Este artigo faz referência à possibilidade de prestação de serviços de medicina diagnósticada por imagem no âmbito público, analisado em 3 tópicos: (i) análise da disposição constitucional a respeito do assunto; (ii) critérios utilizados para classificar a regularidade das contratações; (iii) regulamentação do SUS.

  1. Disposição Constitucional

    A Constituição Federal, em seus artigos 197 e 199, prevê a participação da iniciativa privada no âmbito da saúde pública, conforme abaixo:

    “Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

    (...)

    Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

    § 1.o - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.” (grifo nosso).

                Especificamente no artigo 199 supramencionado, é possível notar que tal participação privada está condicionada a uma atuação de caráter complementar. Em vista de tal previsão, a questão que causa certa controvérsia é entender qual o limite do termo “complementar” na Constituição. Sobre o tema, Maria Sylvia Zanella Di Pietro entende que:

    “Não pode, por exemplo, o Poder Público transferir a uma instituição privada toda a administração e execução das atividades de saúde prestadas por um hospital público ou por um centro de saúde; o que pode o Poder Público é contratar instituições privadas para prestar atividades-meio, como limpeza, vigilância, contabilidade, ou mesmo determinados serviços técnico-especializados, como os inerentes aos hemocentros, realização de exames médicos, consultas, etc.; nesses casos, estará transferindo apenas a execução material de determinadas atividades ligadas ao serviço de saúde, mas não sua gestão operacional.”

    Ainda, Fernando Borges Mânica, na tese de doutorado “Participação Privada na Prestação de Serviços Públicos de Saúde”, afirma que a interpretação da expressão “forma complementar” “deve levar em conta a realidade e deve ter como objetivo a máxima efetivação dos direitos fundamentais.”[1] Defende o autor que não é condizente com a situação atual do país que o entendimento sobre a expressão em questão se restrinja à prestação dos serviços públicos apenas por entes públicos, haja vista que, se assim for, tal prestação será certamente insuficiente para atender a toda a população e prezar pelo princípio da continuidade da prestação do serviço público de saúde.

    No mesmo sentido, Paulo Modesto, ao discorrer sobre o serviço de saúde, afirma claramente que o dever do Estado é garantir o direito à saúde e o acesso de cada cidadão a tal assistência, de forma a tornar-se irrelevante a forma em que tal serviço será prestado: se por entes públicos ou se pela iniciativa privada. Nas palavras do administrativista:

    “A Constituição da República não submeteu os serviços e ações de saúde a uma reserva de direito público, isto é, não os subtraiu da esfera de livre atuação das pessoas privadas. Nem confiou ao Estado a sua titularidade exclusiva e privativa. Nem impediu os particulares de neles livremente atuarem, salvo pro delegação em cada caso do Poder Público, mediante a autorização, permissão ou concessão de serviço público, sempre após licitação (CF, art. 175)”[2]

    E finaliza o administrativista:

    A declaração do direito à saúde como direito do cidadão e dever do Estado obriga a que o Estado garanta o direito à saúde e não que ofereça diretamente e de forma executivo o atendimento a todos os brasileiros. A palavra ‘saúde’, constante do art. 199 da Constituição, refere a um bem jurídico, a uma utilidade fruível pelo administrado, que deve ser assegurada pelo Estado, independentemente deste fazê-lo direta ou indiretamente, mediante emprego do aparato público ou da utilização de terceiros.”[3]

    Ao discorrer mais especificamente sobre o a iniciativa privada atuando no âmbito das atividades englobadas pelo SUS, é defendido, inclusive, que no momento em que a iniciativa privada é proibida de auxiliar o Estado na prestação do serviço de saúde, o grande perdedor é a sociedade, que deixa de receber a devida, e constitucionalmente assegurada, prestação do serviço de saúde:

