PRATOS LIMPOS: ÉTICA, ECOLOGIA E PECUÁRIA INDUSTRIAL

Tiago Masutti Brasil
Prof. César Augusto Jungblut
Centro Universitário Leonardo da Vinci - UNIASSELVI
Licenciatura em História (HID 0254)
29/06/15


RESUMO

O presente artigo faz uma revisão das relações entre pecuária, consumo, ética e ecologia, sob a ótica da História do Tempo Presente. No decorrer do último século, a pecuária tradicional, com animais criados soltos em pequenas fazendas ao redor do globo, foi em sua maior parte substituída pela pecuária intensiva, onde os animais são amontoados aos milhares em galpões insalubres controlados por poucas empresas. O processo é alimentado pela grande demanda de carne, leite, ovos e derivados entre os alheios consumidores urbanos no mundo todo, e tem por finalidade reduzir os custos e aumentar os lucros da indústria. Entretanto, este sistema é fonte de profundas consequências negativas para os animais, que são tratados como produtos à venda, sem qualquer consideração por suas necessidades básicas; da mesma forma, o meio ambiente sofre os impactos desse tipo de produção, onde enorme quantidade de recursos naturais é desviada para sustentar a atividade, bem como recebe toda sorte de dejetos poluentes sem fiscalização. Desta forma, é necessário que a comunidade esteja atenta a este tipo específico de relação do homem com a natureza, avaliando com seriedade os impactos da pecuária intensiva através de uma nova abordagem acadêmica pautada na ética e na ecologia.

Palavras Chave: Tempo presente. Pecuária. Consumo. Ética. Ecologia.


 1 INTRODUÇÃO


A alimentação é uma característica fisiológica, social, cultural e econômica do ser humano, sustentada em nosso viver, desde sempre, através de diferentes processos como: a coleta, a caça, a pesca, a agricultura e, particularmente, a pecuária. Nesse longo período de tempo, a História registra que animais têm sido submetidos ao domínio dos homens, com menores ou maiores impactos locais. Entretanto, pouco se debate, entre pesquisadores do tempo presente, a transformação capitalista pela qual o processo da pecuária evoluiu no último século, constituindo uma indústria gigantesca que mata bilhões de animais por ano e acarreta profundas consequências morais e ambientais para o planeta como um todo. Os seres humanos, ignorando os impactos que têm como causa a sua alimentação inconsciente - haja visto que a cultura do consumo desenfreado e da publicidade enganosa tornam ocultos esses processos - acabam por alimentar uma teia de relações complexas e insustentáveis para a biosfera e para o pensamento ético comprometido.
Sob a perspectiva da História do Tempo Presente, procuramos apontar, de forma introdutória e concisa, as modernas relações e contradições entre pecuária, consumo, ética e ecologia. Estes temas estão emaranhados a alguns processos históricos importantes do pós-guerra, tais como: a expansão da pecuária intensiva e da pesca em grande escala pelo mundo; a sua transformação numa indústria racionalizada e plenamente voltada ao capital; as técnicas análogas à escravidão humana aplicadas aos animais; o esgotamento ambiental provocado por essa indústria; a valoração dos animais como mercadorias; o descompasso moral entre o humanismo e a contumaz indiferença pela condição dos animais na pecuária; o avanço da urbanização e do consumo; por fim, a ascensão de um novo paradigma epistemológico com lastro na ecologia.
Desta forma, o presente estudo se constitui numa revisão bibliográfica através de pesquisa em livros, artigos acadêmicos e documentos na internet, tendo como foco a atividade pecuária (sobretudo a chamada pecuária intensiva ou industrial) estimulada através do padrão alimentar ocidental moderno, baseado em produtos de origem animal. A construção desta análise histórica se alicerça em pensadores relevantes para o tempo presente, como os filósofos Jonathan Safran Foer, Peter Singer, Fritjof Capra, Tom Regan, Sônia T. Felipe, Carlos Naconecy, entre outros. Por questão de recorte temático e limitação formal da pesquisa, não foram analisados outros modos de produção e consumo que envolvam animais, como em experiências de toda sorte, para a moda, o entretenimento, trabalhos forçados, sacrifícios religiosos, etc.


2 RELAÇÕES HISTÓRICAS ENTRE PECUÁRIA, CONSUMO, ÉTICA E ECOLOGIA NO TEMPO PRESENTE


2.1 PECUÁRIA


A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, as cidades e os subúrbios começaram a inchar expressivamente no mundo todo e o meio rural perdeu, pouco a pouco, a maior parte de sua população, tendo em vista que a produção agrícola estava se tornando altamente mecanizada e eficiente. Os poucos homens do campo que restaram passaram a se dedicar, geralmente, à pecuária. Mas, em dado momento, ocorreu aos homens de negócio que seria possível, da mesma forma que na agricultura, tornar mecanizada e eficiente a pecuária e a criação tradicionais. Ocorreu-lhes que era possível, usando técnicas artificiais, tratar os animais vivos como máquinas (FOER, 2011, p. 114). Assim, o que antes era uma vida mais ou menos natural para os animais nas pequenas fazendas, transformou-se num processo mecanizado, estabelecido através de prisão, confinamento, jaulas, escuridão, superlotação, insalubridade, desarticulação social, remédios, tortura e mortes cruéis, longe dos olhos e da consciência da maioria de nós humanos. Tais elementos passaram a fazer parte tanto da vida dos animais, como também do cotidiano dos poucos trabalhadores que estão sujeitos a operar nesta indústria.
A pecuária moderna não é uma atividade ambientalmente limpa, e os animais que o homem urbano consome não são criados e mortos de maneira digna numa fazenda, nem tratados por criadores dedicados e apaixonados pela lida no campo. O cenário observado na pecuária do tempo presente é o justo oposto. Os animais, principalmente aves e suínos, outrora criados ao ar livre e em abrigos semelhantes aos naturais, passaram a ser amontoados aos milhares num grande galpão industrial, como nos modernos aviários, sem conseguirem identificar nada ao seu redor, nem estabelecerem grupos estáveis de sociabilidade. Antibióticos são administrados preventivamente e regularmente, apenas para evitar um número de mortes muito elevado - que seria de nível alarmante, nestas condições tão insalubres, sem o uso de remédios. Frequentemente, as aves ou mamíferos são colocados em jaulas minúsculas, sem qualquer espaço para se movimentarem, defecando e pisando uns sobre os outros, mordendo as barras incessantemente num estágio similar à loucura. Métodos de mutilação são também utilizados preventivamente e - importante destacar - sem qualquer tipo de anestesia, como a castração, a debicagem (corte de bico) e o corte do rabo, para que os próprios animais não acabem se mutilando na loucura do confinamento, ou para que engordem mais (FOER, 2011). Este cenário nos remete ao pensamento do filósofo Peter Singer (2010, p. 77), que afirma que nos últimos anos os métodos industriais de produção transformaram a pecuária num negócio. Tudo começou quando as empresas passaram a controlar a produção de aves, outrora sob o domínio da esposa do agricultor tradicional. Hoje em dia, existem aproximadamente apenas cinquenta grandes empresas que controlam praticamente toda a produção de aves nos Estados Unidos. Agora os animais são vistos como máquinas de converter ração de baixo custo em carne de preço elevado, sendo que qualquer inovação que apresente uma “relação de conversão” com custos mais reduzidos para o empresário é prontamente adotada.
O filósofo Jonathan Safran Foer (2011, p. 61-62, 69) exemplifica o caso das galinhas poedeiras. A gaiola típica para elas dispõe de apenas 432 centímetros quadrados de chão, algo próximo de uma folha A4. São empilhadas em grupos de três a nove e chegam a possuir dezoito andares sem janelas. As galinhas têm comida e luz controladas para aumentar a produtividade, sem preocupação com seu bem-estar, reprogramando seus relógios biológicos de maneira que ponham ovos mais rapidamente e ao mesmo tempo. Às vezes, a escuridão é completa 24 hora por dia, 7 dias por semana, sistema aliado a um regime baixo em proteína para que elas quase passem fome. Então as luzes passam a ser acesas por até vinte horas diárias, e uma dieta rica em proteínas é inserida. As aves pensam que é primavera e começam a pôr ovos. Após um ano neste sistema as aves são mortas pela indústria, porque já não colocam tantos ovos, e se torna mais barato abatê-las do que alojar e manter aves menos produtivas. Todo o negócio da pecuária industrial tem uma “ciência” que lhe sustenta.
Com pouquíssimo tempo de vida, as aves com as quais nos alimentamos são recolhidas - às pressas e sem cuidado, sendo que frequentemente várias aves são seguradas pelos seus pés em uma única mão humana - por funcionários que, em geral, são pouco instruídos e mal remunerados, e levados por caminhoneiros até o local de abate. Nestes dois percursos - até o caminhão e o matadouro - que podem levar dias, ocorrem muitas mortes e ossos quebrados, seja por frio, calor, fome, pânico entre os animais ou desleixo dos empregados. A indústria alimentícia é plenamente ciente dessas mortes e fraturas, faz a contabilidade e, mesmo assim, obtém o lucro que deseja, considerando desnecessário aumentar despesas para evitar este cenário (FOER, 2011).
Já nos matadouros ocorre um intenso sofrimento psicológico, sobretudo para mamíferos como porcos, bois e vacas. Os animais estão num lugar frio e estranho. A maioria percebe o que está ocorrendo, seja pelo cheiro, seja pelos sons, e fica tensa, transmitindo medo ao grupo. Ao serem recolhidos, eles são postos em fila, muito agitados. Depois, geralmente, são “insensibilizados” (na verdade, desmaiados) através de pistola pneumática (uma espécie de “porrete” mecânico aplicado em seu crânio), choque elétrico ou - em abatedouros com menos recursos ou ilegais - a tradicional marretada na cabeça (FOER, 2011, p. 229-236). Esses métodos de insensibilização não são inteiramente confiáveis. Uma porcentagem considerável destes animais não sofre uma desensibilização ou desmaio adequado, no início do processo, e ainda está plenamente consciente e aterrorizada quando o resto acontece. Nestes casos, que são incontáveis, os animais são degolados, esfolados e esquartejados conscientes. Já em matadouros clandestinos, que no Brasil chegam a quase metade do total, o abate é sempre a marretadas. São necessárias várias delas para matar o animal e, muitas vezes, ele chega ainda vivo ao próximo estágio (NACONECY, 2006, p. 211). Isto ocorre porque os gerentes da linha de abate não interrompem o processo todas as vezes que um animal não é corretamente desmaiado, pois a empresa não deseja ter prejuízos financeiros, com perda de tempo e dinheiro (FOER, 2011, p 229-236). “A velocidade acelerada do processo de abate não permite uma verificação da consciência do animal. [...]Os animais, apenas paralisados, podem recobrá-la”, explica o doutor em filosofia Carlos Naconecy (2006, p. 211). Em seguida, eles são esfaqueados e perdem todo seu sangue, que continua fluindo com as batidas do coração ainda vivo; depois escaldados em água fervente e desossados. A partir daí, a carne desses animais é processada, embalada e chega limpa ao supermercado, pronta para ser vendida ao consumidor, que está alheio a todo o processo. “O fato de termos uma legislação de proteção aos animais não garante aos animais qualquer proteção contra as práticas cruéis, resultado do confinamento em massa ao qual são condenados pelo mercado da carne, laticínios [...]” (FELIPE, [ca. 2014], p. 102-103).
A Declaração de Cambridge sobre a Consciência (LOW, 2012) postula que

