É de conhecimento geral que o princípio da insignificância é um tema que causa discussões acerca de sua aplicabilidade ou não, especialmente, na seara da justiça militar. Tal fato justifica-se devido ao alto grau de abstração que gravita em torno da caracterização do instituto, uma vez que não existe método eficaz que seja capaz de aferir com exatidão a sua incidência. Incontestavelmente, faz-se necessário criar parâmetros que sejam eficientes na apuração do referido princípio, a fim de que se evite o seu desuso, ou, até mesmo, venha a causar a sua extinção no mundo jurídico. Dessa maneira, acredita-se que seria possível impedir que processos cheguem aos tribunais para julgamento de crimes que, na maioria dos casos, poderiam ser arquivados, em razão de a lesão ao bem jurídico ser ínfimo. Assim, constata-se que através da aplicação de técnicas explícitas seriam eficazes para se evitar injustiças e preservar princípios básicos que norteiam o ordenamento jurídico.

INTRODUÇÃO

A função do Direito Penal num Estado Democrático de Direito conforme o entendimento da doutrina brasileira é a proteção de bens jurídicos fundamentais.[1] Nesse sentido, cumpre perquirir à luz da função do direito penal o princípio da insignificância o qual foi cunhado pela primeira vez por Claus Roxin em 1964, que voltou a repeti-lo em sua obra Política Criminal Y Sistema del Derecho Penal.[2] Segundo os ensinamentos de Roxin, “uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação de Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito.[3] Cabe ressaltar, ainda, o pensamento de Binding e Jescheck, o Direito Penal, assim, um caráter fragmentário, pois não encerra um sistema exaustivo de proteção aos bens jurídicos, mas apenas elege, de acordo com o critério do “merecimento da pena” determinados pontos essenciais.[4] Isto, obviamente, torna-se mais difícil na seara da justiça militar, pois, as garantias dos valores militares devem ser preservadas a fim de garantir a manutenção da hierarquia e da disciplina que são os pilares basilares de sustentação das Forças Armadas. Assim, o presente artigo tem por objetivo esclarecer os aspectos relevantes do instituto e apontar as características necessárias que possam servir de orientação para a sua aplicabilidade na vida castrense, sem afrontar os valores militares.

1. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

1.1 Conceito

O conceito do princípio da insignificância ou bagatela não se encontra definido em nossa legislação. Com isso, observa-se que a interpretação doutrinária e jurisprudencial vem balizando as condutas tidas como insignificantes, com o objetivo de respeitar o princípio da intervenção mínima do direito penal. De acordo com Vico Mañas: "O princípio da insignificância é um instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma relevante os bens jurídicos".[5] Desse modo, observar-se que a conceituação do instituto está ligada intimamente com o princípio da intervenção mínima do direito penal, visto que este se objetiva a proteger bens jurídicos relevantes.

2. CARACTERÍSTICAS DA INSIGNIFICÂNCIA

2.1 Insignificância da conduta e do resultado

O princípio da insignificância deve ser analisado sobre dois aspectos, isto é, observar-se-á o comportamento humano e o resultado produzido. Como por exemplo, no delito de arremesso de projétil (CP, Art. 264: “Arremessar projétil contra veículo, em movimento, destinado ao transporte público por terra, por água ou pelo ar”), quem arremessa contra um ônibus em movimento uma bolinha de papel pratica uma conduta absolutamente insignificante; no delito de inundação (CP, Art. 254: “Causar inundação, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem”), quem joga um copo d’água numa represa de 10 milhões de litros de água pratica uma conduta absolutamente insignificante. Dessa maneira, verifica-se que o delito praticado é absolutamente insignificante não podendo ser imputado à conduta do agente. Mas ficaria impune o autor do fato insignificante? Não. Segundo, leciona o professor Luiz Flávio Gomes em artigo publicado, esclarece: “Deve recair sobre ele todas as sanções civis (indenização), trabalhistas (despedida do empregado, quando o caso) etc. O que não se justifica é a aplicação do Direito penal. Registre-se, ainda, a previsão do Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969 – Código Penal Militar, no Art. 209 § 6º: “no caso de lesões levíssimas, o juiz pode considerar a infração como disciplinar”. Nesta hipótese, caberá tão somente a absolvição pelo magistrado.[6] Não devemos utilizar o canhão para matar um passarinho!”.[7]