    “Ao contrário do que sustentam alguns autores e parte da jurisprudência pátria, a previsão constitucional de participação complementar da iniciativa privada no SUS não significa a atribuição do dever estatal de prestação direta dos serviços públicos de saúde. Não raro são encontradas nos tribunais brasileiros decisões que impedem a celebração de parcerias com a iniciativa privada com fundamento no suposto descumprimento da complementariedade da participação privada nos serviços públicos de saúde. Os efeitos jurídicos de tais decisões nos respectivos casos concretos e seu efeito reflexo na segurança jurídica acabam por prejudicar a evolução do direito, a modernização da Administração Pública e a efetivação do direito à saúde.” [4]

    Diante do exposto, torna-se evidente que parte da doutrina entende ser possível a contratação de entes privados para a realização de serviços técnico-especializados na área da saúde pública, bem como entende, ainda, ser desejável a prestação de tal auxílio. Há, ainda, jurisprudência suportando este mesmo posicionamento. O então Ministro do Supremo Tribunal de Justiça Sepúlveda Pertence fez afirmação categórica ao referir-se ao artigo 197 da Constituição Federal, dispondo:

    “(...) Não apenas não há, no dever estatal para com a saúde, obrigação de prestação estatal direta, mas, ao contrário, a expressão previsão de sua prestação mediante colaboração de particulares, embora sujeitos à legislação, à regulamentação, à fiscalização e ao controle estatais.” [5]

    Ainda no mesmo julgamento, o Min. Relator Ilmar Galvão também se preocupou em discorrer sobre o assunto, buscando deixar claro que o auxílio prestado pela iniciativa privada à prestação do serviço de saúde é uma opção para a Administração Pública, tão legítima quanto a opção de prestação exclusivamente por órgãos e entes públicos. Afirmou o então Ministro:

    “(...) os artigos 196 e 197 da CF se limitam a impor ao Estado o dever de garantir o direito de todos à saúde, mediante a implantação de ‘políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário as ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação’. Não impõem ao Estado o dever de prestar assistência a saúde por meio de órgãos ou entidades públicas, nem impedem que o faça desse modo; tampouco, eliminam a possibilidade de cumprir ele esse dever, (...) mediante a colaboração o da iniciativa privada, prestada sob sua regulamentação, fiscalização e controle, como previsto no art. 199, caput e § 1º.”[6]

    A contratação de entes particulares para a prestação de serviços de medicina diagnóstica no âmbito público é bem recebida no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (“TCE-SP”). Tal afirmação tem embasamento em decisões que tratam sobre a celebração de aditamentos a este tipo de contratação e os declaram regulares, conforme decisões abaixo:

    “Objeto: prestação dos serviços de médicos e exames complementares do tipo eletrocardiograma, com fornecimento de equipamentos específicos.

    Extrato de sentença: julgo regulares o terceiro termo de reti-ratificação”[7]

    “Cuidam os autos do ajuste firmado pela Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto com a empresa Sioux Medicina Diagnóstica Ltda., visando à prestação de serviços de diagnóstico por imagem, especificamente raios X e mamografia. (...)

    A prefeitura Municipal de Ribeirão Preto celebrou os termos aditivos ora examinados, com o objetivo de dar continuidade à prestação de serviços de radiologia e diagnóstico por imagem, originários de licitação e contrato antes reputados em boa ordem por esta Egrégia Corte. (...)

    Voto pela regularidade do 1º ao 5º Termos de Rerratificação, referentes ao Contrato nº 108/07, havidos entre a Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto e a Empresa Sioux Medicina Diagnóstica Ltda.”[8]

    “Objeto: serviços médicos na área de apoio diagnóstico e terapêutico – diagnóstico por imagem e radiodiagnóstico (ultrassonografia e mamografia) em estabelecimento devidamente licenciado junto ao órgão sanitário competente.

    Em exame: termo aditivo nº 27/08 e 27/03/08

    Extrato para publicação: foi julgado regular o termo em exame.”[9]

    Portanto, a partir do momento que o TCE-SP julga regular tais aditamentos, pode-se concluir que também julga regular a celebração do contrato original, restando claro o posicionamento favorável em relação à possibilidade de a Administração Pública contratar entes privados para executar os serviços médicos na área de apoio diagnóstico.