[...]redes neurais subcorticais estimuladas durante estados afetivos em humanos também são criticamente importantes para gerar comportamentos emocionais em animais. A estimulação artificial das mesmas regiões cerebrais gera comportamentos e estados emocionais correspondentes tanto em animais humanos quanto não humanos. Onde quer que se evoque, no cérebro, comportamentos emocionais instintivos em animais não humanos, muitos dos comportamentos subsequentes são consistentes com estados emocionais conhecidos, incluindo aqueles estados internos que são recompensadores e punitivos. A estimulação cerebral profunda desses sistemas em humanos também pode gerar estados afetivos semelhantes. Sistemas associados ao afeto concentram-se em regiões subcorticais, onde abundam homologias neurais. Animais humanos e não humanos jovens sem neocórtices retêm essas funções mentais-cerebrais. Além disso, circuitos neurais que suportam estados comportamental-eletrofisiológicos de atenção, sono e tomada de decisão parecem ter surgido evolutivamente ainda na radiação dos invertebrados, sendo evidentes em insetos e em moluscos cefalópodes (por exemplo, polvos).


Desta forma, é evidente para a neurociência moderna que os animais - notadamente os atingidos pela atividade pecuária - assim como humanos, possuem consciência; logo têm uma dimensão psicológica, sofrem e sentem medo, frio, calor e dor. Isto certamente coloca a pecuária numa situação, no mínimo, desconfortável. O processo industrial de criação e abate de animais é, de acordo com o filósofo Fernando Schell Pereira, equivalente ao pensamento de Hannah Arendt (1999, p. 268 apud PEREIRA, 2011, p. 22) acerca do nazismo, ou seja, à tese da banalidade do mal. Em síntese, Arendt alega que a matança sistemática de judeus, o chamado holocausto, é um crime enorme e complexo, no qual muitas pessoas se envolvem, em muitos níveis e atividades diferentes. Existem os planejadores, os organizadores e os executores. São crimes cometidos em massa, tanto quanto ao número de vítimas quanto ao número de criminosos. O fato de os criminosos estarem distantes ou próximos à cena do crime não muda sua responsabilidade. Ao contrário, a culpa aumenta quanto mais longe o mandante se coloca do homem que mata com as próprias mãos.
De fato, para além do sentido original de sacrifício de animais no fogo, é possível observar algumas semelhanças entre o holocausto e o sistema mundial de abate de bilhões de animais ao ano. O relato de um prisioneiro austríaco durante o regime alemão vigente durante a Segunda Guerra Mundial é contundente e oferece suporte à analogias. Ele conta que observou, pela janela da câmera de descompressão, um prisioneiro que, trancafiado lá dentro, suportou o vácuo até seu pulmão arrebentar. Os prisioneiros submetidos à descompressão ficavam transtornados, arrancavam os cabelos, esmurravam a cabeça e arranhavam o rosto, davam socos na parede e nela atiravam suas cabeças; tudo para inutilmente tentarem se livrar da pressão em seu corpo. A maioria dos casos acabava em morte (SHIRER, 1964, p. 495 apud PEREIRA, 2011, p. 13).
Embora sem apresentar a mesma motivação ideológica (eugenia), as práticas da pecuária moderna provocam o mesmo tipo de consequência física para os animais que aquela sofrida nos campos de concentração por humanos. Carlos Naconecy (2006, p. 211) afirma que os animais não entregam sua vida voluntariamente, nem mesmo morrem dormindo ou anestesiados, ao contrário. A angústia sofrida pelos animais, de morrerem violentamente num ambiente estranho, é muito presente. Muitos deles entram em pânico, agitam-se freneticamente. Eles já antecipam o que ocorrerá em virtude do cenário que os cerca. Eles ouvem, vêem e cheiram a morte chegando, tentando fugir sem sucesso do matadouro. “Auschwitz começa toda vez que alguém olha para um matadouro e pensa: eles são apenas animais”, definiu o filósofo Theodor Adorno (apud PATTERSON, 2005).
Segundo Jonathan Safran Foer (2011, p. 93), “Os poderosos e influentes do setor da criação industrial de animais sabem que o modelo de seu negócio depende de os consumidores não poderem ver (ou ouvir falar sobre) o que eles fazem”. Em qualquer indústria, por exemplo, é importante que os produtos sejam uniformes. Na pecuária industrial, os leitões que não crescem conforme o desejado pelo sistema acabam sugando recursos dos empresários do setor; desta forma eles são mortos de maneira cruel, numa prática denominada de “batida”. Os pequenos porcos são erguidos pelas pernas traseiras, girados no ar e golpeados de cabeça no chão de concreto. Até 120 porcos são mortos através deste método por cada empregado. Conta um destes funcionários que, depois que até catorze porcos são mortos desta forma, eles são empilhados em um caminhão. Neste momento, constata-se que alguns ainda estão vivos, então os funcionários lhes golpeiam novamente. “Houve ocasiões em que entrei naquela sala e eles estavam correndo com um olho pendurado do lado do rosto, sangrando feito loucos, ou com o queixo quebrado” (FOER, 2011, p. 191).
Na indústria aviária, recentemente vem sendo adotado um método de extermínio - gentilmente chamado pela indústria de “depopulação” - de animais tidos como imprestáveis para o negócio, como frangos doentes, por exemplo. Eles são amontoados às centenas num canto de um galpão, onde uma máquina geradora de espuma, através de um líquido detergente de alta expansão, lança esse produto sobre os animais que, aterrorizados com o avanço das bolhas, sofrem asfixia e levam cerca de seis minutos para morrerem. Em exames feitos após a morte, são constatados nas aves a presença de bolhas de espuma na cavidade oral e nas traqueias, bem como congestão e hemorragia nos pulmões (ISHIZUKA et al., 2011, p. 155).
Uma enciclopédia de atrocidades rotineiras pode ser encontrada nos matadouros ao redor do mundo, sejam eles clandestinos ou não, desde funcionários usando bastões de beisebol para acertar filhotes de peru, pisoteando galinhas para vê-las estourar, batendo em porcos doentes com canos de metal e desmembrando propositalmente o gado totalmente consciente. As entrevistas com trabalhadores são sempre perturbadoras e exemplificam, também, o tipo de desordem psicológica a que estes seres humanos estão sujeitos na indústria pecuária (FOER, 2011, p. 256). Um funcionário afirma, por exemplo, que certa vez a pistola pneumática que provoca o desmaio das vacas no matadouro estava quebrada. Então seus colegas pegavam uma faca e cortavam a parte de trás do pescoço da vaca, enquanto ela ainda estava em pé. Logo elas caíam e tremiam. Os homens apunhalavam o ânus da vaca para fazê-las andar, quebravam seus rabos e batiam muito nelas, enquanto elas berravam com a língua para fora. “É difícil falar sobre isso. Você está sob um bocado de estresse, toda essa pressão. Parece muito malvado, mas já peguei aguilhões [elétricos] e enfiei nos olhos deles. E fiquei segurando lá” (FOER, 2011, p. 257). Outro relato de crueldade semelhante, que ocorre rotineiramente, expõe com nitidez o tipo de ambiente que cerca humanos e animais em muitos abatedouros:

