Prelúdio de uma filosofia das ciências criminais do futuro: entre o garantismo, agnosticismo e suas relações com a sociedade de risco.

Fernando Brito da Cunha

Bacharel em Direito e Mestrando pela PUC-SP. Advogado.

“O costume é muito poderoso e o bom costume, no começo, é muito desejável. Também era famoso pelas exposições na picota, instituição sábia e antiga que infligia uma punição cuja extensão ninguém poderia prever; também pelo pelourinho, outra velha e querida instituição, muito civilizadora e calmante quando vista em ação; também pelas diversas transações feitas com dinheiro de sangue, outro fragmento de sabedoria ancestral que levava sistematicamente aos crimes venais mais aterradores que poderiam ser cometidos sob o céu. De modo geral, Old Bailey, na época era a imagem preferida do preceito judicial de que “Tudo que existe é correto”; um aforismo que seria tão definitivo quanto preguiçoso caso não incluísse a consequências incomoda de que nada que já existiu estivesse errado” (DICKENS, Charles. Um conto de duas cidades. Tradução de Débora Landsberg. São Paulo: Estação Liberdade, 2010. P. 83). 

1. Nota introdutória

O objetivo do presente artigo é esclarecer as diferenças entre o Garantismo e o Agnosticismo nas ciências penais em geral, demonstrando princípios comuns e as diferenças na interpretação desses, bem como na fundamentação dessas duas correntes teóricas.

Posteriormente será examinado como estas correntes podem ou não se compatibilizar com a noção de uma sociedade de riscos permeada pela aleatoriedade de seus eventos e, até que ponto, elas são suficientes para atender as demandas sociais atuais, ou se, por muitas vezes, acabam por agravar os problemas que pretendem solucionar.

A escolha pelos princípios se deu pelo ponto comum que eles estabelecem entre o Direito Penal material e o processual, bem como para não tornar o alcance do presente estudo demasiadamente longo, evitando impropriedades de ordem metodológica.

O presente artigo não tem, desde já, uma sentença sobre o que deve ser feito, traz apenas alguns de pensamentos e preocupações. Nas palavras de Charles Dickens, podemos definir também a nossa época da seguinte forma:

“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da razão, a idade da insensatez, a época da crença, a época da incredulidade, a estação da Luz, a Estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante, todos iríamos direto ao Paraíso, todos iríamos direito no sentido oposto – em suma, a época era tão parecida com o presente que algumas das autoridades mais ruidosas insistiram que ela fosse recebida, para o bem ou para o mal, apenas no grau superlativo da comparação.”[2]

2. Garantismo e noções básicas

Conforme dito na introdução, iremos analisar alguns aspectos do Garantismo penal proposto pelo italiano Luigi Ferrajoli, para ter uma noção geral daquilo em que consiste sua teoria.

Antes de qualquer coisa, a teoria garantista é uma teoria epistemológica: versa sobre a construção do conhecimento do fato criminoso em um processo criminal, visando pautar limites democráticos para a construção da “verdade processual” e a extensão da punição em caso de sentença condenatória.

Primeiramente é preciso ressaltar que Ferrajoli[3] pauta aquilo que chamou de convencionalismo penal e a estrita legalidade, o importante nessas pautas é que aquele que legisla atenda rigoroso critério na tipificação de determinadas condutas, eis que é importante que todo comportamento tido como criminoso tenha seus contornos bem definidos (estrita legalidade), evitando que existam margens a serem preenchidas pelo magistrado, que deve ater-se aos contornos descritivos elaborados pelo legislador (mera legalidade).

Apenas tipificações empíricas conseguem estipular os limites cristalinos para que o magistrados possam exercer seu papel conforme a ideologia garantista, devendo ser essa a técnica legislativa adotada para a definição de conduta.

Se a conduta criminalizar é um fato empírico (um fato, com conduta por parte de um humano) passa a ser factível, na teoria garantista, a atribuição de responsabilidade e gradação de responsabilidade, além é claro de permitir a contradição da acusação pela defesa, cumprindo com a ideia garantista de limitação do poder punitivo.[4] Logo, vedadas estão as proibições de caráter moralizante: não será permitida a proibição do ser, apenas do agir, garantindo a liberdade intangível do agente. Mais do que isso: preserva-se a igualdade, pois não importaria quem você é. Ao cometer determinado ato você será punido.[5]

A cognição do delito no processo, no garantismo, tem ser verificável e refutável. Assim, as hipóteses acusatórias devem ser passíveis de verificação empírica, daí a necessidade de uma estrutura processual assertiva que permita comprovação empírica e sua refutação (tal qual nas ciências naturais).