2.2 Distinção do Crime de Pequeno Valor

Em que pese o princípio da insignificância ser de fácil constatação pela aplicação pura e simples da interpretação literal, vejamos o significado de acordo com o dicionário “que não tem valor; reles”. Neste caso, pode-se ter como exemplo, o furto de um clips, uma folha de papel, uma caneta, etc. Mas, tal procedimento não parece ser decisivo ou satisfatório para a sua aplicação, especialmente, se o fato ocorre dentro do aquartelamento, pois, inexiste qualquer lei ou regulamento que esclareçam as formas ou condições necessárias que viabilizem a sua aplicabilidade. Consoante, artigo publicado pelo Ministro-presidente Henrique Marini e Souza, do STM - “entende-se pequeno valor que não exceda a 1/10 da quantia mensal do mais alto salário mínimo do País”.[8] Cabe ressaltar, o Art. 240 §1º e § 2º, do CPM:[9] “§ 1º Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela detenção, diminuí-la de 1 (um) a 2/3 (dois terços), ou considerar a infração como disciplinar. Entende-se pequeno o valor que não exceda a 1/10 (um décimo) da quantia mensal do mais alto salário mínimo do país” e o “§ 2º A atenuação do parágrafo anterior é igualmente aplicável no caso em que o criminoso, sendo primário, restitui a coisa ao seu dono ou repara o dano causado, antes de instaurada a ação penal”. Vale mencionar, ainda, o disposto no Art. 260, caput, do CPM, na hipótese de dano atenuado, senão vejamos: “...se o criminoso, sendo primário e a coisa é de valor não excedente a 1/10 (um décimo) do salário mínimo, o juiz pode atenuar a pena ou considerar a infração como disciplinar”.[10] E, também, a hipótese de Receptação culposa, elencada no Art. 255, § único, do CPM: “Se o agente é primário e o valor da coisa não é superior a 1/10 (um décimo) do salário mínimo, o juiz pode deixar de aplicar a pena”[11]. Logo, percebe-se que essa linha demarcatória do crime de pequeno valor poderá servir como elemento de distinção, já que não se poderá falar em princípio da bagatela quando o valor coincidir com o crime de pequeno valor. Assim, verifica-se que a existência de limites se torna necessária para que seja possível a aplicação do referido princípio e, ainda, no caso de aplicação na caserna, deve-se atentar para os princípios que regem a vida militar.

3. CONFLITO DOS TRIBUNAIS

3.1 Posição do Supremo Tribunal Federal

Na lição de Rogério Greco o entendimento do tribunal é pela possibilidade de sua aplicação nos delitos patrimoniais cometido sem violência, consoante se verifica na ementa transcrita:[12] “...conseqüente descaracterização da tipicidade penal, em seu aspecto material. Delito de furto. Condenação imposta a jovem desempregado, com apenas 19 anos de idade. Res furtiva no valor de R$ 25,00 (equivalente a 9,6 % do salário mínimo atualmente em vigor). Considerações em torno da jurisprudência do STF. Pedido deferido. O Princípio da Insignificância qualifica-se como fator de descaracterização da tipicidade penal.[13] Dessa forma, verifica-se que o STF adotou o critério objetivo para possibilitar a aplicação do princípio da insignificância.

3.2 Posição do Superior Tribunal de Justiça

A posição do STJ é que nos casos patrimoniais violentos, existe resistência com relação à aplicação do princípio, como se vê, a seguir:[14] “Não há como aplicar, aos crimes de roubo, o princípio da insignificância, causa supra legal de exclusão de ilicitude, pois, trata-se de delito complexo, em que há ofensa a bens jurídicos diversos (patrimônio e integridade física da pessoa), é inviável a afirmação do desinteresse estatal á sua repressão. Acrescente-se, que, sob o prisma da tipicidade material, a lesividade ao patrimônio da vítima não foi irrelevante, porquanto, ainda que o valor do bem, uma bicicleta, seja inferior a um salário mínimo, era o seu meio de locomoção urbano”.[15] Diferentemente do STF, observa-se que o STJ não considera a aplicação do princípio da bagatela, uma vez que para a caracterização da insignificância, devem ser considerados os aspectos econômicos da vítima, isto é, se o bem lesionado é irrelevante para vítima. Neste caso, constata-se que o tribunal adotou o critério subjetivo para aferição e aplicação do princípio da bagatela.