No boxe de sangria, eles dizem que o cheiro de sangue deixa você agressivo. E deixa mesmo. Você começa a pensar: se aquele porco me chutar eu vou descontar. De todo modo, já vai matar o porco, mas isso não é suficiente. Ele tem que sofrer… Você pega pesado, empurra com força, corta a traqueia, faz ele se afogar em seu próprio sangue. Corta o nariz ao meio. Um porco vivo está correndo pelo boxe. Só está olhando para mim e eu sou o sangrador, então, pego a minha faca e… Corto seu olho enquanto ele está ali parado. O porco só grita. Uma vez, peguei minha faca - ela é bem afiada - e cortei fora a ponta do nariz de um porco, como se fosse um pedaço de salsichão. Ele ficou enlouquecido por alguns segundos. Depois, só ficou sentado ali, com cara de idiota. Então, peguei um punhado de salmoura e joguei no nariz dele. O bicho ficou maluco de verdade, esfregando o nariz por toda a parte. Eu ainda tinha um pouco de sal na mão - estava usando uma luva de borracha - e enfiei o sal bem no rabo do porco. O pobre porco não sabia se cagava ou ficava cego… E eu não era o único cara que fazia esse tipo de coisa. Um cara com quem trabalho persegue os porcos até eles caírem no tanque de escaldar. E todo mundo - os que conduzem os porcos, os que os prendem, o pessoal dos serviços - usa canos de metal nos porcos. Todo mundo sabe disso, de tudo isso (FOER, 2011, p. 257).

Neste sentido, Carlos Naconecy (2006, p. 208) sustenta que as condições da criação intensiva de animais são cruéis e bárbaras, significando uma vida de miséria, privação, angústia ou tédio para cada animal. Essa indústria cresceu devido à forte demanda por carne, leite e ovos. Nesse sistema, o comportamento natural dos animais, tudo que comem, a forma como vivem e sua reprodução são controlados. Isto é equivalente à escravidão, tendo em vista que nenhum animal se entregaria voluntariamente a tais condições; porém a maioria das pessoas não sabe como é a vida nesses lugares.
Há graves obstáculos criados pela indústria pecuária para que ocorram inspeções e regulamentos. Alguns representantes do negócio chegam, inclusive, a indicar autores de sua confiança para a elaboração de relatórios, outros desencorajam esses autores a colaborar com inspeções, ameaçando a retirada do custeio de pesquisas em universidades. Existe influência do negócio pecuário em importantes setores de nossa sociedade, como em pesquisas acadêmicas, em políticas para o campo, na regulamentação governamental e na imposição de seu cumprimento (FOER, 2011, p. 93).
Desta forma, parece claro que a pecuária intensiva é fonte de grande impacto, tanto para humanos quanto, muito mais, para os animais sistematicamente torturados e abatidos por ela todos os dias. Embora não adotado como regra formal de comportamento pela indústria, todo tipo de sadismo é favorecido entre os funcionários, que rotineiramente descontam suas frustrações nos animais. “Lá no boxe de atordoamento, eu não estava alimentando pessoas. Eu estava matando animais”, exemplifica um empregado (FOER, 2011, p. 258). Portanto, longe de ser um fato isolado, a crueldade é um padrão inerente ao processo pecuário, e todas as expectativas humanas são distorcidas neste empreendimento de escala global, fazendo com que, por exemplo, veterinários não trabalhem em favor da saúde dos animais, mas para obter o maior lucro possível para seus patrões. Os medicamentos, da mesma forma, não são utilizados para curar doenças, mas como muletas para sistemas imunológicos deficientes de animais submetidos a confinamento - já que as criações não têm por objetivo produzir animais saudáveis (FOER, 2011, p.192). Vejamos, a seguir, os mecanismos emaranhados na teia de relações que sustenta e se renova na indústria pecuária.


2.2 CONSUMO


A pecuária industrial está diretamente ligada aos hábitos de consumo da sociedade contemporânea. Assim como o modelo de produção, o modelo de compras norte-americano também foi culturalmente exportado para o resto do mundo, até mesmo para regiões sem um desenvolvimento educacional ou sanitário equivalente ao dos países desenvolvidos. Através de um processo historicamente singular e abrangente, percebemos a expansão do crédito, dos shopping centers, do fast food, dos automóveis particulares, dos produtos descartáveis. Neste sentido, a alimentação tem um papel fundamental para criar uma espécie de “Disneylândia do consumo”, ou seja, um cenário urbano ilusório e artificial de inconsequentes prazeres eternos, disponíveis a todo o momento através do dinheiro - pois comer é o hábito mais elementar e difundido em todas as regiões, repetido incansavelmente várias vezes ao dia. Quando um ser humano decide incluir produtos de origem animal em sua alimentação diária, ele age como bilhões de outros seres humanos. Este aparentemente singelo hábito isolado retroalimenta a indústria, pois é multiplicado bilhões de vezes ao dia, gerando uma demanda cada vez maior por animais na pecuária intensiva. Todo o processo de criação e abate industrial tem por finalidade o interesse das grandes corporações em baratear os custos e incrementar o consumo de carne no mundo. Quanto mais se consome produtos de origem animal, sobretudo diretamente em nossas refeições ou, por exemplo, em alimentos à base de proteína animal oferecidos para animais de estimação, como cães e gatos  - que, de acordo com muitos veterinários, também podem ser cuidadosamente introduzidos à rações e proteínas vegetais específicas (ARAÚJO, 2013) - mais cresce o modelo desumano de confinamento da pecuária industrial.
Da mesma forma que vacas e galinhas, os peixes também têm um destino funesto. Nas grandes cidades modernas, em diversos bairros, é possível encontrar restaurantes especializados em comida oriental, servida principalmente à base de peixes, moluscos e crustáceos. Como ocorre com churrascarias, à base de carne, ou pizzarias, à base de laticínios (queijos), os estabelecimentos que vendem “sushis” e “sashimis” parecem estar sendo inseridos rapidamente no mercado de consumo de massa, como uma grande moda culinária. De acordo com Jonathan Safran Foer (2011, p. 40-41;59-60),

A pesca industrial não é exatamente como a criação industrial em fazendas e granjas, mas pertence à mesma categoria e precisa ser parte da mesma discussão - ela é parte do mesmo ardil. Isso fica mais evidente na aquicultura (criações onde os peixes são confinados em cercados e “colhidos”), mas todos os menores detalhes também são válidos para a pesca livre, que compartilha o mesmo espírito e uso intensivo de tecnologias modernas. [...]Quando analisamos o quadro completo da pesca industrial - os 1,4 bilhão de anzóis lançados a cada ano na pesca com espinhel (em cada qual está um pedaço de peixe, lula ou golfinho usado como isca); as 1200 redes, cada uma com 48 quilômetros de comprimento, usadas por apenas uma frota para pegar apenas uma espécie; a capacidade de um único barco de carregar em poucos minutos cinquenta toneladas de animais marinhos -, fica mais fácil pensar nos pescadores contemporâneos como criadores em escala industrial do que como pescadores. [...]Essa combinação leva a pescas maciças com quantidades maciças de captura acidental. Considere o camarão, por exemplo. Em média, a operação de pesca do camarão com rede de arrastão joga por cima da amurada de 80 a 90% dos animais marinhos que captura, mortos ou morrendo, como acidental  (espécies ameaçadas de extinção somam grande parte dessa captura acidental). O camarão constitui apenas 2% dos frutos do mar do mundo, por peso, mas sua pesca, com redes de arrastão, responde por 33% da captura acidental do mundo. Tendemos a não pensar nisso porque tendemos a não saber disso. E se em nossa comida houvesse rótulos, informando-nos de quantos animais foram mortos para trazer o animal desejado ao nosso prato? Então, com o camarão pescado em redes de arrastão na Indonésia, por exemplo, o rótulo poderia dizer: para cada quilo deste camarão, 26 quilos de outros animais marinhos foram mortos e jogados de volta ao oceano. [...]Imagine que lhe servem um prato de sushi. E que esse prato também contém todos os animais que foram mortos para a sua porção de sushi. O prato precisaria ter um metro e meio de diâmetro.

