Introdução:

Como se sabe, nos últimos tempos muito se tem discutido, sobretudo na Itália, acerca do principio da ofensividade ou da lesividade no Direito Penal. Ressalta-se que no presente artigo será usado o termo ofensividade.

Pretende-se discutir no presente trabalho a possibilidade do princípio da ofensividade atuar como limite ao legislador infra constitucional.Para se chegar a tal conclusão é necessário primeiro discutir sobre a normatividade dos princípios. Tal discussão é imperiosa pois o principio da ofensividade somente poderá limitar a atuação do legislador se admitirmos que os princípios tenham força normativa. É ainda necessário pesquisar acerca do acolhimento constitucional do mencionado princípio.

Por fim pretende-se analisar as conseqüências da força normativa do principio da ofensividade principalmente em tempos onde se exige a antecipação, a meu ver ilegítima, da tutela penal.

A normatividade dos princípios.

A evolução dos princípios na história do direito pode ser dividida em três fases a saber : a) o jusnaturalismo; b) o positivismo e c) o pos positivismo.

Durante o período em que o jusnaturalismo era a idéia dominante os princípios não tinham qualquer força normativa, ficavam orbitando o "...ordenamento jurídico com absoluta fluidez, isto é, de forma totalmente abstrata (e não dotado de certo grau de abstração, como atualmente se entende). Sua natureza normativa era nula."

Como se sabe o jusnaturalismo já de muito tempo foi superado, e entendemos que por isso não será necessário tecer maiores comentários, todavia, vale ressaltar a ausência de normatividade aos princípios.

A segunda fase é a fase do positivismo e que merecerá algumas considerações, na medida em que o positivismo está fortemente presente nos dias atuais. Durante grande parte do século passado a ciência jurídica foi amplamente dominada pelo positivismo jurídico.Tal domínio se deve, sobretudo, ao paradigma cientifico que vigorava em tal época.No início do século XX as ciências naturais alcançaram grande prestigio e sucesso, tomemos como exemplo a mecânica newtoniana e a teoria da evolução das espécies de Darwin. Afirmaram alguns que somente as ciências naturais eram ciências.

Diante do sucesso das ciências naturais era normal que as ciências sociais, dentre elas a ciência jurídica, importasse o método desenvolvido pelas ciências naturais na tentativa de alcançar o mesmo sucesso. E como se sabe o método até então usado pelas ciências naturais era o método empírico que consistia, grosso modo, em observar e descrever. Transportar tais pressupostos para a ciência jurídica significava dentre outras coisas, uma busca, até certo ponto insana, pela sistematicidade e pela segurança, assumindo uma postura meramente descritiva da realidade humana.

Uma importante repercussão do positivismo nas ciências penais foi a elaboração por Rocco do método técnico jurídico. Tal método é criticado, como de resto as várias tendências positivistas, sobretudo, por sua dependência da lógica-formal. Tal fato poderia conduzir o jurista ao desprezo pela realidade social. Na tentativa de solucionar tal problema Roxin propôs a incorporação ao método técnico jurídico as finalidades de política criminal

Sabe-se que o positivismo jurídico teve algumas variações, todavia, sua forma mais difundida e bem acabada foi o normativismo de Hans Kelsen. Segundo Luis Roberto Barroso são as principais característica do positivismo jurídico: "a) a aproximação quase plena entre Direito e norma; b) a afirmação da estabilidade do Direito: a ordem jurídica é una e emana do Estado: c)a completude do ordenamento jurídico, que contem conceitos e instrumentos suficientes e adequados para a solução de qualquer caso, inexistindo lacunas; d) o formalismo: a validade da norma decorre do procedimento seguido para sua criação independendo do conteúdo. Também aqui se insere o dogma da subsunção, herdado do formalismo alemão ."

Em relação à eficácia dos princípios, tema que ora nos interessa, o positivismo não negava a existências dos princípios. Embora não negasse a existências de princípios o positivismo os tinha como fontes normativas meramente subsidiárias. Os princípios eram meras "válvulas de segurança" destinados somente a confirmar a primazia da lei. Com isso os princípios não podiam se sobrepor às leis, carecendo, assim, de normatividade .

Após o fim da segunda guerra mundial o positivismo jurídico começou a ser questionado. Afirmavam, e não sem razão,que o Direito não pode ter uma postura neutra e puramente descritiva da realidade. Ressalta-se como causas da decadência do positivismo jurídico a perda de prestigio do método empírico, principalmente em razão da física quântica, e a queda dos regimes nazistas e fascistas .

Com a decadência do positivismo abriu-se espaço para novas formulações acerca das ciências jurídicas. Diante desse novo contexto surgiu o que se convencionou chamar de "pos- positivismo" mas que como bem alerta Luis Roberto Barroso "o pós positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso".

Neste ponto é a terceira fase da evolução dos princípios. É característica marcante desse nova fase pós positivista a atribuição de força normativa aos princípios constitucionais.

É bem verdade que os princípios sempre estiveram presentes nos ordenamentos jurídicos, todavia, neste novo contexto, os princípios consagrados explícita ou implicitamente pela constituição passam a ter força de norma. Pode-se afirmar enfim que norma é gênero do qual princípios e regras são espécies.

A ofensividade como principio constitucional.

O princípio da ofensividade é anunciado no antigo brocado latino nulum crimem sine iniuria. Mencionado princípio nos diz que não há crime sem lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico penal. Sem entrar profundamente no que consiste o perigo, o que fugiria ao propósito deste trabalho, pode-se afirmar que perigo é a probabilidade de dano. Portanto, não haverá crime sem, no mínimo, o perigo de dano ao bem jurídico penal.

Diante da normatividade dos princípios constitucionais cabe agora buscar o fundamento constitucional da ofensividade.

