PRETENSÃO DE DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO, ARGUMENTOS A FAVOR E SEUS PROBLEMAS jurídicos

A pretensão de descriminalizar o aborto e seus argumentos

Existe um direito suposto e reivindicado para que o aborto seja descriminalizado não só com relação ao feto anencéfalo, mas com relação a qualquer caso, como já é em alguns países. Há todo um expediente para a pretensão da descriminalização. Há quem diga que a aceitação para que se aborte o feto anencéfalo seria apenas o “trampolim” para que se autorize o aborto em qualquer caso.

O brasileiro, de modo geral, não é a favor do aborto. O assunto, obviamente, é polêmico; a rejeição ao aborto, desde 2011, é a maior no Brasil em 17 anos, a despeito da decisão do famoso julgado da ADPF 54, que discutiu a possibilidade de interrupção da gestação de fetos anencéfalos. De acordo com pesquisa Datafolha, 71% afirmam que a legislação brasileira sobre o tema deve ficar como está e 7% dizem que a prática deve ser descriminalizada.[1]

Fala-se, também, que, com a legalização do aborto, acabariam os abortos clandestinos. A intenção de juridicidade do aborto o converteria em uma solução que pareceria moralmente aceitável, logo seria uma opção possível para algumas mulheres, entretanto para a grande maioria da sociedade/comunidade o aborto não é aceitável, e aquelas mulheres continuariam a escolher o procedimento realizado às ocultas.

Igualmente, há a falsa impressão de que os abortos legais são mais "seguros" que os clandestinos. Um exemplo: uma investigação realizada em 1978 nos Estados Unidos constatou que só nas clínicas de Illinois, foram produzidas 12 mortes por abortos legais.[2]

Vale citar e analisar o raciocínio a favor do aborto que se origina de duas premissas: de uma vida que não se pode ver, portanto questionável, negociável; e da crença de que o feto faz parte do corpo da mãe, sendo, por isso, disponível.

Supondo que o feto fosse parte integrante do corpo da genitora, o direito à vida daquele ainda seria maior do que qualquer direito da mulher sobre seu corpo.

A embriologia, a fetologia, e a medicina em geral, têm demonstrado que o feto não é parte do corpo da genitora; é um humano que se governa por si mesmo, com vida particular, aspectos psicológicos, compleição e patrimônio genético exclusivo e inalterável, tracejado desde o momento em que se dá a união do óvulo com o espermatozoide (DINIZ).

Maria Helena Diniz (2002, p. 91), com a maestria e o rigor que lhe são inerentes, assevera que:

É demagógico justificar o aborto com base na liberdade da mulher, por ser dona de seu corpo. Será que ela teria mesmo o “direito de abortar”, em face da comprovação científica de que o feto possui vida autônoma desde a concepção? Não se pode considerar apenas a vontade da mulher de fazer o que quiser com seu corpo se uma outra vida humana, protegida constitucionalmente está em jogo.

É preciso entender, definitivamente, que “a liberdade não se partilha, mesmo se tratando de criatura e criador” (GIRARD; 2009, p. 287). Em termos simples, conclusivos e lógicos, trata-se do velho adágio, “a sua liberdade termina onde começa a minha”. E essa é a liberdade de nascer do feto anencéfalo.

Pedro-Juan Viladrich (Doutor e catedrático em Direito Canônico da Universidade de Navarra) chama os argumentos empregados por aqueles que defendem o aborto de “Abortismo Ideológico”: argumentos que tentam simplificar a prática abortiva, ou a consideram como uma liberdade dos pais, apoiados na ideia moderna de que “A pessoa humana – o seu ser, a sua vida etc. – é uma realidade histórica e cultural”. (VILADRICH, 1995, p. 38).

Viladrich também chama este raciocínio de “ditadura da ideia”, em que o pensador substitui a realidade natural pelas suas ideias, escondendo o moderno Leviatã do totalitarismo cultural, explicando que “a razão deixa de ser um instrumento para conhecer o que o homem é e arroga-se a tarefa de criar ou fabricar o homem”. (VILADRICH, 1995, p.39, grifos do autor).