Carlos Naconecy (2006, p. 74) argumenta que toda nossa retórica fornece uma série de eufemismos ao vocabulário para não lidarmos seriamente com a questão animal, como: “abater” no lugar de “matar”, ou “carne” no lugar de “pedaço de animal morto”, por exemplo. Desta forma, não podemos dar nomes aos animais que comeremos, para evitar uma proximidade psicológica. “De fato, não é fácil matar ou machucar qualquer criatura capaz de morrer ou se machucar sem, em primeiro lugar, degradá-la verbalmente”, ele afirma. No mesmo sentido, Peter Singer (2010, p. 76) pondera que, normalmente, as pessoas ignoram o abuso que é cometido sobre as criaturas que subjaz a comida com a qual nos alimentamos. Pois comprar comida num supermercado ou restaurante é apenas o final de um longo processo do qual praticamente tudo, com exceção do produto final, é afastado de nosso olhar. “Compramos a nossa carne em embalagens de plástico limpas. Quase não sangra. Não há razão para associar esta embalagem ao animal vivo, que respira, caminha e sofre”.
De acordo com Fernando Schell Pereira (2011, p. 30), “[...]a relação do animal humano com os demais não humanos é de completa subestimação, partindo do princípio de senhor e escravo”. Ele afirma que a vida destes animais não-humanos é miserável de todas as formas,  “não bastando serem tratados como objetos, ainda têm por privação absoluta seu ambiente natural. Condicionados em meio a centenas de outros animais em baias de concreto. Tornando suas patas sujeitas de todo tipo de ferimentos e stress contínuos”. Especialmente no Brasil, o número de animais criados para alimentação é extremamente alto - chega a 4,3 bilhões, cerca de 23 vezes a população nacional (NEGRÃO, 2008, p. 12-13) - e o consumo de carne está diretamente ligado a eventos sociais corriqueiros da maioria da população, como o churrasco. A dinâmica destes encontros é vendida, popularmente ou através das mídias de massa, como um elemento importante e distintivo da cultura do povo, alheio a tudo que ocorre na pecuária moderna. Ralph Waldo Emerson (1863, p. 5 apud RODRIGUES, 2013, p. 51) filosofou neste sentido: “Acabaste de jantar, e, por mais que o matadouro esteja escrupulosamente escondido a uma agradável distância de milhas, existe cumplicidade.”
Ao mesmo tempo, o leite de vaca e seus derivados são consumidos em larga escala mundialmente, seja in natura, seja acrescentado de forma sorrateira nos ingredientes de milhares de produtos alimentícios. Os ovos de galinha, igualmente, são introduzidos nesta esteira de produção a uma infinidade de alimentos industrializados, sem que isto seja plenamente visível e divulgado nas embalagens, a não ser em letras miúdas. Este consumo invisível, praticado em massa através dos métodos pouco honestos da indústria alimentícia e pecuária, bem como a partir do desconhecimento e indiferença da maioria da população, promove uma série de atrocidades contra os animais. A doutora em filosofia Sônia T. Felipe explica, por exemplo, que a imagem de alguém pegando uma caixa de leite na geladeira e servindo-o no copo parece ser inocente. Essa suavidade faz parecer que é desta maneira que o leite sai do teto da vaca, com uma suave pressão das mãos. No sistema industrial, entretanto, onde o número de vacas é muito grande, o leite é sugado através de “teteiras de sucção” movidas à eletricidade. Desta forma, o vácuo força os tetos a se dilatarem e o leite sai. “As mulheres que já amamentaram podem muito bem imaginar a realidade das vacas, com seus úberes sofrendo o impacto do vácuo em tal grandeza que os músculos dos mamilos se dilatam, abrindo a passagem para a saída do leite”, exemplifica a filósofa. Segundo ela, a vaca dá leite a seu bezerro, não aos humanos. “Submeter o corpo de uma fêmea a esse manejo igual ao que opera máquinas numa cadeia produtiva implica violência brutal [...]. Mas ninguém a vê, porque a crítica ao machismo ainda é especista” (FELIPE, 2013).
Outro subproduto da indústria leiteira é a chamada carne de vitelo. Andresa Jacobs (2011) explica que a vaca, assim como a mulher, é um mamífero que possui glândulas que produzem leite. Esta secreção existe para nutrir seu filhote. Mas para que exista o leite, é preciso que a vaca gere um filhote, ou seja, não é possível haver leite sem que a vaca fique grávida. Assim que nasce o bezerro, ele é rapidamente retirado da mãe, para que seu leite seja desviado para o consumo humano. O bezerro macho, ou vitelo,  rejeitado pela indústria do leite, é confinado no escuro em baias de aproximadamente 56cm x 137cm, acorrentados pelo pescoço. Eles tem sua alimentação restringida para permanecerem anêmicos. Isto tem por finalidade tornar suas carnes pálidas e macias após ser morto, já que nunca andaram nem comeram capim. Tal situação provoca intenso sofrimento, tanto para as mães como para os bezerros que, sentindo a necessidade natural de sugar (como bebês humanos), tomam apenas refeição líquida em baldes, apresentando graves problemas digestivos, como diarreia.
O maior reflexo do desconhecimento e indiferença - em relação à origem dos produtos adquiridos nos supermercados e restaurantes modernos - é encontrado na pecuária, onde os animais são tratados como mercadorias em leilão. Para um capitalista do agronegócio, os animais enjaulados sob seu domínio são simples produtos. Por exemplo, muitas pessoas acreditam que a aparente calma das vacas reflete uma dimensão mental pouco relevante nesses animais. Entretanto, há evidências de que elas possuem vida psicológica com traços característicos de consciência, emoção, memória e sensibilidade. O manejo à qual são submetidas na pecuária lhes inflige um grande estresse, tanto é verdade que, na indústria leiteira, elas recebem calmantes. Já os pecuaristas costumam se referir com desdém a esse tipo de questão. “Estamos num negócio, não na Sociedade Humana (Humane Society), e nosso trabalho é vender mercadorias com lucro. Isso não difere de vender clipes de papel ou refrigeradores” (FELIPE, 2013). Nada muito diferente de um mercador de escravos do séc. XVII.
Desta forma, como postula Fernando Schell Pereira (2011, p. 29-30), estamos “Institucionalizando o corpo dos animais não humanos como propriedades e, em se tratando exclusivamente da propaganda publicitária, vendendo suas vidas dentro da lógica de oferta e procura. [...] transformando esse ato em uma relação de afastamento da realidade”. Ele sustenta que, dentro do discurso e dos padrões publicitários, os animais são descaracterizados de sua natureza como seres vivos. No mercado, eles se tornam “objetos”, abstraídos através de propaganda massificada. Há toda uma narrativa que justifica o domínio de uma espécie sobre a outra (discurso especista), no qual a exploração da vida dos animais pelos humanos é aceita socialmente. Por que isto ainda ocorre?


