Principais elementos e contextos da formação do espaço agrário no estado do Acre

Anderson Azevedo Mesquita*
Daniela Lopes da Silva**

O espaço agrário acriano foi construído e ainda se constrói por diversos contextos e elementos advindos de inúmeras relações de poder, que muitas vezes se demonstram conflituosas, tendo em vista, o jogo de interesses típicos das relações capitalistas e de suas atividades no seio da sociedade. Estas relações formam a teia de um complexo jogo onde o objetivo é por muitas vezes manter a identidade enquanto cultura em um determinado espaço adquirido como "lugar", é a luta pela "terra", pelo local de sua sobrevivência, lugar onde se criou os filhos, onde se viu crescer o pequeno roçado de mandioca e de milho, onde os patos, as galinhas e a pequena criação de gado eram mantidos para a subsistência da família e onde o excedente era trocado por outros mantimentos com os vizinhos de moradia.
Enfim, é tocante afirmar que muitas pessoas mantêm afeto pelo "lugar" onde nasceu, lugar em que a família foi construída, contudo, esse "afeto" natural não pode ser levado ao "pé" da letra quando se faz referência ao modelo econômico em vigência na sociedade contemporânea. É do conhecimento de todos que no decorrer da história a terra passa a ser capitalizada, ou seja, o capitalismo monetarizou e agregou valores a terra e a tudo que possa advir da mesma, isso naturalmente aguçou a ganância desmedida pela sua posse e pelo seu controle, fato que nos leva a enfrentar um contexto de tensões e conflitos em adquirir o direito de possuí-la e de ali manter atividades econômicas, políticas, sociais e culturais diversas.
Dentro desta lógica, entender como se formou o espaço agrário acriano torna-se imprescindível para compreender os atuais conflitos neles materializados, assim como, para fomentar políticas públicas diversificadas que venham atender os diversos atores envolvidos nesse contexto, contudo, respeitando e dando o direito ao acesso a terra para aqueles que realmente tenham o real direito em possuí-las. Portanto, nesta percepção onde entender o processo histórico de formação do espaço agrário acriano torna-se um ponto essencial para compreender e fomentar elementos para atuação de políticas do presente será seguido um percurso histórico que tem origem ainda no Brasil colônia.
A exploração do território brasileiro foi iniciada a partir de atividades econômicas sempre centralizadas na região litorânea do país, assim se deu com a exploração do pau-brasil e posteriormente com a cana-de-açúcar. O fato é que neste momento a região amazônica não era vista como uma parte do território que pudesse ser vista como uma fonte de exploração, pelo contrário, pouco se sabia desta porção do espaço brasileiro, salvo algumas expedições realizadas por navegadores que adentrando nos rios amazônicos foram os primeiros a descrever as incríveis características da grande biodiversidade da imensa floresta. (GALEANO, 2008)
Assim sendo, nos primeiros momentos de construção do espaço amazônico tem-se a figura dos jesuítas que subiam os rios na busca de disseminar a fé cristã e a cultura portuguesa para aqueles povos "não civilizados". Outro fator marcante neste período inicial foi à construção de diversos fortes militares, cujo objetivo era exercer o controle da região amazônica, controlando a entrada e a saída da região através dos rios, uma vez que neste período esta era a única via de acesso nesta porção longínqua do território.
Posteriormente os jesuítas foram expulsos, contudo, a sua influência frente as civilizações nativas já teriam sido suficientemente forte para alterar significativamente as características culturais destes povos, chegando a formar a população conhecida como caboclos, que por sua vez tiveram importância para a materialização das primeiras atividades econômicas na região, estes desenvolviam produção para subsistência, e os possíveis excedentes eram trocados nos rios amazônicos pela figura dos regatões, assim tinha-se o quadro da exploração das drogas do sertão. (SILVA, 2005)
As "drogas do sertão" foram uma das primeiras atividades de exploração econômica da região amazônica, entretanto, somente no século XIX que efetivamente esta porção do espaço brasileiro passa a ter um valor estratégico, e, portanto, alvo significativo de exploração, era a descoberta do uso da borracha e a sua importância para atender as necessidades do mercado consumidor mundial. Neste contexto, tem-se a instalação da empresa extrativista da borracha e dentro desta lógica uma nova "atmosfera" de relações político-sociais serão materializadas no interfluxo da interação homem-homem e homem-natureza.
Frente a esta nova lógica onde se configura a implementação da empresa extrativista da borracha, uma nova relação baseada na exploração desmedida do seringueiro é efetivada, por intermédio do sistema de aviamento foi polarizado o fluxo de riqueza do interior da floresta para as regiões de Belém e Manaus, e o seringueiro vivia num sistema de exploração desumano onde a dívida adquirida com o seringalista dificilmente poderia ser paga, era um mecanismo despótico para manter o seringueiro na floresta coletando látex.
O fluxo de riqueza conquistado durante o que ficou conhecido como o primeiro surto da borracha, teve um duro golpe quando os seringais na Malásia passaram a produzir um produto de melhor qualidade e mais próximo dos centros de comércio, ou seja, a borracha amazônica passa a competir com um produto superior no mercado e o resultado é a falência gradativa do sistema de exploração de borracha implantado no Acre. Neste período a lógica de exploração desmedida em relação ao seringueiro passa a não ter mais tanto "sentido", uma vez que a borracha havia perdido lugar no mercado e assim tornava-se inviável ao seringalista manter o sistema no interior de seus seringais.
