"Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito" (Albert Einstein)


Assegura a Costituição Federal brasileira em seu art. 3o, incisos I e IV, como princípio fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, ou quaisquer outras formas de discriminação.

Levados ao âmbito da família, tais princípios, aliados ao da dignidade humana, culminaram em uma democratização do Direito de Familia, que passou a abarcar conceitos como o pluralismo familiar, a igualdade entre os cônjuges e companheiros, e entre os filhos, independente da origem, inclusive os adotivos; além de alicerçar princípios como o da liberdade e o da não discriminação.

Assim, os atuais modelos de constituição familiar, ao contrário do que ocorria antes da promulgação da Constituição de 1988, não advêm mais, obrigatoriamente, do casamento. Há uma nova concepção de família, conseqüência do declínio do modelo patriarcal que vigorou no Brasil por todo o século passado, não apenas no direito, mas também e, sobretudo, nos costumes. Cedendo espaço para o surgimento de novos agrupamentos familiares nos quais, acima de tudo, prevalece o afeto como elo de ligação entre os membros que os compõem

O conceito de família foi, portanto, ampliado. Estendendo nossa constituição, em seu art. 226, parágrafos 3o e 4o, a proteção estatal tanto a união estável (também tutelada pelo novo Código Civil em seus arts. 1.723 e seguintes), quanto à família monoparental, ou seja, aquela formada por apenas um dos pais e sua prole, no que poderiámos considerar como a expressão máxima do pluralismo familiar que já alcançamos.

Contudo, nas palavras de Cláudia Beatriz Sicília:

"(..) a travessia ainda não se completou, eis que as uniões formadas por pessoas do mesmo sexo não se encontram em um grau de dignidade suficientemente significativo a ponto de merecer a proteção estatal. A própria lei civil, recentemente posta em vigor, não foi audaciosa o bastante para vencer a barreira do preconceito, inserindo em seu capítulo referente à proteção da família a necessária regulamentação que as uniões homossexuais impõem, diante da necessidade de adequação da realidade às leis civis."

De fato, no que concerne às uniões homossexuais, ou homoafetivas, verifica-se ainda hoje em nosso país uma total ausência de regulamentação no que tange à proteção a família. O próprio parágrafo 3o do aludido dispositivo constitucional, expresão do mais atual e democrático conceito de família, ao referir que: "Para efeito da proteção do estado é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar (...)" denota-se, paradoxalmente, retrógrado e proconceituso no que pertine às relações homossexuais, ao limitar sua proteção apenas às uniões entre pessoas de sexos distintos, malgrado o princípio constitucional da igualdade, alçado à categoria de princípio fundamental, conceda proteção específica no que concerne às questões de gênero.

De forma explícita, aliás, o artigo 3o, inciso IV, assim como o artigo 5o, caput, do Diploma Constitucional, veda qualquer tratamento desigual e de cunho discriminatório.

"Art. 3o - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."

"Art. 5o - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)"

Não obstante, deliberadamete, e preconceituosamente, eu diria, fecha os olhos nosso Direito Civil à realidade das uniões homoafetivas.

Mais interessante, contudo, torna-se toda a questão, ao trazermos a baila a Lei 11.340, de 07/08/2006, também conhecida como "Lei Maria da Penha", que, embora criada no intuito de coibir a violência familiar e doméstica contra a mulher, trouxe-nos um conceito inédito de família em seu parágrafo 5ᵒ, que assim dispõe:

"Art. 5o - Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual."

Ao dispor em seu parágrafo único que independe de orientação sexual a tipificação do que a própria lei chama de 'violência doméstica e familiar' contra a mulher, e, visto que impossível a ocorrência de violência 'familiar' ou 'doméstica' fora do cenário da família, tal dispositivo expressamente eleva ao status de unidade familiar a união entre duas mulheres. Por conseguinte, abarcando também, pela aplicação do princípio da anlogia e da igualdade, as relações entre homens.

A própria inserção do aludido parágrafo, inclusive, deixa clara a intenção do Legislador de, de forma expressa, extirpar qualquer possibilidade de interpretação diversa da aqui estabelecida. Mesmo porque, interpretá-la de forma contrária poderia levar ao absurdo da hipocrisia de que uma mulher, vítima de violência familiar pela sua parceira, não pudesse obter a proteção legal.

Trazendo, pois, para o âmbito da família, da unidade doméstica, qualquer relação íntima de afeto entre indivíduos que, por vontade expressa, consideram-se aparentados, independente de orientação sexual, a referida lei claramente abarca as uniões homoafetivas, jogando-nas, de forma surpreendente, dentro do conceito de família.

Assim que de maneira irônica é a Lei Maria da Penha que, em caráter incidental, vem a nos trazer alguma esperança de novos paradigmas no âmbito da familia, institucionalizando uma situação fática inegável e premente, enquanto nosso Direito Civil, inerte, se cala.

Mais do que nunca, portanto, urge este ramo do nosso direito de uma completa reforma no que respeita às suas noções de família, no sentido de melhor coadnuar-se a uma tendência legislativa vigente, bem como em respeito aos princípos fundamentais da nossa carta constitucional. Rompendo com as amarras do preconceito e da intolerância.

Afinal, se hoje, a família é já entendida com um núcleo de afetividade, logo, o afeto não há que se restringir às uniões entre pessoas do sexo oposto. Ao contrário, bem sabemos que os casais homossexuais conjugam o mesmo afeto, os mesmos planos comuns, as mesmas vontades e os mesmos interesses que o fariam um casal heterossexual.