2.3 ÉTICA


Na civilização ocidental - e, por consequência, no mundo globalizado do consumo - lidamos diariamente com a ideia de que o ser humano é superior ao resto da natureza, e este pressuposto nos leva à uma autopromoção das qualidades de nossa própria espécie. O ser humano, assim, legitima seus próprios interesses. Muitos argumentos humanistas são utilizados para justificar a escravização e coisificação animal, bem como a maioria das pessoas acredita que defender um status moral para os animais é tão ridículo quanto defender pedras ou plástico. Neste sentido, argumentar em torno de uma ética que equipare humanos ou animais pode ser visto como tolice ou ofensa para diversas pessoas (NACONECY, 2006, p. 66). Isto porque a moral aristotélica que herdamos da antiguidade clássica costuma incluir apenas homens livres e racionais, capazes de fazerem acordos, no campo de consideração moral (FELIPE, 2007, p. 69-71).
Tal pensamento, por si só, historicamente acabou excluindo crianças, mulheres, idosos, deficientes, escravos, negros e estrangeiros do campo de consideração moral - porém alguns adendos foram feitos ao longo dos séculos para incluí-los. Mas o aristotelismo reestruturado também impunha a si mesmo uma limitação aleatória baseada no conceito de antropocentrismo, de espécie, deixando fora de seu campo de consideração toda a natureza e os animais, que eram levados em conta apenas na medida em que uma violência praticada contra eles poderia afrontar outros seres humanos. O bem da vida destes seres, no entanto, não era pensado por si só, no interesse que os animais têm de viver, mas apenas em relação aos interesses humanos.
Entretanto, a partir de uma nova abordagem moral sugerida por destacados pensadores da atualidade, a ética aristotélica é hoje criticada - vista como limitada e subjetiva quando se trata de considerar os animais. Para que possamos fazer distinções éticas com mais universalidade e precisão, é necessário aumentar nosso círculo de consideração moral. De acordo com Hayward (1998 apud NACONECY, 2006, p. 65), os seres humanos são a fonte dos valores éticos, mas seus interesses não precisam ser a única substância com valor. “O fato de que a humanidade é o centro do discurso epistêmico e do pensamento ético não implica, necessariamente, que devemos nos colocar como o único objeto de valor no Universo”, ele argumenta.
A lógica da utilidade, da guerra, do “nós contra eles” e da preferência pelo “nosso próprio semelhante” como justificativa plausível para um sem número de atrocidades contra o outro, parecem ser as regras gerais em nosso horizonte de ações ao longo da História. O filósofo Tom Regan (2008) aponta que a maioria da população resiste ao pensamento de que animais possuem um valor intrínseco, alegando que só humanos teriam tal valor. Entretanto, muitos humanos não possuem inteligência, autonomia ou razão (se estes forem requisitos considerados fundamentais para a valoração moral); ainda assim, eles são vistos geralmente como possuidores de um valor muito acima de sua utilidade para os outros. Mesmo que alguns acreditem que animais possuam “valor inerente menor que o humano”, tal afirmação carece de justificativa racional, pois então teriam que aplicar o mesmo tipo de valoração a deficientes mentais ou crianças. “[Não] podemos sustentar racionalmente a concepção de que os animais, sendo [...] sujeitos que experimentam uma vida, têm menor valor inerente. Todos que têm valor inerente o têm igualmente, sejam animais humanos, ou não”, afirma Regan.
Desta forma, é necessário pensar nossas relações com o outro - neste caso, os outros são os animais - não pelo que o outro significa para nós, mas pelo que o outro significa para ele mesmo, como sujeito de uma vida, no interesse que ele tem de viver à sua maneira. É preciso distinguir entre agentes morais (humanos capazes) e pacientes morais (humanos incapazes, animais e meio ambiente) - ou seja, entre os que são capazes de tomarem decisões racionais e entre os que sofrem as consequências destas decisões (FELIPE, 2007, p. 72-78). Visto por este ângulo, o processo pecuário torna-se moralmente contraditório.

Isso não é porque eles projetam ilicitamente qualidades humanas nos animais, mas, sim, porque a vida humana realmente tem uma base animal - uma estrutura emocional sobre a qual construímos aquilo que é distintivamente humano. Apesar das diferenças, aspectos muito complexos como solidão, divertimento e afeição maternal, ambição, rivalidade e medo, se revelam compartilhados por outras criaturas sociais. Quanto mais sabemos sobre seus comportamentos em detalhe, mais clara e interessante essa continuidade se torna (MIDGLEY, 1983 p. 14 apud NACONECY, 2006, p 112-113).

Após a publicação, em 1859, da teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin, o ser humano reúne evidências científicas incontroversas de uma origem comum com todos os animais e que suas fisiologias, destes e daqueles, são basicamente as mesmas. Os animais possuem características similares aos humanos - além da consciência, sensibilidade à dor, à fome, ao medo, ao frio, ao calor, à doença e à morte, também expressam a vontade de viver, a busca por bem estar e proteção, interação com sua espécie, bem como - ao menos no caso de aves e mamíferos - cuidados com sua prole e outros traços similares a humanos em idade pré-escolar, como inteligência e linguagem não verbal. Neste sentido, a Declaração de Cambridge sobre a Consciência (LOW, 2012) postula que

A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos. [...]As aves parecem apresentar, em seu comportamento, em sua neurofisiologia e em sua neuroanatomia, um caso notável de evolução paralela da consciência. Evidências de níveis de consciência quase humanos têm sido demonstradas mais marcadamente em papagaios-cinzentos africanos. As redes emocionais e os microcircuitos cognitivos de mamíferos e aves parecem ser muito mais homólogos do que se pensava anteriormente.

 Nesta linha de raciocínio, podemos questionar: o que é o sofrimento? Jonathan Safran Foer (2011, p. 82-83) argumenta que esse tipo de pergunta pressupõe um sujeito que sofre, e a palavra em si implica num drama compartilhado com outros. Muitas pessoas concordam que os animais “sentem dor” de algum nível, mas lhe negam uma existência mental ou emocional da subjetividade, o que poderia tornar seu sofrimento comparável ao sofrimento humano. Então, costuma-se afirmar que o sofrimento dos animais é lamentável, mas ainda não se compara ao nosso. De fato, há tipos especiais de sofrimento humano, como sonhos frustrados, a experiência do racismo, a vergonha do corpo, etc. Entretanto, isto não é suficiente para dizer que o sofrimento animal não é sério, sustenta Foer. Para ele, o sofrimento não trata do que suas definições nos dizem respeito. A parte importante dessas definições tratam acerca da importância que o sofrimento possui para quem o sofre. O sofrimento humano também não pode ser ignorado - e seria até possível pensar em formas filosóficas de sofrimento que não se aplicassem aos animais. Mas, certamente, uma definição coerente passa por alguns sinais radiantes como: suspiros, gritos e gemidos de dor.
O historiador social Charles Patterson (2005) afirma que “A dominação, controle e manipulação que caracterizam a forma com que os humanos tratam animais que estão sob seu controle deu o tom e serviu de modelo para a forma com que os humanos tratam uns aos outros”. Neste sentido, a domesticação, ou escravização de animais teria sido o pavimento necessário para a escravidão humana. A escravidão humana, deste modo, pode ser pensada também como uma “domesticação” humana.
De igual forma, o pesquisador John Hadley (2012) ensina que não há nada de errado com o uso dos termos “animal” e “escravidão” na mesma sentença. Isto não diminui em nada a gravidade da escravidão, e nem tudo que há de errado com ela precisa se aplicar a animais para que o termo seja corretamente utilizado entre todas as espécies animais, homens ou não. Assim como escravos, os animais são propriedade legal e estão sujeitos à autoridade de seus proprietários, que exigem obediência. Já no séc. XIX, o abolicionista José do Patrocínio (1880, apud FELIPE, [ca. 2014], p. 105) fazia analogia entre a condição de humanos e animais cativos para tratar do problema da escravidão:

A posição desse animal era em tudo igual à do porco em terras do Islame; o seu horizonte limitava-se também à lama e ao desprezo. [...]Negavam-lhe tudo: o aperfeiçoamento da inteligência, as inspirações da vontade, as expansões do sentimento. Davam-lhe para morada habitações infectas como os chiqueiros; engordavam-no por aspiração de lucro, porque nos músculos robustecidos por uma ceva feita à custa do caldo de cana, e dos aferventados dos inhames, viam a probabilidade de capinação mais expedita e de colheita mais abundante. Encerrada na mais baixa humilhação, tendo como espectro alevantado diante de sua vontade o chicote do feitor; vendo os filhos mandados para longe dos seus carinhos, os pais para bem distante do seu amparo, as esposas para lugares afastados dos seus amores; todos os sentimentos desses pobres seres desprotegidos acabavam por embotar. Na lama, que de toda a parte os cercava, entregavam-se à promiscuidade e à lascívia dos porcos; no detrimento do espírito deixavam que se bacanalizasse a carne.