3.3 Posição do Superior Tribunal Militar

O entendimento do STM é que não é o valor monetário da Res fator decisivo para selar o destino do agente, mas o relevante prejuízo para as FFAA e para a sociedade em geral. “O ‘amigo de o alheio militar’ não se compara ao ladrão comum”. Este, se descuidista, surrupia, conforme lhe favorece a ocasião ou, predeterminado, escala, rompe obstáculo, desprovido de qualquer obrigação que não seja a do seu ato, se descoberto. Aquele, ao se apossar do que não lhe pertence, fere, ao menos, três deveres igualmente importantes: seu dever de ofício, comum a todos os servidores públicos (Art. 37 CF); seu dever de lealdade para com a Pátria e com a sociedade que prometeu defender em juramento solene (Art. 32 do Estatuto dos Militares) e; seu dever de lealdade com a Força a que pertence, lastreada na disciplina e na hierarquia (Art. 142, CF).[16] Assim, pode-se verificar que o STM não considera apenas os aspectos econômicos, mas sim os valores militares que estão presentes nas FFAA e que são os pilares de sustentação da instituição.

4. HIPÓTESES DE APLICAÇÃO DO INSTITUTO NA CASERNA

4.1 Inaplicabilidade do princípio da insignificância

A melhor jurisprudência não tem acatado o princípio da insignificância como hábil a afastar a tipicidade da conduta, quando presente delito complexo, diante da proteção que existe a mais de um bem jurídico. Pois, se em outros dispositivos legais o regramento do delito complexo se faz de forma una, conservando o crime complexo em sua integridade, também para fins de se afastar a incidência do princípio da bagatela se haverá de tratá-lo como crime único e não como uma espécie jurídica dissecável”.[17] Na dicção do Ministro-presidente Henrique Marini e Souza: “...nos casos de lesões corporais (Art. 209, §6º, do CPM) envolvendo superior e inferior hierárquico, não importando quem seja o autor ou mesmo em casos de agressões recíprocas. Independentemente “da gravidade das lesões, vulnerados estariam valores essenciais à sobrevivência das FFAA”.[18] Dessa forma, vislumbra-se que a aplicação da bagatela não está adstrita unicamente ao valor do bem jurídico, devendo-se analisar também se outros bens juridicamente protegidos foram violados.

4.2 Hipóteses de aplicabilidade aos Servidores da Pátria

A aplicação do princípio da insignificância deverá pautar-se nos valores e costumes militares, com intuito de blindar os princípios da hierarquia e da disciplina que são os dois principais pilares das FFAA. O entendimento do Ministro-presidente Henrique Marini e Souza, do STM, considera a possibilidade de haver a aplicação do princípio da bagatela quando a lesão ao bem jurídico ocorrer entre militares do mesmo círculo, conforme se pode observar: “...quando os envolvidos são do mesmo círculo, em particular quando se trata de soldados que estão prestando o serviço militar obrigatório, no caso de lesões corporais levíssimas, levando-se em conta outros fatores, como a primariedade, o Princípio da Insignificância permite considerar a infração como disciplinar.”[19]. Desse modo, observa-se que é possível a aplicação do referido instituto, desde que não se verifique uma afronta direta a Administração Pública, aos costumes militares, a hierarquia e a disciplina. O STF reconhece a aplicabilidade do princípio da insignificância na Justiça Militar, de acordo com o transcrito abaixo:[20] “...a 1ª turma, por maioria, deferiu habeas corpus impetrado em favor de militar denunciado pela suposta prática do crime de peculato (CPM, Art. 303), consistente na subtração de fogão da Fazenda Nacional, não obstante tivesse recolhido ao erário o valor correspondente ao bem”.[21] Depreende-se, assim, que a hierarquia e a disciplina são pilares basilares das FFAA e que a missão imposta constitucionalmente acaba por refletir um maior rigor no cumprimento de seus misteres, visto que atua na defesa da pátria. Dessa forma, deve-se fazer a análise adequada a fim de possibilitar a incidência do princípio da insignificância à vida castrense.

