Todo mundo falando em crises de governo no Egito, na Síria ou no Bahrein. Revolução. Guerra Civil. Sangue. Primavera. Nada disso está muito perto de nossas vidas de uma forma direta. Mas existe uma revolução acontecendo no nosso país, o tempo todo, todos os dias, e, aparentemente, sem volta.

Um dia desses ouvi Arnaldo Jabor usar a expressão “revolução vagabunda” e resolvi pensar no assunto.

Pense bem se você não vem presenciando um acentuado declínio ético e moral na sua vida nos últimos tempos. Acha que não? Comece a pensar no quanto você é mais tolerante a coisas que pareciam inaceitáveis há algum tempo. Pense bem como descuidou de partes que você considerava essenciais na sua vida ou no seu trabalho. Repense suas prioridades e veja se está tudo como era antes – 3, 4 ou 5 anos atrás. Você ainda é capaz de se indignar como já se indignou com tudo de errado que vê? A resposta tende a ser negativa. Se realmente for, você faz parte dessa nova revolução do Brasil. Se for positiva, você também faz parte da revolução vagabunda. É isso mesmo, ninguém escapa. Ninguém mais se importa com governo e normas jurídicas. Até aí tudo bem, já que o governo é corrupto e vendido e a justiça é ineficiente e atrasada. O problema é que as pessoas não mais se importam com a moral vigente. É cada um por si, meus amigos! Já que não há nada para nos regular, nem a moral, que parece completamente deturpada, nem as famílias, cada vez mais frágeis e impotentes. O que vale hoje é o consumismo desvairado, a loucura pelo ter. O objetivo de todo ser humano parece ser virar um bon vivant. Vamos apenas curtir e nos dar bem! Agora sim! Estamos chegando ao auge da vigência da Lei de Gérson.

Para quem não conhece, a Lei de Gérson é uma máxima dita por Gérson – meio campo da seleção brasileira na copa de 1970 – que assevera que o importante é levar vantagem. E não há momento melhor que este para a aplicação de tão nobre regra, arraigada em nossa cultura tupiniquim.

A revolução vagabunda está em todos os lugares. No noticiário temos um rol muito razoável de assassinatos a sangue frio, estupros, estelionatos, assaltos aos cofres públicos, além de picaretagens de todo o tipo. É mensaleiro e bandido de todas as espécies pra todo lado e o tempo todo. Hoje, todo mundo pode tudo. Nem a consciência mais segura o ser humano. A lei? Não, dessa todos já desistiram.

A revolução vagabunda não é a revolução dos bandidos e dos mafiosos, dos famosos e dos figurões. Não! É uma revolução que começa no interior de cada um. Na casa de cada cidadão de vidinha ordinária ou sem graça. Cada pequena picaretagem é abarcada por essa revolução, de caráter muito democrático. Afinal de contas, todos têm um pouco de frustração com a vida tosca e safada que vivem, sem aspirações ou com futuro incerto, num país cretino, que tem orgulho de dizer, a mais de 50 anos, que é o país do futuro. Nada melhor, como resposta, que se dar bem em coisas pequenas e fúteis. Só porque é legal. Hoje nada é mais importante que ser legal.

Minha experiência de sala de aula me faz ver como a Revolução vagabunda está até nas universidades, corolários de construção de um mundo novo, substanciados no ensino de novas gerações, que, em tese, deveriam ser melhores que as anteriores, inclusive sob os aspectos da moralidade. Tudo balela. Não há exceção, como já foi dito. Nem de posição ou classe social, nem de cursos.

Tudo começa na finalidade deturpada. Enquanto a universidade deveria ser – e ainda é em muitos países – local de discussões, debates, construção de ideias e uma formação humanística e social, temos hoje não mais que uma corrida desenfreada e sem limites pelo diploma. Sim, corrida por um pedaço de papel... Isso porque enquanto nos Estados Unidos, na Alemanha, na Bélgica os acadêmicos querem sair o mais preparados para uma inserção o mecado de trabalho competitivo, objetivando empregos bons de verdade, que os permitam viver longe das asas do Estado, no Brasil os acadêmicos querem sair o menos preparado possível. Querem apenas o diploma para que tenham a possibilidade de sentar atrás de uma mesa e passar a vida inteira batendo carimbos ou tirando grampos de folhas, ocupando um cargo público medíocre, encostados num Estado que eles mesmos consideram falido e corrupto. Tudo por essa patética estabilidade financeira, tão falada aos quatro ventos. Uma espécie de arauto bizarro do capitalismo selvagem, que nos faz esquecer de tudo: felicidade, satisfação profissional, felicidade, compaixão... O que importa é ter o dinheiro pra consumir tudo o que não precisamos e não queremos, mas que o sistema nos empurra guela abaixo.

São listas e mais listas de presenças inchadas com quase meia dúzia de nomes de pessoas que simplesmente não estão lá. O que ganham as pessoas que assinam para outras? O grande prêmio de ser reconhecido como o mafioso mor, o bandidão mestre, o corajoso da obscuridade. Temos ainda os muitos e quase diários seminários feitos sem qualquer preparação. Temos as colas em todas as provas e os feriados emendados, que não consigo mais contar quantos foram. Todas essas são picaretagem tacanhas, pequenas, que a maioria vê com inocência, e nascidas, talvez, na vontade humana de, em sociedade, mostrar quem é que manda. Afinal de contas, juntos somos fortes para fazer tudo - de errado - que queremos.

Também na minha vida universitária, algo que me inquieta é o atraso exagerado. Não quero pontulidade britânica, virar um fiscal com gênese ligada à ditadura, nem quero crucificar aquele atraso causado pelo trânsito ou um eventual por qualquer motivo. Mas o que me indigna é aquele de sempre, que salta aos olhos, em que a pessoa quer mesmo é tirar vantagem e ainda pensar: “Tá vendo como eu faço e funciona?”. Impressionante como as pessoas precisam, cada dia mais, de respostas dos outros. A consciência não diz nada. Parece adormecida em berço esplêndido. Adormecidos também ficam todos aqueles que vendo aquilo não dizem nada e deixam passar. É a revolução vagabunda passiva. Ela está em todos e em todos os lugares.

Diante desse total declínio de consciência, sobretudo individual, já duvido se a sociedade afrouxa diante de um governo corrupto e perdido e de pseudo-autoridades malucas, ou se na verdade, estamos construindo isso, pouco a pouco, partindo de cada um. Afinal de contas, a falência do modelo atual de Estado e Democracia não pode virar muleta – mas vira cotidianamente – para todos os desvios morais cometidos. Se todos os membros da casa legislativa são bandidos vendidos e corruptos, eu não preciso ser, e, bem na verdade, eu não devo ser. E isso não emana de lei, emana da sociedade e da vida. E da consciência.

Portanto, o mundo não pode virar o mundo dos safados e cretinos, unicamente porque não vemos um limite claro, seja ele legal ou policial. A Revolução Vagabunda do Brasil tem apenas como demonstrativo a porcaria de administação pública que temos e que nos atrasa, com sua burocracia e com a torneira das finanças abertas desde sempre, mas o fundamento é, na realidade, a falta de consciência ética de cada um.