Em relação à alimentação humana, a Academia de Nutrição e Dietética Americana (2015) sustenta que dietas baseadas exclusivamente em vegetais, apropriadamente planejadas, são saudáveis, nutricionalmente adequadas e podem prover benefícios à saúde na prevenção e tratamento de certas doenças - necessitando de maior atenção apenas quanto à carência de vitamina B12 que, de acordo com o médico nutrólogo Eric Slywitch [ca. 2014] também costuma faltar em proporções semelhantes numa dieta onívora, sendo plenamente acessível através de suplementação sintética. No mesmo sentido, os nutricionistas mais atualizados afirmam que necessitamos de nutrientes específicos (carboidratos, proteínas, vitaminas, minerais, etc.) - não de alimentos específicos. Esses nutrientes podem ser adquiridos plenamente através de uma alimentação livre de produtos de origem animal, que - com a devida informação, atenção e planejamento - é tão ou mais saudável quanto uma dieta onívora, apresentando menor risco de deficiências e excessos nutricionais quando seguida adequadamente (COUCEIRO; SLYWITCH; LENZ; 2008, p. 372). A variedade de alimentos exclusivamente vegetais, com valores nutricionais importantes e complementares, tem aumentado de maneira contundente nas cidades em expansão. Hoje é possível que a maioria das pessoas do mundo urbano, que por sua vez é maioria no mundo, tenha acesso a uma vasta gama de produtos vegetais nutritivos e saudáveis, plenamente satisfatórios na composição de um cardápio equilibrado, e sem origem na indústria pecuária.
Algumas das afirmações-chave da literatura científica, em relação a uma alimentação bem planejada e exclusivamente baseada em vegetais, indicam que elas são apropriadas a todos os indivíduos, até mesmo atletas, suprindo todas suas necessidades de proteína durante todas as fases da vida, incluindo gravidez, lactação, infância, adolescência. Elas costumam ser mais baixas em gorduras saturadas e colesterol e a ter níveis mais altos de fibras, magnésio e potássio, vitaminas C e E, folato, carotenoides, flavonoides e outros fitoquímicos. Além disto, elas frequentemente são associadas a várias vantagens para a saúde, como baixo colesterol, baixo risco de doenças cardíacas, baixos níveis de pressão, baixo risco de hipertensão e diabetes tipo 2, além de favorecer um menor índice de massa corporal, com menores taxas gerais de câncer (FOER, 2011, p. 147-148). Certamente, para o indivíduo bem orientado, que se alimenta corretamente e reduz fortemente a carga de produtos de origem animal em suas refeições - ou até mesmo os abandone por completo, com o devido planejamento - a desnutrição não parece uma hipótese provável.
Não é surpreendente, de modo inverso, que câncer e infartos são responsáveis por cerca de 50% de todas as mortes nos Estados Unidos. (FOER, 2011, p. 148). Estudos recentes apontam que uma alimentação rica em proteína de origem animal, como naquele país, potencializa decisivamente o risco de câncer, doenças cardiovasculares e diabetes tipo 2 (ORNISH, 2015).
Quando o ser humano ingere um ovo de galinha que veio da avicultura, ou uma calabresa proveniente da suinocultura, não está ingerindo plantas, apesar dos termos agrícolas utilizados pela indústria pecuária moderna e, sobretudo, apesar desses animais serem tratados em vida como se fossem vegetais. A escravidão, o abandono e o sofrimento de bilhões de vidas enjauladas anualmente na indústria pecuária são fatos cotidianamente negligenciados pela historiografia, como se fossem aspectos inerentes à condição animal. Na verdade, tudo indica que esse processo ainda se desenvolve através de uma tradição cultural humana sem amparo intelectual no presente estágio de desenvolvimento da civilização.
Neste sentido, Carlos Naconecy (2006, p. 67-68), sustenta que “Uma vida em que não se possa usar os animais é inimaginável para muitas pessoas”. De fato, “A mera perspectiva de alteração de nossos hábitos individuais e de nossas práticas sociais, [...]produz muita insegurança e incerteza”. Ele argumenta, por exemplo, que quando os escravos humanos foram emancipados, não estava claro a extensão de seus direitos e leis de proteção foram criadas. “[...]antes [...], os negros eram percebidos como indivíduos mais parecidos com macacos do que com humanos. Depois que a igualdade moral entre as pessoas foi admitida, essa percepção começou a mudar”. Da mesma forma, se faz necessário que as diferenças entre humanos e animais sejam acolhidas como moralmente irrelevantes - todavia, muitos não tem empatia pelos animais e os próprios não podem objetar verbalmente contra seu abandono moral. A vítima sempre expressa melhor sua opressão que seus defensores mas, ao contrário de negros ou mulheres, os animais não falam. Deste modo, continua Naconecy, este tipo de defesa nem sempre é eficiente em nossa sociedade, porque vivemos sob uma visão de mundo monoteísta, judaico-cristã, que nega a igualdade entre homens e animais e nos coloca numa posição especial na natureza.
O cristianismo moderno adotou a visão filosófica de René Descartes, que associa a moralidade à consciência, e esta à capacidades intelectuais ditas superiores, como racionalidade e linguagem. Segundo esta visão, os animais não possuem uma mente, não podem pensar e, portanto, não podem sofrer. No século passado, a perspectiva behaviorista incorporou este paradigma em busca de objetividade na ciência. Carregando este legado, a maior parte dos acadêmicos ainda acredita ser complicado falar de emoções em animais, da mesma forma que padres consideravam difícil falar de sexo, até há pouco tempo. Entretanto, o que parece verdadeiramente complicado é defender o antropocentrismo cartesiano nos dias de hoje, afirma Carlos Naconecy. “Em primeiro lugar, sabemos atualmente muito mais sobre os sistemas nervosos de humanos e de animais do que Descartes sabia”, ele exemplifica. “Em segundo lugar, parece um erro de exagero afirmar que o ser humano é uma criatura essencialmente racional”. Nesta esteira, a teoria da evolução darwinista aponta que a espécie humana é uma dentre muitas outras - não sobre outras. O homem não vem de um lugar especial e nem vai para um lugar especial (NACONECY, 2006, p. 69).
Algumas pessoas, com o intuito de desqualificar a crítica ao sistema pecuário, sustentam que o sofrimento é uma característica que também poderia ser encontrada no reino vegetal. Porém, não existem artigos acadêmicos sérios que demonstrem, de alguma forma, semelhança psicológica entre um alegado “sofrimento vegetal” e o sofrimento experimentado pelos animais - sobretudo no processo da pecuária. Carece até mesmo de sentido a existência de uma suposta “dor vegetal” - já que a dor é um alerta para seres que podem reagir a ela, como animais. “Vegetais, microorganismos, e ecossistemas não têm as estruturas biologicamente necessárias (uma morfologia especializada) para o surgimento de estados mentais” (NACONECY, 2006, p. 131). Desta forma, a crueldade se manifesta de diversas formas, principalmente na indiferença a ela, ou na tentativa de ridicularização do tema. Por vezes se alega que a natureza também é cruel. Muitos criadores afirmam isto na tentativa de provar que estão protegendo seus animais dos perigos foras das cercas. De fato, a natureza é perigosa e, em raríssimas exceções, os animais podem levar vidas melhores do que levariam livres. Entretanto, muitos animais matam, mas não torturam uns aos outros na natureza. Isto porque a “crueldade depende da compreensão da crueldade e da capacidade de escolher agir contra. Ou escolher ignorá-la” (FOER, 2011. p 65). Esta ideia, por capazes que somos, corretamente nos lança um desafio. O filósofo Jacques Derrida (2008, p. 25-26 apud FOER, 2011, p. 113) foi um dos acadêmicos que organizou o pensamento em torno dessa crítica:

Seja qual for a maneira como se interpreta, [...] sejam quais forem as consequências práticas, técnicas, científicas, jurídicas, éticas ou políticas que disso decorram, ninguém mais pode negar o fato, ninguém mais pode negar as proporções sem precedentes dessa sujeição do animal. [...] Uma sujeição dessas… pode ser chamada de violência no sentido moralmente mais neutro do termo… Ninguém pode negar com seriedade, ou durante muito tempo, que os homens fazem tudo o que podem para dissimular essa crueldade ou para escondê-la de si mesmos, a fim de organizar numa escala global o esquecimento ou a compreensão equivocada dessa violência.

De acordo com Jonathan Safran Foer (2011, p. 246), nós permitimos que a pecuária industrial substituísse a pecuária tradicional pelos mesmos motivos que nossa cultura relegou minorias à cidadãos de segunda classe, e mulheres ao poder dos homens. Nossas preferências culinárias são extremamente destrutivas, mas ainda assim não escolhemos mudar o cardápio. “Se contribuir para o sofrimento de bilhões de animais que levam vidas miseráveis e [...] morrem de formas horrendas não é motivo suficiente, o que mais seria?”, questiona o filósofo. “Se ser o contribuinte número um à mais séria ameaça ao planeta (o aquecimento global) não é suficiente, o que é?”