Logo, é neste período de crise que os seringueiros gozam de uma melhor qualidade de vida, ou seja, tendo em vista que a opressão e a exploração do seringalista em relação ao seringueiro não era mais "necessária" devido ao problema da crise da produção gumífera , estes por sua vez passaram a produzir e cultivar algumas culturas para a sua subsistência e até mesmo realizando o comércio dos excedentes, cabe lembrar que a exploração dos produtos florestais não deixaram de existir, a borracha e até a castanha continuaram a ser exploradas, porém, o seringueiro gozava de certa liberdade para manter uma pequena roça sem o controle opressor direto do seringalista.
Ainda delimitando o processo histórico de formação do espaço agrário acriano, um elemento marcante deve ser descrito, diz-se isso ao fato da possível diferenciação entre o trabalhador seringueiro e de uma nova classe de trabalhadores, que mais a frente seriam conhecidos como colonos. Tal contexto aplica-se ao fato que durante a Revolução Acriana, momento em que existiram conflitos entre as forças revolucionárias e o exercito boliviano, pela posse do território acriano, algumas medidas foram tomadas, sobretudo, direcionando muitos dos seringueiros a trabalharem exclusivamente com a produção agrícola, nesta lógica o objetivo maior era abastecer com mantimentos a população em períodos de conflitos. Contudo, é marcante que ali se dava subsídios para a criação de uma nova categoria de trabalhadores, ou seja, aqueles que exclusivamente trabalhariam com atividades estritamente agrícolas e não mais com atividades de exploração de produtos florestais. (SILVA, 2005)
Durante a década de 40, em especifico durante a 2² Guerra Mundial, novamente o Acre se torna um ponto estratégico em relação a economia gumífera, ou seja, é o conhecido segundo surto da borracha acriano. Contudo, este período foi curto e novamente após o esfacelamento do conflito mundial, a situação dos seringais acrianos volta ao esquecimento e decadência advinda do insucesso perante a competição no mercado com a borracha produzida nos seringais asiáticos da Malásia. Assim, gradativamente os seringueiros passam de fato a ser liberados para a produção agrícola e de criação de animais. Ainda neste contexto o governo passa a implementar políticas de reassentamento familiar, criando as colônias agrícolas localizadas nas proximidades das cidades e eram originadas de seringais desapropriados.
Durante a década de 60 e 70, o Acre passa a ser alvo da Frente Pioneira da Pecuária, que neste período encontrou no território acriano um contexto prospero para implementar suas ambições. É evidente que este processo demonstrou-se mais como um período de grande especulação fundiária, uma vez que muitos dos "paulistas" somente se apossaram das inúmeras facilitações e subsídios oferecidos pelo governo e dos preços ofertados pelas terras acrianas que se demonstravam irrisórios e desconexo com o preço real praticado no mercado. Outro fluxo de povoamento e de colonização do território acriano foi estabelecido pelos "paranaenses" , que se destinavam ao Acre em busca de uma vida melhor, enganados por falsas propagandas de especuladores fundiários.
Em conjunto com essa realidade do fluxo de pessoas advindas do centro-sul do país com destino ao Acre, existia uma realidade local onde várias famílias necessitavam regularizar ou possuir um local para trabalhar e efetivar sua vivência. Neste quadro contextual o governo passa a criar os PADs (Projeto de Assentamentos Dirigidos) e os PAEs (Projeto de Assentamento Extrativistas), em ambos buscava-se teoricamente sanar os conflitos pela terra, além de fomentar uma estrutura organizacional de economia baseada na produção agrícola (PADs) e no extrativismo (PAEs).
Entretanto, mesmo que a pretensão governamental ao implementar a criação de Projetos de Assentamento Dirigidos e Extrativistas (PADs e PAEs), fosse a de diminuir as tensões pelo conflito referente ao acesso a terra, ou mesmo para desenvolver uma estrutura organizacional de economia. Na verdade o que ocorreu foi uma nova forma de expropriação destas pessoas, sobretudo, devido a falta de assistência e de meios necessários para o desenvolvimento social e econômico destas famílias então assentadas, muitas se viam em um labirinto sem fim, onde independente do local que fossem, continuariam perdidas e esquecidas.
Ainda enfatizando as políticas de assentamento desenvolvidas pelo governo, têm-se as Reservas Extrativistas (RESEXs) e os Pólos Agroflorestais. As RESEXs se conceituam como uma área florestal utilizada por populações tradicionais, como os seringueiros, por exemplo, e que mantém a sua sobrevivência através do extrativismo, podendo complementar suas atividades com a prática da agricultura de subsistência ou com a criação de pequenos animais. O ponto chave referente as RESEXs é que estas tem como objetivo proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.
As RESEXs, materializam um sonho coletivo buscado em muitas das reivindicações de grupos sociais tradicionais como os seringueiros que por muitos anos galgavam pelo direito de garantir sua subsistência e qualidade de vida, no lugar de sua origem e vivência, ou seja, na floresta. Outro aspecto importante na lógica das RESEXs, é o que concerne a exploração sustentável dos recursos naturais da floresta, que neste sentido é realizada sob o critério da sustentabilidade e manutenção dos mesmos, a fim de atender as necessidades das gerações futuras, ou seja, busca-se um consenso entre a exploração e a capacidade de regenaração dos recursos naturais.
Os pólos Agroflorestais, segundo o prof.º Silvio Simione caracterizam-se pelos seguintes aspectos:

"Assim, os requisitos para uma área ser transformada em pólo agro-florestal são: a proximidade do mercado de consumo, infra-estrutura viária que possibilite o escoamento da produção, o acesso a serviços sociais indispensáveis (saúde, educação e energia), o fato da área situar-se em solos com aptidões para a atividade a que é destinada e a possibildiade de ser assistida por serviço de extensão rural." (SILVA, 2005, p. 77)

E devem atender os seguintes grupos sociais:
"Trata-se de uma proposta de assentamento de origem campesina (seja no campo ou da floresta) que expropriadas, nas ultimas três décadas passadas, migraram para as periférias das cidades acreanas. [...] A criação desta modalidade de assentamento resulta de políticas que, além da finalidade produtiva, visam o "retorno" dessas pessoas ao "campo", numa inversão das correntes do êxodo rural das décadas anteriores" (SILVA, 2005, p. 77)

Logo, ver-se que diferente das concepções dos PADs, PAEs e RESEXs, os pólos agroflorestais tem como marco determinante reverter um fluxo natural existente de êxodo rural, ocorrido durante as ultimas décadas no Estado do Acre, e com isso, estimular a produção agrícola local, além de possibilitar uma melhor qualidade de vida a estas populações que sofrem com o subemprego e a marginalização nas periférias da cidade, ou seja, trata-se da retomada de um modelo de vida com mais qualidade e dignidade, ao menos é isso que fundamenta a proposta dos pólos agroflorestais.
Por fim, após a contextualização dos principais momentos e elementos tangentes ao processo de formação agrária do espaço acriano, cabe ressaltar a origem deste fenômeno ainda no Brasil colônia com a exploração das drogas do sertão e com a formação das populações "cablocas". Posteriomente, tem-se os surtos da borracha que foram de suma importância para o desmebramento e materialização dos principais emblemas referentes tanto a formação da população acriana, bem como de seu espaço geográfico e agrário, cabe ressaltar ainda a frente da pecuária na década de 70, com os empresários paulistas e os pequenos agricultores "paranaenses", aliado a tudo isso, existe a figura do camponês que vive da exploração dos recursos da floresta, assim como, os colonos que tem suas atividades centradas na agricultura.
As diversas politicas desenvolvidas pelos governos, sendo eles, municipais, estaduais ou nacional, sempre direcionavam a resolução das questões que acabaram ficando materializadas no decorrer desta formação agrária específica. No tocante a esta parte fundamental, onde se enfatiza as politicas governamentais dentre elas a criação dos projetos de assentamentos, é importante ressaltar a figura dos movimentos sociais das populações tradicionais, que organizados tiveram papel significativo para reivindicação de condições de moradia e trabalho dignas e de acordo com as suas bases e preceitos culturais.
Entretanto, torna-se claro que esses anseios não foram atendidos em sua totalidade, muito falta a ser feito pra que se possa atender efetivamente uma exploração sustentável do ponto de vista natural, e, em conjunto com isso, satisfazer as necessidades essenciais do homem campônes. É nesta lógica que alguns estudiosos propõe a idéia do neoextrativismo, que se caracteriza da seguinte maneira:
"O neoextrativismo é um conjunto ligado à totalidade social, a todas as instâncias da vida social, a econômica, a política e a cultural. Na dimensão econômica, é um novo tipo de extrativismo, que promove um salto de qualidade pela incorporação de progresso técnico e envolve novas alternativas de extração de recursos assossiadas como o cultivo, criação e beneficiamento da produção [...]. Portanto, cultivo, criação, artesanato são extrativistas desde que harmonizem com valores, crenças e costumes da população extrativista e com as caracteristicas do seu ambiente local [...]. Nesta ótica, o neoextrativismo envolve os componentes "agro" e "florestal", além do extrativismo "puro". Mas não inclui a agricultura e silvicutura moderna baseada na revolução verde que acelerou a modernização agrícola [...]no Sudeste e no Sul. Ao contrário, o agroflorestal do neoextrativismo envolve diversificação, consórcio de espécies, imitação da estrutura da floresta e uso de técnicas desenvolvidas pela pesquisa a partir dos saberes e práticas tradicionais, do conhecimento dos ecossistemas e das condições ecológicas regionais." (REGO apud SILVIO, 2005. p. 81)