Disso podemos perceber a inconveniência, pra a lógica garantista, dos tipos penais não podem ser abertos[6], eis que isso resulta na destruição completa de toda estrutura cognitiva[7] defendida por Ferrajoli, toda a ideia do garantismo só pode operar quando atendido o requisito da estrita legalidade. Daí a relação necessária de consequência: existindo estrita legalidade também existirá mera legalidade, para que a acusação narre fatos de forma precisa e com base nas provas, para que se possa refutar o alegado.[8]

Toda a teoria ferrajoliana gira em torno de uma busca de verdade judicial, não da busca por algo indeterminado como a justiça e essa verdade surge apenas quando existe uma estrutura processual dialética com limites legais bem definidos para que os sujeitos operem sob essa lógica. Daí a máxima de que a conclusão no processo penal só pode advir da verificação e não da intuição, e uma verificação construída dialeticamente.[9] Para o referido autor, deve existir uma clara separação entre os objetos do direito e da moral, o delito não derivaria de uma ideia de injustiça, mas de uma convenção legal útil para a bem comum sociedade, por isso verificável e refutável.

A ideia de saber (razão), em Ferrajoli, funciona como limitação de poder: a pretensão é de que pela racionalidade seja possível limitar o poder punitivo. Daí que os limites estabelecidos pela razão criam as fronteiras para o arbítrio do poder. Decorre disso a ideia de garantias libertária, emergem de garantias de verdade: para Ferrajoli o saber conhece a verdade, limitando o poder e garante a liberdade.[10] Tudo que foi dito não excluí a consciência de Ferrajoli sobre a impossibilidade da aproximação perfeita entre a interpretação da lei e seu texto, por isso que o referido autor a noção de verdade é sempre aproximativa do real, nunca perfeita.[11] Ainda sobre a verdade, o autor esclarece que, diferentemente da metodologia própria das ciências naturais a verdade aproximativa deve ser perseguida atendendo à limites éticos que limitem à atuação do poderes, sobretudo por princípio como o contraditória e ampla defesa, respeitando assim os limites estruturais do garantismo.[12] Aliás, essa lógica já foi exemplificada em outra oportunidade:

“Assim, “A” matou “B”. Matar é crime. Comprovação da verdade empírica de matar, com a jurídica (previsão do crime de homicídio). Desta forma, real e verdade são correspondentes entre a verdade real com a formal, por aproximação entre a verdade jurídica com a empírica. Afasta-se, assim, o real metafísico e sua inconveniência, em favor do real próximo.”[13]

Em resumo, a verdade processual é aproximativa, já que os autos do processo narram versões de verdade. Simplesmente por ser impossível reconstituir o passado tal como ocorreu, ele sempre será uma representação daquilo que foi: um fato que aconteceu. Exatamente por isso as partes devem reconstituir a verdade de forma dialética em um processo penal que franquie iguais armas para ambas.[14]

Conforme dito, diversamente do método das ciências naturais, a verdade na ciência jurídica, para Ferrajoli, não pode ser constituída apenas por observação e com ampla atuação de quem inquiri. Na verdade jurídica construída em um processo penal garantista, predominam muito mais a existência de depoimentos e laudos do que, efetivamente, o empirismo próprio das ciências naturais. Assim, é que assevera o autor: “(...) os elementos deixados no presente por uma conduta do passado (sinais do passado) é que se podem reconstruir os acontecimentos e tentar alcançar a verdade”.[15]

Outra diferença crucial entre as verdades jurídica e a natural é que, o inquiridor não possuí regras éticas que o determinem a chegar a conclusão X ou Y, já o inquiridor no Direito (não na história) caso tenha dúvida, deve sempre prestigiar o acusado, pelo princípio do in dubio pro reo.[16]

Outra preocupação do garantismo seria a imparcialidade do juízo, mas também uma imparcialidade possível, eis que o Ferrajoli tinha ciência de que a subjetividade sempre interfere no juízo, o que ele pretendia era evitar ao máximo as convicções de foro íntimo, a rigor deduções. No entanto o referido autor admitia que a própria atividade de reconhecer a conduta em um tipo penal bem definido já é uma atividade extremamente opinativa[17]:“ (...) os significados expressos na linguagem jurídica usada em uma aplicação operativa são tão ambíguos e opinativos quanto as regras de uso da língua ditadas pelas normas.”[18]

Daí a necessidade do sistema acusatório, como forma de afastar o juiz da atividade de acusador, permitindo ao ser humano investido pelo Estado a isenção necessária para funcionar como julgador, mas também como um verdadeiro “juiz de garantias”.[19]

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