Igualmente, a modernidade traz consigo muitos paradoxos. Independente do impulso sexual e dos métodos contraceptivos, as mulheres estão cada vez mais engravidando sem planejamento, por irresponsabilidade ou promiscuidade (não excluindo os homens). Parece que isso não deixa de nos remeter a tempos primitivos.

Conforme Sigmund Freud relata na sua obra Totem e Tabu: “Povos que ainda não descobriram ser a concepção o resultado das relações sexuais podem certamente ser encarados como os mais atrasados e primitivos dos homens vivos.” (FREUD, 2005, p. 120).

Às vezes a mulher pobre e desesperada tem medo de por um filho no mundo; então quando ela ouve um deputado, uma atriz popular, um intelectual, aparentemente bem aceito na mídia e pela crítica, defendendo a legalização do aborto, sobretudo alegando que tem pena das mães de terem que lutar em péssimas condições para sustentar e educar um rebento, não lhe ocorre a seguinte “solução”, qual seja, de perceber que os protagonistas seriam melhores e generosos se, ao invés de propor o aborto, doassem um dinheiro para ajudá-la com o filho. (CARVALHO, 2007).

Muitos magistrados caem na “armadilha” de acatar semelhantes argumentos, conquanto saibam perfeitamente que o aborto “econômico” e o eugênico não são reconhecidos pelo Código Criminal, isto é, pelo Direito, que considera impunível apenas os abortos necessários e o sentimental, por determinação expressa, como já citado anteriormente, do art. 128, incisos I e II do Código Penal. Veja-se novamente:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Ademais, os advogados dos réus nos presentes casos sempre suplicam pela substituição da pena corporal, isto é, as penas privativas de liberdade pelas penas restritivas de direito, ora mais brandas. Natural também a não concessão do sursis, quer dizer, a suspensão condicional da pena, que tem as seguintes condições/requisitos para ser aplicada:

Art. 77 - A execução da pena privativa de liberdade, não superior a 2 (dois) anos, poderá ser suspensa, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

I - o condenado não seja reincidente em crime doloso; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias autorizem a concessão do benefício; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

III - Não seja indicada ou cabível a substituição prevista no art. 44 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 1º - A condenação anterior a pena de multa não impede a concessão do benefício. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 2o A execução da pena privativa de liberdade, não superior a quatro anos, poderá ser suspensa, por quatro a seis anos, desde que o condenado seja maior de setenta anos de idade, ou razões de saúde justifiquem a suspensão. (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998)

Diante disto, note-se as jurisprudências, com melhor juízo:

PENAL - PROCESSO PENAL - TRIBUNAL DO JURI - ABORTO PROVOCADO PELA GESTANTE OU COM SEU CONSENTIMENTO - ARTIGO 124, CAPUT, NA FORMA DO ARTIGO 29, TODOS DO CÓDIGO PENAL - DOSIMETRIA DA PENA - PENA BASE - REDIMENSIONAMENTO - SUBSTITUIÇÃO DE PENA - IMPOSSIBILIDADE. 1. Em havendo circunstâncias judiciais desfavoráveis ao Agente, não há que se falar em pena base no mínimo legal. Porém, quando à análise de algumas delas se mostrar equivocada, há se proceder ao afastamento do exame negativo. Observância do Enunciado de Súmula 444 do Superior Tribunal de Justiça. 2. O benefício da substituição de pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos não deve ser deferido quando a medida não se mostrar socialmente recomendável e nem suficiente à reprimenda do delito. 3. Recurso conhecido e parcialmente provido. (20060910000775APR, Relator ALFEU MACHADO, 2ª Turma Criminal, julgado em 23/09/2010, DJ 06/10/2010 p. 156).

Ora, supondo que o agente, in casu¸ entende de medicamentos ou procedimentos abortivos, e os usa para provocar o crime de aborto, não se pode minimizar a gravidade de seu comportamento, sendo a pena privativa de liberdade suficiente à reprimenda do delito.