É certo que Constituição da República não consagra de forma expressa o princípio da ofensividade, todavia, acreditamos que o princípio em questão encontra-se implicitamente acolhido pela Carta Política de 1988. Em nosso entendimento o princípio da ofensividade é conseqüência lógica do principio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade, não se pretende aqui entrar na discussão acerca da diferença entre razoabilidade e proporcionalidade, manifesta-se de três maneiras, a saber: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Interessa ao presente trabalho a proporcionalidade em sentido estrito, pois como bem afirma Prietro Del Pino o princípio da lesividade é decorrente da proporcionalidade em sentido estrito .

A proporcionalidade em sentido estrito demanda "do legislador um sopesamento de importância entre direitos, bens, valores ou interesses em conflito" . Sendo assim ao tipificar uma conduta o legislador estará diante de um conflito de interesses: De um lado a liberdade individual e de outro o poder dever de punir do Estado. Com Ferrajoli podemos afirmar que "seria ilógico, entender que se admita privações de um bem constitucionalmente primário, como é a liberdade pessoal, se não se fizesse presente o intuito de evitar ataques a bens de categoria igualmente constitucional".

Como nos informa José Adércio o princípio da proporcionalidade é usado pelo conselho constitucional francês na tentativa de exigir do legislador um equilíbrio nas suas opções legislativas, sobretudo na definição de crimes e penas .

Acreditamos estar demonstrada a natureza constitucional do principio da ofensividade. Por fim cabe afirmar que dentre as quatro categorias de princípios constitucionais elencados por Canotilho pode-se aceitar que o princípio da ofensividade está entre os chamados princípios-garantia. Tais princípios são instituídos como verdadeiras garantias em favor do cidadão contra o poder do Estado.

Podemos citar, alem do principio da ofensividade, os princípios da legalidade, da culpabilidade e da irretroatividade da lei penal como outros exemplos de princípios-garantias. Ressalta-se que os princípios-garantias devem ser entendidos, especificamente na seara do Direito Penal, não como o fundamento do direito de punir mas sim como limites ao direito de punir.

O principio da ofensividade e a antecipação da tutela penal.

O princípio da ofensividade, implicitamente consagrado pela Constituição de 1988, desempenha duas funções no ordenamento jurídico. A primeira função é a de limitar o legislador, ou seja, é a limitação do ius puniendi. A segunda, e não menos importante, função do principio da ofensividade é à função de limitar o ius poenale,ou seja, após praticado o fato é preciso averiguar se no caso concreto houve ou não lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico.

Interessa ao presente trabalho especificamente a primeira função atribuída ao principio da ofensividade que é a função de limitar o ius puniendi. Nesse sentido e de acordo com o principio ora estudado o legislador não está autorizado a incriminar qualquer conduta, mas somente aquelas condutas que causem no mínimo um perigo de lesão ao penal jurídico.

A função de limitar o ius pouniendi relaciona-se com a maneira como se faz a tutela penal. Após a escolha do interesse a ser tutelado pelo Direito Penal é feita a análise do modo como a esta tutela será implementada. Afirma-se que de acordo com o princípio da ofensividade nem toda forma de tutela ao bem jurídico penal será constitucional.

O que se está propondo neste artigo é o controle não somente formal da atividade legislativa ao criar condutas típicas, mas também um controle material, ou seja, um controle do seu conteúdo.

Especialmente nos tempos atuais em que, como bem observa Jesús Maria Silva Sánchez , ocorre uma denominada expansão do Direito Penal o princípio da ofensividade terá papel essencial na busca de um Direito Penal mínimo e garantista em conformidade com o Estado Democrático de Direito.

A expansão do Direito Penal ocorre de várias formas mas sobretudo pela antecipação da tutela penal que se dá pela criação cada vez mais acentuada de crimes de perigo abstrato ou presumido e pela tipificação de atos preparatórios.

Crimes de perigo abstrato são todos aqueles tipos penais onde não existe a previsão expressa do perigo concreto ao bem jurídico, basta a estes tipos penais tão somente a presunção de perigo. É fácil notar a evidente contradição existente entre o princípio da ofensividade e a tipificação de crimes de perigo abstrato. O princípio da ofensividade como limite à atividade legislativa somente autoriza ao legislador tipificar condutas que causem um perigo concreto e não abstrato ou presumido ao bem jurídico alvo da tutela penal.

É comum também como forma de antecipação da tutela penal a tipificação autônoma de atos que consistem em meros atos preparatórios de outros delitos. Ressalta-se que em matéria de tentativa não se pune os atos preparatórios mas somente os atos de execução. Os atos preparatórios são por definição uma etapa anterior à execução, por isso a meu ver incapaz de gerar perigo concreto ao objeto da tutela penal. Neste casso também verifica-se a inconstitucionalidade de tais incriminações, tendo em vista a força normativa do princípio da ofensividade.

BIBLIOGRAFIA.

AMARAL. Cláudio do Prado. Princípios Penais. IBCCRIM. São Paulo, 2003

BARROSO Luis Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro. In Revista de Diálogo Jurídico (www.direitopúblico.com.br) .

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2002

PAGLIARO, Antonio. Principi di Diritto Penale. Giuffré Editore. Milano 2003

PRIETRO DEL PINO, A. M. El Derecho Penal ante el uso de informacion privilegiada em el mercado de valore. Apud RIPOLLÉS, José Luis. A racionalidade das leis penais. Tradução Luiz Regis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

SAMPAIO, José Adércio leite. O retorno às Tradições: A Razoabilidade como Parâmetro Constitucional. In Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Del Rey. Belo Horizonte2003.

Sanches, Jesus Maria Silva. A expansão do Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.