Desta forma, segundo os ideais do neoextrativismo, é necessário para se alcançar efetivamente um desenvolvimento sustentável a todos, a integração entre as modalidades de exploração, tendo como marco principal a manutenção consciente e sustentável dos recursos naturais, onde a produção, tanto na fase de exploração, como no cultivo e no beneficiamento seriam incorporadas a processos técnicos-cientificos que levassem sempre em consideração os saberes das populações tradicionais, bem como do conhecimento criterioso do ecossistema ecológico explorado.
Por fim, é evidente que a situação agrária acriana ainda apresenta uma série de especificidades que serão modificadas no decorrer do tempo, afinal, o espaço geográfico não é estático, pelo contrário, ele está em constante modificação. Neste sentido enfatizam-se as conquistas já alcançadas pelas populações tradicionais frente à mercantilização capitalista da terra e da floresta. Portanto, a esperança futura é que realmente este processo histórico siga um percurso onde a floresta seja explorada de forma racional e planejada, onde as populações tradicionais tenham o seu direito a terra garantido, mas, que acima de tudo tenha condições de viver dignamente, que o estado se desenvolva e estabeleça um crescimento econômico racional e de acordo com as especificidades regionais de seu espaço geográfico, fomentado um modelo de desenvolvimento próprio e não simplesmente copiando modelos pré-definidos que muitas vezes estão desconexos da realidade local.

* Licenciado em Geografia, e professor substituto no curso de Geografia Licenciatura/Bacharelado da Universidade Federal do Acre ? UFAC
** Graduada em História - Licenciatura pela Universidade Federal do Acre - UFAC.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BECKER, Berta K. Amazônia. São Paulo: Ática, 1990. p. 7-21/ 96-107.
______. Redefinindo a Amazônia: O Vetor Tecno-Ecolígico. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo César da Costa; CORRÊA Roberto Lobato. Organizadores. Brasil: questões atuais da reorganização do território. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. p. 223-244.
CUNHA, Euclides da. Peru versus Bolívia. São Paulo: Cultrix; Brasília: Instituto Nacional do Livro do MEC, 1975.
- SILVA. Adalberto Ferreira da. Raízes da ocupação recentes das terras do Acre: Movimento de capitais, especulação fundiária e disputa pela terra. Belo Horizonte, 1982, 115p. Dissertação de (Mestrado em Economia) ? Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Universidade Federal de Minas Gerais.
- SILVA. Silvio Simione da. A produção do espaço agrário acreano: o homem e a floresta. SILVA, Silvio Simione da. (org). Acre: uma visão temática de sua Geografia. Rio Branco, 2005.
_____________________. A geografia da luta pela terra: conflito e resistência camponesa acreana. In: SILVA, Silvio Simione da. (org). Acre: uma visão temática de sua Geografia. Rio Branco, 2005.
_____________________. Na fronteira Agropecuária acreana. Presidente Prudente: Gráfica Dipierri; Rio Branco: Lepaug/Degeo ? UFAC, 2003.