Note-se na jurisprudência a seguir o sucesso na comprovação da materialidade do crime, bem como a competência do Tribunal do Júri para julgá-lo:

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA. ABORTO. MANUTENÇÃO. COMPROVAÇÃO. AUTORIA DO CRIME. MATERIALIDADE. COMPETÊNCIA. JULGAMENTO. DELITO. TRIBUNAL DO JÚRI. 1) Os depoimentos prestados por testemunhas em conjunto com os demais elementos de prova carreados ao processo, mormente com o Laudo Cadavérico, que atesta a morte prematura do feto por insuficiência respiratória, são hábeis a provar a materialidade do crime de aborto. 2) A pronúncia da ré pela prática do crime previsto no artigo 124 do Código Penal é medida que se impõe por ser o Tribunal do Júri o juízo competente para julgamento de crimes dolosos contra vida quando comprovadas a materialidade e autoria do delito. 3 Recurso conhecido e desprovido.(20080610055325RSE, Relator ALFEU MACHADO, 2ª Turma Criminal, julgado em 09/09/2010, DJ 22/09/2010 p. 243)

Já no caso adiante, no tocante ao pedido de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, note-se que o pleito também não foi acolhido, tendo em conta que o crime foi praticado com violência contra o nascituro. Resta, assim, comprovado que o crime foi praticado com violência contra a pessoa, descrita no inciso I, do art. 44 do Código Penal, o que inviabilizou a substituição da pena corporal por restritiva de direitos, tampouco a suspensão condicional da pena, na exata dicção do art. 77, III, do Código Penal:

PENAL E PROCESSO PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI. ABORTO COM CONSENTIMENTO DA GESTANTE. PENA BASE. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS REAVALIADAS. REVISÃO NA DOSIMETRIA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA CORPORAL POR RESTRITIVA DE DIREITOS. INADMISSÍVEL. VIOLÊNCIA CONTRA A PESSOA. SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA. INVIÁVEL. 1. A circunstância judicial da culpabilidade deve ser valorada negativamente quando a soma de todas as demais circunstâncias judiciais desfavoráveis à agente, não sendo suficiente a fundamentação baseada em argumentos axiológicos, tampouco no conhecimento da ilicitude da conduta. 2. Das circunstâncias judiciais analisadas, somente o motivo do crime se mostra desfavorável, na medida em que a agente o praticou por dinheiro. 3. A pena base deve guardar coerência com a avaliação das circunstâncias judiciais, sendo estas reavaliadas favoravelmente à ré, deve a pena base ser mitigada, em obediência ao Princípio da Proporcionalidade. 4. É inviável a substituição da pena corporal pela restritiva de direitos em razão do crime ter sido cometido com violência contra a pessoa (art. 44, I do CP), o que torna inadmissível também a concessão de sursis (art. 77, III). 5. Apelação conhecida e parcialmente provida.(20080710308818APR, Relator ALFEU MACHADO, 2ª Turma Criminal, julgado em 03/03/2011, DJ 16/03/2011 p. 192).

Tanto no delito de autoaborto (ou mesmo quando a gestante consente que nela seja realizado o aborto por terceiro) como no de aborto provocado por terceiro, com a anuência da gestante, em virtude da pena mínima cominada a essas duas infrações penais, tipificadas nos artigos 124 e 126 do Código Penal Brasileiro, será permitida a proposta de suspensão condicional do processo, presentes seus requisitos legais.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54

Com relação ao aborto eugênico, vale dizer, a eugenia é a ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e ao melhoramento genético da espécie humana.[3] Circunstâncias de aborto eugênico pululam as decisões dos Tribunais. O STF aboliu a expressão “eugenia”, afirmando que esta tem uma conotação pejorativa, já que supostamente seria oriunda de antigas ideologias, apesar de alguns Tribunais pátrios continuarem adotando a referida expressão.

Existe uma “confusão” entre anencefalia, acrania e acefalia, que merecem ser particularizadas.

Anencéfalos não são fetos sem cérebro. Eles têm uma formação incompleta, ou muito deficiente, do Sistema Nervoso Central. Alguns nascem com vinte ou trinta por cento do cérebro, mas possuem um, e tem uma vida de “curta” duração.

Acefalia é uma condição mais rara, e, esta sim, é uma ausência completa de formação da abóbada craniana e do cérebro. Note-se que, na imprensa, constantemente repete-se que um feto anencéfalo é alguém sem cérebro.