Contudo, em que pesem entendimentos doutrinários e jurisprudenciais no sentido de admitir a união homoafetiva, respeitando-se os requisitos da união estável, como entidade familiar, e, embora contemos já com um projeto de lei neste sentido (Projeto de Lei n.º 1151/95 da ex-deputada Marta Suplicy), temos ainda que nos deparar, mesmo entre nossos juristas, com claras manifestações de proconceito como a do Dr. Ives Gandra Martins que, ao se referir ao aludido Projeto de Lei, disse:

"(...) parece-me de manifesta inconstitucionalidade o projeto de lei da Deputada Marta Suplicy, pretendendo dar ares de entidade familiar à união de pederastas e de lésbicas, visto que tal tipo de entidade não é reconhecido pela Constituição, não representa a formação de uma entidade familiar e agride, inclusive, o conceito de família hospedado pela Lei Suprema."

É este tipo de pensamento, que, arraigado na ignorância, encontra guarida na intolerância e nos mantém estagnados. Impedindo-nos de alcançar nosso ideal constitucional de igualdade e dignidade da pessoa humana, ou mesmo de nos nivelarmos aos Estados modernos, cuja tendência, é o respeito ao direito individual e inviolável de adotar livremente e, sem maiores embaraços, a orientação sexual que lhe é própria.

Mesmo porque uma das formas de se aferir o grau de democracia de uma determinada nação é, por certo, observar o tratamento concedido às minorias, e, os homossexuais, inseridos nesse contexto, representam um indicativo de alta confiabilidade para tal apuração.

Nessa perspectiva, verificam-se grandes avanços no direito comparado.

Em 1989, a Dinamarca foi o primeiro país a reconhecer a união entre pessoas do mesmo sexo. A Suécia também legalizou referidas uniões, sendo facultada a possibilidade de assinar o sobrenome do parceiro. Na Noruega, a lei que regulamenta as uniões homoafetivas foi aprovada em março de 1993. A Islândia, da mesma forma, possui lei que concede os direitos das pessoas casadas às uniões homossexuais. Na Suécia, com a Lei de 23 de junho de 1994, foi reconhecida a 'partenariat', cujo efeito foi oficializar a união entre pessoas de igual sexo, reconhecendo direitos e impondo deveres recíprocos, entre eles o de assistência moral e material. A França, no ano de 1999, instituiu o denominado 'Pacto Civil de Solidariedade', cujo teor confere os mesmos direitos estendidos ao casamento para as uniões informais, sejam hetero ou homossexuais. E a Holanda ainda inseriu em seu ordenamento jurídico o instituto da adoção por casais homossexuais, sendo também o único páis que reconhece a possibilidade concreta de casamento, denominada 'same-sex marriage'. Recentemente, em 13 de dezembro de 2002, Buenos Aires tornou-se a primeira cidade da América Latina a reconhecer a união civil entre as pessoas do mesmo sexo.

Em contrapartida, constata-se, segundo dados da Anistia Internacional, que mais de 70 nações ainda tipificam a homossexualidade como crime e em 30 países foram verificados abusos aos direitos humanos dos homossexuais, figurando os países islâmicos e muçulmanos como grande parte desse conjunto denominado de "extrema repressão".

Delineado o cenário, resta agora apenas escolhermos em qual lado pretendemos figurar: o da Democracia ou o do Preconceito.

Ricardo Fiúza, deputado federal e relator do projeto do Novo Código Civil, afirma, no entanto, que embora exista plena consciência da relevância do tema, o assunto ainda exije longo e profundo debate com a sociedade civil.

O que o relator deixou de considerar, todavia, é que a sociedade civil a qual se refere é exatamente a sociedade onde reina o pluralismo de interesses, idéias, preferências e orientações. A família homoafetiva é uma realidade. Ignorá-la é apenas fechar os olhos. Negando hoje, como outrora, aquilo cuja diversidade irracionalmente incomoda.

Atravessamos o século das luzes, mas continuamos no escuro. Pseudos bastiões da virtude vagam vendados por corredores desertos de masmorras obsoletas. Escondem-se sob as grossas paredes de suas catedrais de verdades vazias. E o conservadorismo do legislador brasileiro quanto à evolução no conceito de família não passa de expressão da influência desses covardes que pensam que a civilização corre o risco de ser engolida por clones, bárbaros bissexuais ou delinqüentes da periferia. Um conservadorismo que fecha os olhos e se omite. Um direito dissociado da realidade. Isolado e cego.

É tempo de acordar dessa letargia de séculos e abrir os olhos a construção de um novo direito. Justo, consciente e comprometido. É hora de rumarmos também nós, na esteira dos modernos Estados democráticos, à novos paradigmas de igualdade, dignidade e respeito. Aceitar outros modelos familiares não significa dizer que a família será destruída. Conceber apenas a família nuclear composta pelo casal heterossexual e filhos como o único modelo de família aceitável, é incompatível com a natureza afetiva da família. A noção de família como núcleo de afetividade e base da sociedade deve ser encarada, como de fato é, como um fator cultural. E, dessa maneira, a legislação deve acompanhar a evolução da sociedade e, conseqüentemente, dos arranjos familiares.




"Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas."

(Mãos Dadas - Carlos Drumond de Andrade)
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REFERÊNCIAS

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil ? Direito de Família. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.

MELLO, Julio de; BURD, Miriam. Doença e família. 7a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

JUS NAVEGANDI. < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8911 >. Acessado em 13 jun. 2010.

JUS NAVEGANDI. < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6495 >. Acessado em 13 jun. 2010.