    Em vista do exposto até então, resta clara a existência de suporte tanto doutrinário como jurisprudencial (judicial e administrativo) a respeito da possibilidade de celebração dos contratos aqui analisados. Entretanto, estas mesmas fontes também apontam algumas peculiaridades a respeitos destas contratações, conforme será demonstrado abaixo. 

  2. Critérios utilizados para classificar a regularidade das contratações

    Conforme disposto acima, restou claro que a realização de serviços acessórios na saúde pública é bem recebida na doutrina e na jurisprudência, onde não encontramos qualquer decisão contra contratos celebrados para a execução desse tipo de serviço.

    Entretanto, é de suma importância destacar a imprescindibilidade de realização prévia de certames licitatórios. O STF inclusive entende que o Ministério Público pode propor ação civil pública em faça de contratação de serviço hospitalar privado sem licitação sob o argumento de lesão ao patrimônio público (STF - RE – AGR 262134).

    É necessário observar que a terceirização do serviço público de saúde (serviço direto e não complementar) é proibida, sendo que o STF possui jurisprudência forte no sentido de vedação da contratação de médicos por meio de contratos privados, com base no artigo 37, inciso II da Constituição Federal. Tal artigo dispõe que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público. A contratação temporária de médicos, inclusive, também é questionada pela Corte. Em reiterados julgados os ministros expressaram que a contratação temporária somente é permitida se observada certas condições como (i) a previsão em lei dos casos; (ii) tempo determinado; (iii) necessidade temporária de interesse público; e (iv) interesse público excepcional[10]. Nesse sentido, o seguinte foi exposto na ADI nº 3430:

    “a transitoriedade das contratações de que trata o art. 37, IX, da CF, com efeito, não se coaduna com o caráter permanente das atividades que constituem a própria essência, a razão mesma de existir do Estado, qual seja a prestação de serviços essenciais à população, dentre os quais figuram, com destaque, os serviços de saúde. Se o serviço público é de caráter essencial e permanente, como aquele objeto do diploma legal atacado, só pode ser prestado por servidores admitidos em caráter efetivo, mediante competente concurso público, nos termos do art. 37, II da Carta Magna.”[11]

    Diante disso, entendemos que a contratação da prestação de serviços médicos, ainda que de serviços de diagnóstico por imagem, deve ser, no máximo, temporária e em caráter excepcional, com o objetivo de treinar médicos concursados empregados pela administração pública. A prestação direta desses serviços por médicos ou técnicos contratados pode ser entendido como uma forma de burlar as normas constitucionais e, ainda que feito por meio de licitação, pode suscitar indagações do Ministério Público. Nesse sentido, concluindo de forma enfática seu posicionamento, expôs o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADI nº 3430 supramencionada, o seguinte:

    “II – Para que se efetue a contratação temporária, é necessário que não apenas seja estipulado o prazo de contratação em lei, mas, principalmente, que o serviço a ser prestado revista-se do caráter da temporariedade.

    III – O serviço público de saúde é essencial, jamais pode-se caracterizar como temporário, razão pela qual não assiste razão à Administração estadual capixaba ao contratar temporariamente servidores para exercer tais funções.”[12]

    Ainda no tocante da contratação de médicos não concursados, vemos que o STF vem julgando favoravelmente as ações diretas de inconstitucionalidade requeridas no sentido de obter a inconstitucionalidade de normas infra constitucionais, tais como leis estaduais, que se prestam a tentar contrariar o artigo 37, inciso II da Carta Maior. Assim, mesmo que exista lei ou norma, seja ela proferida no âmbito municipal, estadual ou federal que procure regular a contratação de médicos não concursados pela Administração Pública, esta regulação estará em grande risco de ser contestada e eventualmente declarada inconstitucional.

  3. Regulamentação do SUS

    A lei nº 8.080/90 que disciplina o Sistema Único de Saúde, o SUS, prevê, em seu artigo 4º, parágrafo segundo, a participação da iniciativa privada:

    “§ 2º - A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde-SUS, em caráter complementar.“ (grifo nosso).