Uma reflexão sobre o sobredito é necessária. Como a geração futura, isto é, aqueles que ainda estão em formação moral e intelectual, irá entender o indivíduo anencéfalo? Referida geração não iria deduzir que indivíduos anencéfalos devem ser extirpados, extraídos liminarmente, como se representassem uma injustiça atroz aos interesses dos genitores ou da sociedade, sem nenhuma oportunidade de perdurar?

Esses julgamentos são compreensíveis se alguém considerar a humanidade com os olhos de um criador que pretende produzir uma raça de homens dotados de certas características (não foi assim o nazismo?).

Mas a sociedade não é uma fábrica funcionando com o objetivo de produzir um determinado tipo de homem. “Não há nenhum critério ‘natural’ para estabelecer o que é desejável e o que é indesejável na evolução biológica do homem. Qualquer padrão que se escolha é arbitrário, meramente subjetivo, em suma, um juízo de valor.” (MISES, 2010, p.207).

Ludwig Von Mises, economista austro-húngaro, universalmente aclamado como a principal fonte do movimento mundial pela liberdade individual, assegura que:

Quem deseja preservar a vida e a saúde tem de compreender que o respeito pela vida e pela saúde de outras pessoas serve melhor a seus propósitos do que o procedimento inverso. Podemos lamentar que o mundo seja assim. Mas tais lamentações não alteram a realidade concreta. (2010, p. 215).

É inexata a crença de que um portador de deficiências física ou mental aproveitaria menos a vida do que uma pessoa normal. Não há qualquer base teórica ou experimental que venha a evidenciar isso, e não há qualquer diferença entre deficientes e não deficientes quanto ao grau de satisfação com que encaram e enfrentam a vida, pelo menos no estado subjetivo. (DINIZ, 2002).

Igualmente, com a justificativa da “dignidade da pessoa humana”, suspende-se o direito do feto, ou do feto anencéfalo, de viver, ou de “viver bem”. Acontece que, “tanto viver quanto viver bem são fins para os quais temos de encontrar os meios. Mas viver, ou manter-se vivo, é em si um meio para viver bem. É impossível viver bem sem manter-se vivo – o máximo possível [...]”. (ADLER, 2010, p. 87).

Isto se enquadra perfeitamente nos ensinamentos de Paulo Bonavides, constitucionalista, acerca da extensão que se quer dar à interpretação constitucional hodiernamente. A interpretação “quando excede os limites razoáveis em que se há de conter, quando cria ou “inventa” contra legem, posto que aparentemente ainda aí à sombra da lei, é perniciosa, assim à garantia como à certeza das instituições”. (BONAVIDES, 2011, p. 483).

 É necessário ponderar sobre as consequências que podem advir de um “irrefletido alargamento do raio de interpretação constitucional”, pois trata-se de métodos desconhecidos introduzidos na hermenêutica das Constituições. (BONAVIDES, 2011).

Necessário se faz considerar que “qualquer coisa em que consigamos pensar, qualquer coisa que chamemos boa ou desejável é um meio para viver ou para viver bem. Podemos ver a vida como um meio para a vida boa, mas não podemos ver a vida boa como meio para nenhuma outra coisa”. (ADLER, 2010, p. 88).

Dalton Luiz de Paula Ramos[4], professor associado de Bioética da Universidade de São Paulo, membro do Núcleo Técnico Interdisciplinar de Bioética da UNIFESP/EPM, esclarece a anencefalia por outros ângulos:

Os quadros de anencefalia podem variar em grau. Alguns apresentam maior comprometimento de estruturas neurológicas, outros menos. Não se deve pensar que essa malformação tenha uma única característica, ou seja, rigorosamente definível.

Entre os recém-nascidos anencéfalos nascem vivos 2 de cada 3 casos. Desses nascidos vivos cerca de 98% morrem ainda na primeira semana. Cerca de 1% sobrevive até 3 meses; existem relatos na literatura científica de crianças que sobreviveram até um ano sem o auxilio de respiração artificial.

O próprio diagnóstico da “morte cerebral” – método empregado em outras circunstâncias para o diagnóstico da morte para, por exemplo, autorizar a remoção de órgãos para transplantes – apresenta grandes dificuldades técnicas, devido ao conhecimento ainda imperfeito da neurofisiologia neonatal.

