castigo, serve como meio coercitivo para forçar o cumprimento de determinada obrigação”.

Embora os ensinamentos destes doutrinadores esclareçam com precisão o teor deste instituto jurídico, para compreendermos a prisão civil por dívida da forma como a encontramos em nosso ordenamento jurídico atual, faz-se necessário resgatarmos sua história desde os primórdios, em civilizações da antiguidade, uma vez que, esta já apresentava sinais de existência entre os povos desta era histórica.

Entre os babilônicos, o famoso código de Hamurabi, um dos primeiros dispositivos legais da humanidade, já fazia referência à prisão do devedor, facultando ao credor o direito de levá-lo a prisão em razão do inadimplemento da obrigação contraída. Cabe ressaltar, no entanto, que tal permissão responsabilizava o credor pelos maus tratos e consequente morte do devedor, pagando este com a vida do seu próprio filho se o devedor fosse filho de um homem livre.

Este dispositivo de regulação da prisão civil por dívida encontrado no parágrafo dezesseis do referido código, traz consigo uma valorização excessiva da dívida, de forma a cercear o direito de ir e vir e nos casos de morte do devedor por maus tratos, sacrificar a vida de terceiros.

Ainda na antiguidade os egípcios também permitiram a prisão civil em função de dívida, concedendo aos credores o direito de escravizar o devedor até que se extinguisse o montante devido, sendo permitida ainda a venda do devedor com o objetivo de sanar a dívida.[3]        

Mas é no Direito Romano que encontramos as mais graves sanções oriundas do inadimplemento, sobretudo na Lei das XII Tábuas, quando em sua tábua III estabelece sérias punições ao inadimplente, conforme podemos observar:

IV – Aquele que confessa dívida perante o magistrado ou é condenado, terá 30 dias par pagar; V – Esgotados os 30 dias e não tendo pago, que seja agarrado e levado à presença do magistrado; VI – Se não paga e ninguém se apresenta como fiador, que o devedor seja levado pelo seu credor e amarrado pelo pescoço e pés com cadeias com peso até o máximo de 15 libras; ou menos, se assim o quiser o credor; VII – O devedor preso viverá à sua custa, se quiser; se não quiser, o credor que o mantém preso dar-lhe-á por dia uma libra de pão ou mais, a seu critério; VIII – Se não há conciliação, que o devedor fique preso por 60 dias; durante os quais será conduzido em 3 dias de feira ao comitium, onde se proclamará, em altas vozes, o valor da dívida; IX –Se são muitos os credores, é permitido, depois do terceiro dia de feira, dividir o corpo do devedor em tantos pedaços quanto sejam os credores, não importando cortar mais ou menos; se os credores preferirem, poderão vender o devedor a um estrangeiro, além do tibre. [4]

A partir destes relevantes dados, podemos perceber a permissão dada pelo legislador da antiguidade para a penhora ou prisão do corpo do devedor como garantia pessoal da dívida, de forma que, o credor, além de satisfazer-se no patrimônio do outro como garantia da obrigação contraída, ainda dispunha do corpo deste para satisfação do montante devido.

Com a evolução das sociedades politicamente organizadas e consequente conquista de direitos, a prisão civil por dívida foi sendo abolida dos ordenamentos jurídicos da maioria dos países europeus, sobretudo nos séculos XIX e XX, com a disseminação dos direitos humanos e o valor agregado à dignidade da pessoa humana.

No Brasil, as constituições de 1824 e 1891 ficaram silentes em relação a este assunto, que apenas na constituição de 1934 teve a atenção do constituinte ao proibir em seu artigo 113, aprisão civil por dívidas, multas ou custas.[5]

Da mesma forma, também silenciou o constituinte de 1937, não fazendo menção ao estatuto da prisão civil por dívida. Já as cartas constitucionais de 1946, 1967 e a conhecida como cidadã de 1988, claramente expressaram a vedação a este tipo de prisão, excetuando duas situações que merecem a nossa atenção, a saber, o depositário infiel e o inadimplente de obrigação alimentar.  

2. CARACTERÍSTICAS DOS DOIS TIPOS PERMITIDOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

 

            A prisão pelo inadimplemento de obrigação alimentícia é decorrente do princípio da proporcionalidade que reúne a necessidade do alimentado e a possibilidade do alimentante, não sendo incluído, portanto, os alimentos indenizatórios oriundos de atos ilícitos. Não há que se falar em pena, visto que, o cumprimento da pena eximiria o devedor das prestações vencidas, bem como das que hão de vencer, o que não acontece. Tal argumento se justifica pelo fato de que o pagamento da dívida obriga o Estado-juiz a suspender a prisão. É, portanto, um meio coercitivo de fazer o devedor cumprir com sua obrigação.

No caso do depositário infiel, o código civil de 2002 possui capítulo próprio que trata dessa matéria e assim determina em seu artigo 652: “Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos.”[6] Neste contexto, faz-se necessário distinguirmos o depósito contratual do depósito judicial, distinção esta que causa divergência entre civilistas a respeito da figura do depositário infiel.

O depósito judicial é ordenado pelo juiz para que alguém guarde os bens do executado, enquanto que o depósito contratual é proveniente da vontade das partes.

Silvio Rodrigues  Acontece que o legislador infraconstitucional a exemplo do decreto-lei 911/69[7], equiparou o devedor de alienação fiduciária em garantia, ao depositário infiel referido pelo constituinte, abrindo assim precedente para um tipo de prisão por dívida que não coaduna com o texto maior.       