2.4 ECOLOGIA


A imensa maioria dos animais criados na pecuária ao redor do globo provém de sistemas intensivos, responsáveis por grandes demandas de recursos naturais como terra e água. Este processo causa uma série de danos ambientais, como a poluição causada por esterco, fertilizantes, pesticidas e herbicidas. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (2008, p.2), ao todo, são cerca de 60 bilhões de seres conscientes forçados a nascer e morrer a cada ano para satisfazer o apetite de menos de 7 bilhões de pessoas que comem animais; e a cifra pode chegar a 120 bilhões em 2050. Originalmente, a palavra hecatombe significava o sacrifício de cem animais. Mas hoje, a alimentação humana com base em proteína animal multiplica anualmente este antigo número 600 milhões de vezes.
Tendo em vista que cada ser humano consome, aproximadamente, oito animais por ano, uma grande pressão é colocada sobre todas as bases que sustentam a vida - e esta banalização do consumo de produtos de origem animal tem profundas consequências ecológicas. Uma das mais importantes é o desvio da produção agrícola que, em sua maior parte, é utilizada para alimentar os animais confinados na pecuária intensiva. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (2008, p. 2-4) aponta que a produção de carne, leite e ovos utiliza uma grande parte dos recursos mundiais. Muitas áreas verdes são desmatadas e delicados ecossistemas são desequilibrados com o plantio de grãos como a soja que, em geral, será convertida em ração aos animais confinados (2014, p. 140). Um terço da terra arável do mundo é dedicada à criação de animais, e mais de 90% da produção de soja e 60% do milho e cevada são cultivados para alimentar rebanhos. O desflorestamento é a maior causa de emissões de CO2 e perda de biodiversidade, e este processo na América do sul é amplamente conduzido pela criação de bois. Cerca de 70% das áreas anteriormente cobertas agora são pasto e o restante são plantações de soja. A produção pecuária aumenta o dano causado à produção de alimentos e ao meio ambiente devido ao aquecimento global, causando seca, enchentes, tempestades e perdas de colheitas. Além disso, são evidentes os danos causados aos animais submetidos à pecuária industrial e à saúde humana onde há consumo exagerado de produtos de origem animal (2008, p.3).
Desta forma, os custos ambientais da produção de carne são desconhecidos da grande população, pois o custo de determinado bem não se refere apenas ao gasto monetário para obtê-lo, mas também envolve os gastos culturais, sociais, estéticos, ambientais e morais. Nesta esteira, a carne, o leite, os ovos e seus derivados geram diversos impactos ambientais que jamais entram na composição do preço final ao consumidor. A indústria pecuária expande seu negócio no vácuo da legislação, promovendo desmatamentos, contaminação, desperdício de água e desemprego. Ela compromete uma série de ecossistemas e a biodiversidade como um todo, tornando-se uma via de desenvolvimento insustentável. O Estado brasileiro, por exemplo, é omisso na cobrança de todos esses custos, que deveriam ser reparados à luz da tutela constitucional do meio ambiente (DUARTE, 2008, p. 11-13).
Este processo ainda acarreta o encarecimento da alimentação vegetal disponível para humanos, que poderia ser consideravelmente mais barata se não fosse necessário alimentar uma quantidade tão grande de animais cativos. Segundo o físico e filósofo Fritjof Capra (1982, p. 206), a pecuária recebe apoio da indústria petroquímica, já que aquela necessita da absurda quantia de dez vezes mais combustíveis fósseis para produzir uma unidade de proteína animal, em comparação com a mesma unidade de proteína vegetal. Nos Estados Unidos, a maior parte do cereal produzido é utilizado para alimentar gado, que depois será consumido por pessoas. É um desperdício e um contra-senso. “O resultado é que a maioria dos americanos segue uma dieta não-balanceada, que leva frequentemente à obesidade e à doença, contribuindo assim para a inflação na assistência à saúde”, pondera Capra.
A água potável, que é um recurso natural finito e indispensável para a manutenção da vida e da sociedade, também vem sendo desviada, cada vez mais, para a pecuária. Cerca de 56% da água doce brasileira é destinada ao agronegócio, e a maior parte da produção de grãos se destina à ração para animais confinados (DUARTE, 2008, p. 46). De acordo com dados da Embrapa (2005, p. 2), um humano consome, em média, 180 litros de água por dia, incluindo consumo indireto. Bois e vacas consomem até 55 litros. Vacas leiteiras podem precisar de até 62 litros. Frangos e galinhas necessitam entre 0,16 e 0,25 litros por dia. Para a criação de porcos machos são necessários 20 litros. É importante destacar que, apesar de animais consumirem, individualmente, menos que os seres humanos, estes números se agigantam quando levamos em consideração a quantidade de animais confinados para consumo humano no mundo. No Brasil, por exemplo, há mais bois e vacas que seres humanos. E, apenas nos Estados Unidos, a Tyson Foods, uma das maiores empresas mundiais de pecuária industrial, abate 2,5 bilhões de frangos por ano (POPOV, 2012), apesar de a indústria preferir se referir a estes números em toneladas, não em indivíduos. Embora os criadores estejam reduzindo, cada vez mais, a quantidade relativa de ração necessária para engordar os animais (o quê é, por si mesmo, moralmente insustentável, em virtude das distorções físicas, genéticas e fisiológicas necessárias para alcançar tal fim), os números totais requeridos para sustentar a criação industrial continuam se multiplicando, em virtude do aumento do consumo mundial.
Para que um crescimento vertiginoso dos animais, em termos fisiológicos, seja alcançado num ambiente tão insalubre, como já afirmado, é necessário que uma grande quantidade de antibióticos lhes seja administrada preventivamente - isto sem mencionar os hormônios e a fragilidade da saúde geral destas vidas, que não sobreviveriam em condições normais, devido às modificações artificiais produzidas em seus corpos por tantas gerações. Bilhões de animais confinados, sem saúde e drogados são como uma bomba relógio para epidemias, como a gripe aviária ou suína (FOER, 2011. p. 142). Além disto, os dejetos desses animais costumam ser lançados nos rios ou enterrados sem que haja qualquer tipo de tratamento específico, contaminando o solo e poluindo o lençol freático (FOER, 2011). De acordo com Silvio Luiz Negrão (2008, p. 14), veterinário e doutor em Ciências Humanas, o Brasil ocupa uma posição de destaque na produção e abate de suínos e aves, sendo o quarto produtor de carne suína e o segundo de frangos. Mas o modelo de produção agroindustrial se preocupa apenas com sua eficiência, com a redução de custos e o aumentos dos lucros, jamais com a ética dessa atividade. Além disto, a questão dos subprodutos desta indústria também é grave. A agricultura não absorve sozinha, em forma de adubo, todas as fezes e urina produzidas pelos animais cativos na pecuária, sendo que o restante deve ser eliminado, acabando por contaminar o ambiente.
Neste sentido, o estado de Santa Catarina estocou, em apenas cinco anos, o dejeto pecuário equivalente ao que seria produzido por 100 milhões de humanos. Proporcionalmente, um porco produz a quantidade de urina e fezes de 3,5 humanos. Esses dejetos são grandes responsáveis pela poluição nas águas potáveis de rios e lençóis. Ainda, a pecuária intensiva de suínos e aves causa forte poluição por bactérias, como a salmonela. Na tentativa de combatê-las, a indústria utiliza enorme quantidade de antimicrobianos, endectocidas, inseticidas, e produtos tóxicos de toda sorte, como hidróxido de sódio, iodo, amônia e formol usados na limpeza de equipamentos. Tudo isto é despejado no meio ambiente sem tratamento adequado e representa um evidente problema sanitário de grandes proporções, colocando as populações próximas sob grandes riscos de doenças. “Basta lembrar que a prática do canibalismo forçado através de rações industrializadas fornecidas a diferentes espécies animais possibilitou a disseminação do [...] mal da vaca louca, ocorrido no ano de 1996”, observa Negrão (2008, p. 14-15). Qualquer vírus proveniente deste sistema tem importante potencial de causar epidemias por todo o planeta.
Para a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (2008, p. 2), os gases expelidos pela digestão de tantos animais criados artificialmente, sobretudo o metano, são um dos grandes responsáveis pelo aquecimento global, contribuindo em cerca de 18% das emissões totais no mundo; mas o metano tem um potencial vinte vezes mais nocivo que a mesma quantidade de gás carbônico produzido por combustíveis fósseis (GASES…, 2014). Estudo do Painel Internacional para Manejo de Recursos Sustentáveis (2010, p. 78-9) afirma que as emissões de gases do efeito estufa e o uso da terra dependem fortemente da alimentação humana. “Produtos animais, como carne e laticínios, geralmente requerem mais recursos e causam maiores emissões que as alternativas baseadas em vegetais”.
A questão é preocupante, sobretudo quando temos recebido alertas de uma parte considerável da comunidade científica sobre os graves distúrbios que serão provocados com a mudança climática veloz e antropogênica em curso (RIVERA, 2014). A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (2013) é taxativa neste sentido: “Modelos insustentáveis de desenvolvimento estão degradando o meio ambiente, ameaçando ecossistemas e a biodiversidade que serão necessários para garantir o fornecimento de alimentos no futuro”. No relatório “Alerta Global” (2008, p. 2-3), ela aponta que a produção pecuária contribui com mais emissões de gases do efeito estufa que a atividade de transporte. Das emissões causada pelo homem, é responsável por 37% do total de metano, 65% do óxido nitroso, 9% do dióxido de carbono e 64% das emissões de amônia, contribuindo decisivamente para a poluição do ar, do solo e da água. O mesmo documento alerta que o setor pecuário causa tanto impacto que deveria ser um dos focos prioritários da política global: “A carne e o leite tem atualmente o preço abaixo dos seus reais custos ambientais e de carbono. É essencial que os verdadeiros custos da indústria pecuária em relação à mudança climática estejam refletidas no custo e nos preços”.
A população, muitas vezes, não tem plena consciência disto, mas - se faz necessário lembrar, carne não nasce em árvores. Todo o rebanho de animais que a pecuária subjuga para consumo humano necessita de uma quantidade extraordinária de matéria prima vegetal, o que certamente provoca uma competição por alimento entre as espécies. Para que um porco engorde um quilo, por exemplo, é necessário que ele consuma cerca de três quilos de ração fornecida por humanos (NEGRÃO, 2008, p. 13-14). “De um lado, uma população que está abaixo da linha da pobreza, faminta, desnutrida e doente; de outro, o agronegócio incentivado por políticas governamentais[...]”, aponta Silvio Luiz Negrão. Neste sentido, a pecuária se apresenta como um grande desperdício de energia e exemplo de ineficiência. Vejamos:

A aplicação dos números mostra que 8.000 Kg de matéria vegetal podem produzir 800 Kg de carne de boi. E 800 Kg de carne de boi podem ser usados para “produzir” 80 Kg de ser humano. Se em vez de os 8.000 Kg de matéria vegetal serem empregados para produzir 800 Kg de carne de boi, estes forem dirigidos diretamente às populações humanas, teremos a produção de 800 Kg de seres humanos. Supondo que apenas um homem de 80 Kg se beneficiaria de 8.000 Kg de matéria vegetal se houvesse o nível trófico dos bois os intermediando, neste sistema onde o homem se alimenta em níveis tróficos, 10 vezes mais homens de 80 Kg se beneficiariam da mesma biomassa vegetal. (GREIF, 2002, p. 58).

Muitos pensadores ao longo do tempo, preocupados com a relação humana com o meio ambiente que lhe sustenta, vem propondo o surgimento de um novo paradigma epistemológico. Neste sentido, “Uma visão antropocêntrica hoje parece míope: mesmo que fosse adotada como princípio ético em relação à natureza, com o objetivo da sobrevivência humana, mesmo assim a complexidade do ambiente e as transformações humanas na biosfera recomendariam um outro modelo”, sugere Edilson da Costa (2007, p. 174-175), doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento.
Karl Marx (apud FOSTER, 2005, p. 196) continua a ser um dos pilares teóricos quando enfrentamos essa teia complexa de relações. Há mais de um século, ele já apontava a alienação entre o homem e o meio ambiente, entre cidade e campo. Toda a produção do meio rural, incluindo água e alimentos, sustenta as necessidades básicas das cidades, mas a forma dessa produção é praticamente desconhecida do ensimesmado homem urbano. Segundo ele, a universalidade do homem se manifesta na natureza, que é seu corpo inorgânico, pois o homem vive da natureza, necessitando dialogar com ela se não quiser morrer. “Dizer que a vida física e mental do homem está ligada à natureza significa simplesmente que a natureza está ligada a si mesma, pois o homem é parte da natureza” (MARX, 1992, p. 328 apud FOSTER, 2005, p. 107). Da mesma forma, Fritjof Capra (1982, p. 9) define que “as limitações da visão de mundo cartesiana e do sistema de valores em que se assenta estão afetando seriamente nossa saúde individual e social”. Neste sentido, ele aponta que precisamos construir uma nova visão para pensar o mundo à nossa volta. “Essa nova visão inclui [...] uma perspectiva ecológica e feminista, que é espiritual em sua natureza essencial e acarretará profundas mudanças em nossas estruturas sociais e políticas”, ele conclui.
Embora a biosfera também seja afetada por inúmeras outras obras humanas, como usinas de energia, pontes, estradas, aterros sanitários, exploração mineral, dejetos industriais e pela própria agricultura, a pecuária moderna deveria ser considerada a maior inimiga do meio ambiente. Segundo a Organização das Nações Unidas (1992), no documento chamado Carta da Terra, “Cada um compartilha da responsabilidade pelo presente e pelo futuro, pelo bem-estar da família humana e de todos os seres vivos”. Sendo assim, é importante que desperte, entre nós, uma consciência ecológica engajada sobre as cadeias produtivas que sustentam a alimentação humana baseada em produtos de origem animal - que é responsável por danos geralmente ocultos, profundamente perigosos para o meio ambiente e, certamente, imorais, por recaírem sobre seres conscientes e semelhantes a nós mesmos em todos os aspectos fundamentais.


3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


A leitura adequada deste artigo pressupõe uma quebra de paradigmas. Não se busca aqui uma fronteira epistêmica artificial ou uma distinção retórica que desarticule humanos, animais e natureza; ao contrário, procuramos pelas continuidades importantes que nos assemelham ou nos unem de forma biológica, social, filosófica, ecológica e histórica. Embora reconhecendo que o ser humano se distinga, de diferentes formas, pela sua cultura, trabalho e inteligência, é um dever apontar, por isto mesmo, que não podemos - sob pena de incoerência - simplesmente abdicar de nossa razão e senso crítico quando se trata da alimentação, invocando supostas “leis naturais ou divinas” e se colocando no mesmo patamar intelectual de um leão faminto na savana, incapaz de fazer escolhas morais. De igual sorte, também não podemos ignorar as nefastas consequências éticas e ecológicas que o consumo de animais está lentamente produzindo para toda a biosfera, incluindo fatalmente nós mesmos.
Neste sentido, as questões relacionadas com a pecuária industrial e o consumo no tempo presente são muito relevantes e também devem fazer parte das atenções da historiografia contemporânea. É a partir destas preocupações que se delineia uma abordagem mais orgânica e materialista da História, incorporando na narrativa teórica as necessárias relações humanas com o mundo natural, a maneira profunda que afetamos os animais - afastando de nossa mentalidade urbana tudo aquilo com o qual não queremos lidar - além do modo como a realidade física, sem subterfúgios nem muletas idealistas, impulsiona a dialética acadêmica. Cabe também ao historiador, e à comunidade em geral, procurar informações atualizadas a respeito das atividades humanas e suas consequências no mundo moderno, bem como, ao menos, estar atento às posições inovadoras, dentro e fora da academia, no que se refere às implicações práticas dos processos produtivos.
Refletir sobre a real condição dos animais não é, de forma alguma, uma preocupação de “hippies”, “ecochatos”, “românticos” ou “sensíveis amantes de bichos”, nem significa um desejo de “fazer uma festa na floresta”, como muitos insistem em ridicularizar. Muito pelo contrário, é um debate histórico primordial, firmemente alicerçado nas relações de produção e consumo que se impõem no tempo presente e que definirão nosso futuro, influenciando também para a construção de novos discursos acadêmicos. Deste modo, é importante que todos tenham ciência de que o consumo de produtos de origem pecuária não se harmoniza com uma cultura de paz, sendo fonte de violência e grande impacto negativo para a biosfera como um todo, incluindo humanos e animais. A invisibilidade do tema merece ser superada e refletida com a devida atenção. Tais fatos são dignos de estudos sérios e não podem, por puro preconceito ou resistência intelectual, continuar sendo negligenciados pela História.
 

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