O Comitê Nacional de Bioética italiano, manifestando-se a respeito da avaliação das capacidades do recém-nascido anencéfalo, admite que “a neuroplastividade do tronco poderia ser suficiente para garantir ao anencefálico, pelo menos nas formas menos graves, uma certa primitiva possibilidade de consciência. Deveria, portanto, ser rejeitado o argumento de que o anencéfalo, enquanto privado dos hemisférios cerebrais, não está em condições, por definição, de ter consciência e experimentar sofrimentos”. (grifo nosso).

Primeiramente, no âmbito legal, tem-se como dispositivo primário na Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5º, que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]” (grifo nosso).

Assim, percebe-se que a Constituição Federal garante que não há distinção de qualquer natureza quanto a este direito, pois o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em requisito básico à existência e exercício de todos os demais direitos (MORAES, 2010).

“Se assim é, a vida humana deve ser protegida contra tudo e contra todos, pois é objeto de direito personalíssimo” (DINIZ, 2002, p. 21, grifo nosso).

Asseverando, Maria Helena Diniz:

Seria inadmissível qualquer pressão no sentido de uma emenda constitucional relativa à vida humana, como, por exemplo, a referente à legalização do aborto, pois o art. 5º é cláusula pétrea. (DINIZ, 2002, p. 23).

O ponto principal da questão da permissividade do aborto de feto anencéfalo seria o do começo do caminho que leva à despersonalização do homem. Esse é o perigo real de se ceder por motivos de pouca valia (por pressão de uma sociedade hedonista e materialista). Depois seria questão de tempo para se chegar à total degradação dos valores assentados de uma sociedade humana. Do contrário, ter-se-á o ser humano passando de sujeito de direito para objeto de direito (MARTINS, 2008).

Alguns defensores do aborto também se preocupam com o tempo que o neonato anencéfalo costuma sobreviver, por ser curto seu tempo de vida, apesar de haver casos de indivíduos que viveram por quase dois anos ou mais, como é o caso da criança Marcela de Jesus Galante Ferreira, que morreu em consequências de uma pneumonia.

Na citação abaixo, se podem notar casos em que o Ministério Público Federal se posiciona na defesa do aborto cuja vida extrauterina seria “inviável”, impetrando, inclusive, uma Ação Civil Pública, para a criação de um novo excludente de punibilidade no caso de aborto com base na “inviabilidade” extrauterina do feto.

Contudo uma pergunta deve ser formulada: Se a vida desses sujeitos “inviáveis” é muito breve, nas horas ou dias antes de morrer, não são seres humanos, portanto amparados pelos direitos fundamentais? Negou-se provimento, com base em pedido juridicamente impossível, prevalecendo o princípio da legalidade, como se pode ver a seguir:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERPRETAÇÃO EVOLUTIVA DA LEGISLAÇÃO PENAL. CRIAÇÃO DE UM NOVO EXCLUDENTE DE PUNIBILIDADE, EM ADIÇÃO AOS PREVISTOS NOS INCISOS I E II DO ART. 128 DO CP. ABORTO NECESSÁRIO E EM CASO DE GRAVIDEZ RESULTANTE DE ESTUPRO. PARA INCLUIR TAMBÉM OS CASOS DE INVIABILIDADE EXTRAUTERINA DO FETO, DEVIDAMENTE DIAGNOSTICADA. PONDERAÇÃO DE INTERESSES. DESARRAZOABILIDADE NA TUTELA DO DIREITO À VIDA DE NASCITURO POTENCIALMENTE INVIÁVEL, EM DETRIMENTO DO DIREITO DA GESTANTE A UMA GRAVIDEZ TRANQUILA E ISENTA DE RISCOS, TRADUZIDO NA LIBERDADE DE OPÇÃO PELA INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO. EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, POR CARÊNCIA DE AÇÃO, ANTE A IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. APELAÇÃO DO MPF DESPROVIDA. Os pedidos de condenação da UNIÃO a incluir, no âmbito dos serviços disponibilizados pelo SUS no RJ, o procedimento médico de interrupção voluntária da gravidez em casos de inviabilidade da vida fetal extra-uterina, devidamente diagnosticada por médicos do próprio SUS, independentemente de alvará judicial, de autorização do Ministério Público ou de qualquer outro órgão estatal, bem como de condenação da UNIÃO e do Estado do Rio de Janeiro a se absterem de adotar medidas impeditivas, discriminatórias ou sancionatórias às gestantes e aos profissionais de saúde que realizarem os referidos procedimentos, são juridicamente impossíveis, carecendo o MPF de condição para o regular exercício do direito de ação.