    Referida lei replicou o conceito disposto na constituição, qualificando a atividade privada como complementar. Contudo, no artigo 24 da mesma lei, o conceito de complementariedade é usado de forma a entender que a participação privada deve ser subsidiária.

    “Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde-SUS poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.” (grifo nosso).

    O artigo indica que a participação da iniciativa privada deve se dar somente nos momentos em que a prestação de saúde pública for insuficiente. Apesar de certa confusão conceitual, o disposto no artigo 24 acima, não cria qualquer prejuízo ao entendimento de que a complementariedade descrita na constituição indica a possibilidade de prestação de serviços meio por entes privados no âmbito da saúde pública, assim como entende o STF. Isso, pois se trata de norma hierarquicamente superior, com entendimento já consolidado sobre sua interpretação. Assim, não devemos sobrepor o sentido dado por norma infraconstitucional à constituição.

    Dessa forma, entendemos que a prestação de serviços de medicina diagnóstica no âmbito público é possível e aceita pelas cortes nacionais. Contudo, conforme expomos acima, certos cuidados devem ser tomados para que os riscos de questionamentos quanto à legalidade e eficácia da contratação sejam mitigados, especialmente no que tange a indispensabilidade de licitação prévia para contratação dos serviços pelo ente público e o caráter transitório e temporário da disponibilização de médicos não concursados para este fim, os quais poderão ter como objetivo o treinamento dos médicos concursados visando a continuidade da prestação dos serviços.


[1] MÂNICA, Fernando Borges. Participação privada na prestação de serviços públicos de saúde. 2009. 306p. Tese (Doutorado) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, 2009. P. 168

[2] MODESTO, Paulo. Convênio entre entidades públicas executado por fundação de apoio. Serviço de saúde. Conceito de serviço publico e serviço de relevância pública na Constituição de 1988. Forma de prestação de contas das entidades de cooperação após a emenda constitucional nº 19/98. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, n.11, p.5

[3] MODESTO, Paulo. Convênio entre entidades públicas executado por fundação de apoio. Serviço de saúde. Conceito de serviço publico e serviço de relevância pública na Constituição de 1988. Forma de prestação de contas das entidades de cooperação após a emenda constitucional nº 19/98. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, n.11, p.8, fev, 2002. Disponível em http://www.direitopublico.com.br/pdf_11/DIALOGO-JURIDICO-11-FEVEREIRO-2002-PAULO-MODESTO.pdf, acesso em 04 de outubro de 2013.

[4] MÂNICA, Fernando Borges. Participação privada na prestação de serviços públicos de saúde. 2009. 306p. Tese (Doutorado) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, 2009. P. 165

[5] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1923-5/DF, Tribunal Pleno, Relator Originário Min. Ilmar Galvão, Relator Min. Eros Grau, Diário de Justiça da União, 21 set. 2007. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=487894. Acesso em 04 de outubro de 2013.

[6] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1923-5/DF, Tribunal Pleno, Relator Originário Min. Ilmar Galvão, Relator Min. Eros Grau, Diário de Justiça da União, 21 set. 2007. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=487894. Acesso em 04 de outubro de 2013. p. 132

[7] TC 1715/010/02 - Contratante: Prefeitura Municipal de Vargem Grande do Sul – Contratada: Sansim Serviços Médicos S/C Ltda.

[8] TC 001246/006/07 – Contratante: Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto – Contratada: Sioux Medicina Diagnóstica Ltda.

[9] TC 037394/026/07 – Contratante: Prefeitura da Estância Hidromineral de Poá – Contratada: A. O. Serviços Médicos Ltda.

[10] Vide ADI 1500/ES; ADI 3430 / ES; ADI 3210/PR.

[11] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.430-8/ES, Tribunal Pleno, Min. Rel. Ricardo Lewandowski. Diário de Justiça da União, 22 de outubro de 2009. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=604552. Acesso em 04 de outubro de 2013.

[12] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.430-8/ES, Tribunal Pleno, Min. Rel. Ricardo Lewandowski. Diário de Justiça da União, 22 de outubro de 2009. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=604552. Acesso em 04 de outubro de 2013. p. 255