CONCLUSÃO

A questão tratada é extremamente controvertida, como se pode verificar até o presente momento. Observo que a solução mais adequada seria delinear critérios objetivos e subjetivos de valoração para aplicabilidade do princípio da insignificância. Este princípio exclui a tipicidade, mas só pode ser estabelecida através da consideração conglobada da norma, toda ordem normativa persegue uma finalidade, tem um sentido, que é a garantia jurídica para possibilitar a coexistência que evite a guerra civil. A tipicidade conglobante não é - com a teoria da adequação social da conduta - uma concepção corretiva proveniente da ética social material, é sim uma concepção normativa. Leciona Cezar Roberto Bittencourt a insignificância só pode ser valorada através da consideração global da ordem jurídica. Desse modo, verifico que a incidência da insignificância deve repercuti em ambos os aspectos. No primeiro, deve-se levar em conta o valor da lesão; no segundo, os valores sociais e sua repercussão interna e externa. Na hipótese de aplicação do referido instituto o intérprete deverá abster-se de analisar a figura do suposto transgressor e verificar se o fato cometido causa repercussão dentro do aquartelamento e se atenta ou não contra a hierarquia e a disciplina. Tal aferição deve pautar-se de modo a ser evitar que muitos delitos de natureza leve deixem de ser punidos por serem considerados insignificantes. Assim, pode-se inferir que é necessária a análise de aspectos objetivos e subjetivos para a sua incidência, desde que não haja afronta direta aos valores militares.

[1] Cezar Roberto Bittencourt apud Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos de direito penal. 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 1995, p. 3 e 6; Frederico Marques, Tratado de Direito Penal, Campinas, Millenium, 1999, V III, p. 143; Basileu Garcia, Instituições do direito penal, 4ª ed.; São Paulo, Max Limonad, 1976, V I, t. II, p. 406; Damásio E. de Jesus, Direito Penal, Parte Geral, 19ª ed.; São Paulo, Saraiva, 1995, V I, p. 456-457.

[2] Cezar Roberto Bittencourt apud Claus Roxin, Política Criminal Y Sistema del Derecho Penal, Barcelona, Bosh, 1972, p. 53.

[3] Roxin, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

[4] Mirabete, Júlio Fabbrini apud cf. Jescheck, Hans, Heinrich. Tratado de derecho penal: parte general. 3. ed. Barcelona: Bosh, 1981. v.1, p. 73.

[5] Vico Mañas, Carlos. O Princípio da Insignificância no Direito Penal. Artigo extraído da Internet em 12.02.2000, site: http://www.mt.trf1.gov.br/judice/jud4/insign.htm.

[6] Lazzarini, Álvaro. Coleção RT Mini Códigos. 6ª ed. revista e atualizada e ampliada, São Paulo: RT, 2005, p.361.

[7] http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3068, acessado em 26/01/08, às 09:52 h

[8]http://www.stm.gov.br/serv_temporarios/revista_stm/revistastm_2007_n5.pdf, acessado em 10.02.08, às 17:09 h)

[9] Lazzarini, Álvaro. Coleção RT Mini Códigos. 6ª ed. revista e atualizada e ampliada, São Paulo: RT, 2005, p.368.

[10] Idem, p. 373.

[11] Idem, p. 372.

[12] Greco, Rogério. Curso de Direito Penal, p. 68.

[13] STF – HC 84412 MC/SP – 2ª turma – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no DJ de 19 Nov 2004, p. 00037.

[14] Greco, Rogério. Curso de Direito Penal, p. 68.

[15] HC 37423/DF – Habeas Corpus – 2004/0110246-0, 5ª turma – Rel. Min. Laurita Vaz, publicado no DJ de 14 março de 2005, p. 396.

[16] Ob. Cit., autor Jorge Cesar de Assis.

[17] Ob. Cit., autor Rogério Felipeto.

[18] Texto extraído do artigo. Aplicação do princípio da insignificância na Justiça Penal Castrense. Publicado na Revista do Superior Tribunal Militar, ano 4, nº 5, de janeiro a junho de 2007 – autor Ministro-presidente Henrique Marini e Souza, do STM. http://www.stm.gov.br/serv_temporarios/revista_stm/revistastm_2007_n5.pdf, acessado em 10.02.08, às 17:09 h.

[19] Ob. Cit., autor Ministro-presidente Henrique Marini e Souza, do STM.

[20] Ob. Cit., autor Jorge Cesar de Assis.

[21] STF. HC 87.478-9/PA. Relator: Eros Grau. Brasília, acórdão de 29 ago. 2006. Informativo, Brasília, n. 418, 6-10 mar. 2006.