Até aqui, perceba-se que a excludente de punibilidade para o aborto nos casos para o qual se julga a vida extrauterina como “inviável” não está prevista no Código Penal. Retome-se a leitura:

É fato que a complexidade de determinada matéria não pode servir de escusa para a omissão do Juiz no exercício de seu mister, posto ser-lhe vedado se eximir de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade na Lei (art. 126 do CPC), devendo decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito (art. 4º da LICC). Entretanto, não há que se confundir a lacuna na Lei, a demandar a necessária atividade integrativa do julgador, com a impossibilidade jurídica do pedido. A atividade de integração, típica da função jurisdicional, tem por escopo suprir eventuais lacunas legislativas, de tal sorte que as demandas propostas perante o Poder Judiciário alcancem uma solução efetiva, compatível com a prestação jurisdicional reclamada pela parte. Jamais, porém, essa atividade integrativa pode substituir a atividade legislativa propriamente dita, função típica do Poder Legislativo, investido pela própria Constituição da República de legitimidade para tanto. Aquilo a que o MPF denomina interpretação evolutiva da legislação penal é, em verdade, inovação legislativa. O Magistrado, como integrante do Poder Público, enquanto Estado-Juiz, também está jungido ao princípio da legalidade, sendo-lhe expressamente vedado inovar na seara legislativa, sob o pretexto de integrar ou mesmo interpretar a Lei. Especificamente na hipótese dos autos, não se trata de suprir lacuna na Lei pela mera aplicação da analogia, dos costumes ou dos princípios gerais de Direito. O próprio MPF reconhece que está a demandar a atuação do Poder Judiciário como legislador positivo, em nítida usurpação de competência do Poder Legislativo, o que não se admite, sob pena de grave violação ao princípio constitucional da separação entre os Poderes, com o risco de subversão de toda a lógica que orienta o sistema construído sobre o postulado do Estado Democrático de Direito.

Com esta leitura, tem-se que, considerando os efeitos erga omnes de uma sentença em ação civil pública protetora de direitos difusos, não há como não se vislumbrar usurpação da competência da Corte Constitucional para realização do controle concentrado de constitucionalidade. A inadequação da via eleita pelo Ministério Público, in casu, assenta, portanto, na falta de interesse de agir. Recobre-se a leitura:

Trata-se de criar um excludente de punibilidade para determinada conduta, que, até o presente momento, a Lei Penal ainda classifica como típica, sem a necessária autorização legislativa para tanto. Sem embargo dos argumentos da petição inicial e do recurso, e ainda que se reconheça que os artigos da Lei Penal em questão, diante dos atuais avanços da Medicina, possam ter se tornado obsoletos, não há como se transferir ao Juiz uma responsabilidade que é, à toda vista, própria do Legislador. Indubitavelmente, trata-se de tema de grande relevância e que reclama um amplo debate, no qual defensores e detratores da tese ora ventilada na presente demanda possam trazer, de parte a parte, luz à discussão. Acaso acolhidos os argumentos expostos com notável clareza na petição inicial, incumbirá à sociedade reclamar dos seus representantes no Congresso, posto que espelho da vontade popular, a necessária atuação, no sentido de adequar a norma penal em comento às demandas da atualidade. Apelação a que se nega provimento. (TRF 02ª R.; Ap-RN 2005.51.13.0005522; Sétima Turma Especializada; Rel. Des. Fed. Reis Friede; DJU 23/11/2009; Pág. 92) CP, art. 128 CPC, art. 126 LICC, art. 4.

