1 UMA EXPERIÊNCIA DE APRENDIZADO E CONHECIMENTO

 

 

Fazer-se um aprendente é estar vivo e aberto ao mundo,

Nele intervindo a vontade pela confiança exuberante

De conhecer o que se oculta e aguarda revelação.

 ...

 Fazer-se um ser aprendente é ensinar-se a aprender a alegria

Que salta, brinca e dança da vontade.

Fazer-se um ser aprendente é encher a hora de vida, a vida de

Sentido, o sentido de palavras e as palavras de alegria,

A alegria que é matéria prima do sonho.

(trecho de Aprendência, Carmo & Souza, 2000).

            Pretendo aqui refletir um pouco sobre a minha trajetória como estagiária de Psicologia, avaliando meu processo de aprendizado e conhecimento e, minha atuação no espaço proposto por uma escola particular de Novo Hamburgo. Relato sobre construções, desconstruções e descobertas de teorias e idéias que foram acrescentando-se ao meu crescimento enquanto aprendente.

            Para Alícia Fernández (2001), o sujeito que aprende é aquele que, simultaneamente está conexo com o sujeito que ensina, pois são duas posições que subjetivamente estão relacionadas entre si, em um mesmo sujeito.  Claro que o meu papel como estagiária de Psicologia não está diretamente ligado com a aprendizagem, como o de um professor, no entanto, estar inserida em escolas, partilhar dos conhecimentos e aprendizagens dos alunos e das equipes, me fez aprender e ensinar, compartilhar dos meus conhecimentos enquanto “psicóloga”, conforme nomeado pelas escolas, e adquirir informações, ter notícias do dia a dia, presenciando e participando da realidade deste meio.

            Pensando sobre a finalização deste momento, afirmo que o estágio na Fundação não proporcionou somente a construção da Psicologia educacional - ensino-aprendizagem, mas oportunizou a minha descoberta nas relações de trabalho e sofrimento psíquico.

Desta forma, junto aos professores e equipe, em momentos onde foram realizados trabalhos em grupo, pode-se refletir, questionar e oportunizar novas idéias, a fim de proporcionar uma melhor condição de trabalho.

Ainda, obtive a oportunidade de crescimento, assunto que desenvolverei um pouco mais neste módulo, trazendo então, o início da minha caminhada na Psicologia Clínica, que não deixou de ser um lugar de aprendizagem e construção por estar fora da escola, mas pelo contrário, trouxe inúmeras descobertas, me fez questionar e buscar respostas na tentativa de desvendar os mistérios da transformação do sujeito e a sua constituição.

            Desta forma, apresentarei um relato de experiência na clínica infantil, que acredito ter sido positiva devido às aprendizagens e demonstrações de crescimento enquanto sujeito, do pacienteem questão. Assessões foram permeadas pelo brincar, que o apresenta como um dos elementos fundamentais para a abordagem na clínica com crianças. Assim, utilizei leituras para o embasamento teórico a respeito deste assunto.

2  A RELAÇÃO PACIENTE/TERAPEUTA

A chegada de Carlos[1], um menino de nove anos, apresentou-me sentimentos que entusiasmaram, que trouxeram ânimo para os atendimentos, pois seria minha segunda experiência como psicóloga na construção da clínica. Mas estes sentimentos vieram acompanhados de questionamentos e também receio, porque através do nosso trabalho (paciente e terapeuta)  Carlos poderia ou não reorganizar suas questões. Ali reunia dois importantes papéis, o primeiro, de psicoterapeuta e o segundo, de construtora de aprendizado, o meu aprendizado. Assim, sabendo que Carlos viera em busca de alguém que pudesse lhe oferecer uma melhor condição de reconstituição do seu eu, foquei minha prática e procurei conhecer para compreender as reais necessidades Carlos.

    Afirmo, deste modo, que nos preparamos teoricamente, mas não contamos com as surpresas dos pacientes. 