 

 

3.  POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL 

 

               Embora a Constituição brasileira de 1988 tenha admitido a possibilidade de prisão civil por dívida em duas situações, esta mesma Constituição em seu artigo 3° permitiu a adesão do Brasil a tratados internacionais com força de emendas constitucionais.

              A Convenção Americana sobre Direito humanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica[8] da qual o Brasil é signatário, estabelece em seu artigo 7° § 7°, que ninguém será preso por dívida, autorizando somente a prisão do inadimplente de obrigação alimentícia. Desta forma, apesar das divergências doutrinárias e jurisprudenciais, o Supremo Tribunal Federal tem decidido no sentido de recepção pela Constituição, do tratado internacional referente a Direitos Humanos, conforme podemos observar no seguinte julgado:

Ementa

E M E N T A: "HABEAS CORPUS" - PRISÃO CIVIL - DEPOSITÁRIO JUDICIAL - REVOGAÇÃO DA SÚMULA 619/STF - A QUESTÃO DA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA - CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (ARTIGO 7º, n. 7) - NATUREZA CONSTITUCIONAL OU CARÁTER DE SUPRALEGALIDADE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS? - PEDIDO DEFERIDO. ILEGITIMIDADE JURÍDICA DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL, AINDA QUE SE CUIDE DE DEPOSITÁRIO JUDICIAL. - Não mais subsiste, no sistema normativo brasileiro, a prisão civil por infidelidade depositária, independentemente da modalidade de depósito, trate-se de depósito voluntário (convencional) ou cuide-se de depósito necessário, como o é o depósito judicial. Precedentes. (...) - Entendimento do Relator, Min. CELSO DE MELLO, que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos. A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO. (...)- Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29, ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano.[9]

 

CONCLUSÃO

 

A prisão civil por dívida foi utilizada durante muito tempo como mecanismo coercitivo do Estado nas mais diversas civilizações. Com o advento do princípio da responsabilidade patrimonial nos negócios jurídicos, o credor passa a satisfazer-se no patrimônio do devedor e não mais na execução pessoal deste.[10]

O instituto em análise não justifica o sacrifício do direito de ir e vir em função do patrimônio, principalmente nos tempos atuais onde a dignidade da pessoa humana se consolida com maior intensidade. O reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal do Pacto de São José da Costa Rica é uma expressão de maturidade da corte brasileira que coaduna com o Estado Democrático de Direito.

No que tange à prisão por inadimplemento de obrigação alimentícia, não há que se falar em extinção, uma vez que o bem jurídico tutelado é a vida do alimentado que depende do cumprimento da obrigação para continuar a emitir os sinais vitais. Na prática, faz-se necessário a execução de tal medida, visto que por outros meios não seria possível obrigar o inadimplente a cumprir com o seu dever.

Entendemos que o Estado Brasileiro segue tendência mundial de humanização do Direito, a fim de preservar a dignidade humana e garantir uma sociedade mais livre, justa e igualitária, como preconiza a Constituição da República.

Doutra forma, o Código Civil seguindo tendência de constitucionalização do Direito Civil, deve coadunar com o texto maior, extinguindo de seus artigos a possibilidade de  prisão do depositário infiel, seja por depósito judicial, seja por alienação fiduciária. 

                  

REFERÊNCIAS

 

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão Civil por Dívida. 2. ed. Ver. atual. e ampl. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2000.

GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume II: obrigações. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

Senado Federal. Novo Código Civil: exposição de motivos e texto sancionado. Brasília, 2009.

BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Rio de Janeiro, RJ. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm>. Consulta em: 10 abr. 2010.

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de Fevereiro de 1891). Rio de Janeiro, RJ. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Consulta em 10 abr. 2010.

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Rio de Janeiro, RJ. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm>. Consulta em 10 abr. 2010.

BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Rio de Janeiro, RJ. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm>. Consulta em: 10 abr. 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>. Consulta em 10 abr. 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm> Consulta em 10 abr. 2010.

BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de Novembro de 1992. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.dji.com.br/decretos/1992-000678/000678-1992_convencao_americana_sobre_direitos_humanos.htm>. Consulta em: 10 abr. 2010.

 

HC 96772 / SP – São Paulo. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA&base=baseAcordaos. Consulta em 10 abr. 2010.

 



* Artigo científico apresentado à disciplina de Direito das Obrigações do 3º período vespertino do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco ministrada pela professora Flávia Maranhão para obtenção de nota.

** Alunos do 3º período vespertino do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[1] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão Civil por Dívida. 2. ed. Ver. atual. e ampl. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2000. p 51.

[2] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume II: obrigações. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

[3] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Ob. cit., p 17.

[4] Ibdem. p 22.

[5] BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Rio de Janeiro, RJ. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm>. Consulta em 10 abr. 2010.

[6] Senado Federal. Novo Código Civil: exposição de motivos e texto sancionado. Brasília, 2009.

[7] Disponível em: http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:federal:decreto.lei:1969-10-01;911 consulta em 10 abr. 2010.

[8] Convenção Americana sobre Direitos Humanos aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo 27, de 25.09.1992, e promulgada pelo Decreto 678, de 06.11.1992

[9] HC 96772 / SP – São Paulo. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA&base=baseAcordaos. Consulta em 10 abr. 2010.

[10] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Op. cit., p. 27