Pode-se dizer, com a leitura do excerto do julgado acima, que a solução parlamentar, pois com legitimidade democrática, seria a adequada. No entanto, o Poder Judiciário, ainda que esteja em época de certo ‘ativismo’, atuando inclusive como legislador negativo e anulando atos estatais pela aplicação do princípio da razoabilidade ou da dignidade da pessoa humana, não deveria se prestar para impor à sociedade, via provimento com eficácia erga omnes, uma solução para o tema.

A seguir se podem encontrar algumas jurisprudências/decisões que não permitiram o aborto do feto anencéfalo. Algumas merecem bastante consideração, uma vez que encerram de maneira simples o motivo pelo qual este tipo de aborto não deveria ser permitido ou legalizado, bem como o motivo mais evidente: a falta de expressa previsão legal.

Em uma das decisões abaixo, o Magistrado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro assevera: “A Lei não deu ao magistrado o poder divino de determinar o término da vida. Os apologistas do aborto eugênico nasceram, estão todos vivos”. É o que se pode ver no texto a seguir:

APELACAO CRIMINAL. AUTORIZACAO PARA INTERRUPCAO DE GRAVIDEZ. ABORTO EUGENICO. ANENCEFALIA COMPROVADA. AUSENCIA DE PREVISAO LEGAL PARA O DEFERIMENTO DO PEDIDO. SENTENCA CONFIRMADA. 1 - A vida, bem maior, e assim tutelada pela constituição federal e pela legislação penal, portanto, deve ser preservada, permitindo-se o aborto somente nas hipóteses legais, especificamente previstas, que não comportam interpretação analógica, em face do principio da reserva legal. 2 - Na falta de expressa previsão legal, impõe-se a confirmação da sentença que indeferiu pedido de autorização judicial para interrupção de gravidez, em que comprovado ser o feto portador de anencefalia. Apelo desprovido. (TJ-GO; ACr 35528-2/213; Goiânia; Rel. Des. Huygens Bandeira de Melo; DJGO 06/08/2009; Pág. 222)

ABORTO. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. DOENÇA CONGÊNITA. INDEFERIMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA. MANDADO DE SEGURANÇA. ABORTO. FETO PORTADOR DE ANENCEFALIA. A legislação brasileira não prevê possa o juiz autorizar quem quer que seja a submeter-se à pratica de aborto nem a praticá-lo. O aborto só é permitido em duas hipóteses legais: Quando necessário para salvar a vida da gestante, situação especial do estado de necessidade, ou quando a gravidez resultar de crime de estupro. Em ambas as situacoes a pratica do aborto é lícita e independe de outorga judicial. Fora daí', como a Lei protege, desde a concepção, os direitos do nascituro, o aborto é ilícito e nesta situação não pode ser autorizado por nenhum juiz, o que determina a falta de direito líquido e certo para a concessão da ordem. (TJ-RJ; MS 57/2001; Nilópolis; Seção Criminal; Rel. Des. Gama Malcher; Julg. 13/03/2002) (grifo nosso)

ABORTO EUGENICO. ART. 128. INC. I. INC. II. C.P.. MANDADO DE SEGURANÇA. COMPETÊNCIA DA SECAO CRIMINAL. ABORTO EUGENICO. LIMINAR SATISFATIVA, SE DEFERIDA IMPEDIRIA O CONHECIMENTO DA CAUSA POR PARTE DO ÓRGÃO COMPETENTE. RELEVÂNCIA DO PEDIDO. HÁ SITUACOES EM QUE TAL EXAME SE TORNA IMPRESCINDÍVEL, SOB PENA DE INVIABILIZAR A TUTELA JURISDICIONAL. Anencefalia, anomalia fetal consistente na ausência da calota craniana, não é permissiva para se autorizar o aborto, como se infere do art. 128, I e II do Código Penal. A Lei não prevê a isenção de pena para o abortamento eugenésico, isto é, com a eliminação de fetos doentes ou defeituosos. O magistrado não tem o poder de autoriza-lo, nem será o médico jungido a fazê-lo, porque ofenderia, por certo, sua consciência e ética profissional. O feto, nesses casos, é dotado de vida intrauterina ou biológica e é, por isso, protegido pelas normas constitucionais e pelo direito natural. O direito civil tutela o nascituro porque há possibilidade de vida (art. 4. Do Código Civil), daí' advindo uma série de consequências, principalmente de ordem sucessória. Permitir o aborto equivaleria a pratica da eutanásia, só que praticada contra um ser em formação, dotado de todas as funções. Não se trata de um ser sem vida. Haveria a distanásia. A Lei nº 9434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos e partes do corpo humano para fins de transplante, só permite fazê-lo post mortem e o transplante deve ser precedido de minucioso exame feito por uma equipe médica cirúrgica que comprove, sem sombra de dúvida, a morte encefálica. Não se argumente com essa Lei, porque se trata de caso diverso. Não é o caso dos autos, pois o feto está com vida. A Lei não deu ao magistrado o poder divino de determinar o término da vida. Os apologistas do aborto eugênico nasceram, estão todos vivos. Denegada, por maioria, a ordem. (TJ-RJ; MS 42/2000; Rio de Janeiro; Seção Criminal; Rel. Des. Estenio Cantarino Cardozo; Julg. 21/06/2000) CP, art. 128 CC-16, art. 4 (grifo nosso)

Infere-se dos julgados acima que, não obstante a presença da anomalia em cada um dos casos, os fetos se desenvolveram no útero materno normalmente, não significando nenhum risco de vida à gestante, presumindo-se que as genitoras tenham sido submetidas a avaliações psicológicas, em que pelo menos se supõe que se encontravam emocionalmente estáveis e dentro dos parâmetros esperados pela difícil situação vivenciada.

Não se desconsiderando, por óbvio, o trauma difícil de apagar que as genitoras em tais casos sofreram, em decorrência da hipótese da impossibilidade de vida extrauterina de seus rebentos; em razão da anomalia ora detectada. Contudo, apesar de respeitáveis entendimentos em contrário, visto que se trata de inegável controvérsia, é necessário despir-se de ideologias ou posições pessoais, e examinar a matéria sob o prisma eminentemente jurídico, em que é inadmissível tal ampliação, pelo julgador, das hipóteses descritas no dispositivo legal do diploma repressivo.

Consequentemente, qualquer tentativa de autorização judicial para o aborto em situações não previstas na legislação criminal, como nos presentes casos, deve ser indeferida, haja vista que os fetos, nesses casos, possuem vida intrauterina ou biológica, logo são protegidos pelas normas constitucionais e pelo direito natural.

BIBLIOGRAFIA

 

DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2. ed. aum. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-01-2002) São Paulo: Saraiva, 2002.

GIRARD, René. Mentira Romântica e Verdade Romanesca. Tradução Lilia Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações, 2009.

VILADRICH, Pedro-Juan. Aborto e sociedade permissiva. São Paulo: Quadrante, 1995.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2005.

CARVALHO, Olavo de. O Imbecil Coletivo I: atualidades inculturais brasileiras. Nova ed. ver. (Coleção Olavo de Carvalho). São Paulo: É Realizações, 2007.

MISES, Ludwig von. Ação Humana. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010.

ADLER, Mortimer J. 1902-2001. Aristóteles para todos: uma introdução simples a um pensamento complexo. Tradução Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

MARTINS, Ives Gandra da Silva; MARTINS, Roberto Vidal da Silva; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. A Questão do Aborto: Aspectos Jurídicos Fundamentais. São Paulo: Quartier Latin, 2008.


[1] ÉPOCA. Fala, Brasil. Datafolha: 71% afirmam que lei sobre aborto deve continuar como está. Disponível em: <http://colunas.revistaepoca.globo.com/falabrasil/2010/10/11/datafolha-71-afirmam-que-lei-sobre-aborto-deve-continuar-como-esta/>. Acesso em: 08 de maio de 2012.

[2] ACIDIGITAL. Mentiras e verdades sobre o aborto. Disponível em <http://www.acidigital.com/vida/aborto/mentiras.htm>. Acesso em: 03 de abril de 2012.

[3] CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

[4] RAMOS, Dalton Luiz de Paula. Alguns esclarecimentos sobre os fetos anencéfalos: para não transformar o dramático em trágico. Núcleo Fé e Cultura. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. [s.d.]. Disponível em:<http://www.pucsp.br/fecultura/textos/bio_ciencias/18_alguns.html>. Acesso em: 10 de agosto de 2012.