    Carlos é um menino que chegou até o atendimento através de um encaminhamento da escola, pois estava encontrando certa dificuldade em se relacionar com colegas , professora e direção. Seus olhos brilham, mesmo sem saber o que vai acontecer naquele lugar  repleto de brinquedos. 

    Segundo relato da  mãe ela já havia sido chamada na escola por diversas vezes por que o menino quando contrariado  ficava “muito agressivo” e os professores não sabiam o que fazer com ele.

    Para Cyrulnik (2004), com muita freqüência é o olhar do adulto que bloqueia o desenvolvimento da criança, e Carlos pode estar diante de um obstáculo construído pela própria família.

 Estar na presença de Carlos e apresentar-lhe o trabalho ali desenvolvido não seria tarefa fácil. Desta maneira, o que e, como fazer, passam a ser minhas questões prioritárias. Como diz (Cenci 2004, pg.28):

Que é a partir do brincar que a criança já pode falar de si (reconhecendo-se nesta imagem) e fazendo um deslizamento da cadeia de significantes, se produz, porque antes só existia no discurso dos pais e agora, brincando, que é uma atividade simbólica e imaginária, se reconhece como sujeito.

Sua história se atravessava ali, diante dos meus olhos e eu precisava de alguma maneira cortar este círculo e traçar com ele um novo início de percurso. Sabendo, através das palavras da mãe que ele  “gostava de brincar” e mais tarde, ouvindo dele mesmo uma frase idêntica, precisava transformar essa realidade.

    “Inicialmente uma criança passa a brincar se fazem dela um brinquedo, se brincam com ela”[2], e foi deste ponto que parti.

Fabiana a mãe de Carlos não conseguia entender por que o menino se comportava na escola daquela forma, pois em casa se mostrava um menino muito calmo e educado,embora a mãe relate que o pai não tem muita paciência com Carlos.Em meu primeiro contato com o menino ele se mostrou tímido, com uma certa dificuldade em expressar seus sentimentos, quando viu na sala os brinquedos pergunto-me se poderia pegar  o lego e me convidou para brincar junto com ele.Ao observar sua forma de brincar muitas vezes percebi que havia muita violência e ao mesmo tempo ele ficava muito agitado.

    Ansiosamente, na busca de medidas para o entendimento do processo deste paciente, trouxe para ele além dos brinquedos, muitos outros materiais como lápis colorido e papéis, jogos e animais de brinquedo, com o intuito de oferecer diferentes formas de expressão. O desenho passou então, a fazer parte de algumas sessões, não como instrumento principal da terapia, mas como um artifício capaz de apresentar as evoluções de Carlos. 

    Aos poucos, com as sessões, fomos descobrindo os meios pelos quais poderíamos seguir, se através dos brinquedos, dos desenhos,dos jogos e das conversas. O mais importante era fazer com que Carlos construísse seu lugar, identificando suas potencialidades e adquirindo capacidades para manter suas conquistas.

    O fato é que o ambiente mudou, e o adulto em questão – eu, como psicoterapeuta – procurei não endurecer meus conhecimentos, mas sim, dar cada vez mais espaço para as questões que Carlos trazia.

    Em minha primeira visita até a escola de Carlos  percebi que a coordenadora e a diretora não sabia mais como agir com o menino pois toda semana ele batia em um colega e com toda essa situação eles estavam sempre chamando a mãe para que ela fosse tentar acalmar o menino.A diretora disse  que não agüentava mais os “ Surtos “ do menino e que achava que ele precisava de um psiquiatra que receitasse algum remédio para acalmá-lo.Tentei explicar que as coisas não se resolviam dessa forma  e que ele já estava em acompanhamento psicológico comigo.

    Para Soifer(1992), as crianças ditas agressivas são aquelas que geralmente se destacam na creche, na escola ,nas festas de aniversario em reuniões familiares ou sociais, apresentando comportamentos como:empurrar outras crianças, atacar fisicamente, destruir os brinquedos de seus amigos, criara situações ameaçadoras, preparar armadilhas e ate mesmo criar grupos para dirigir /manipular outras crianças.

    Segundo a diretora da escola em determinadas situações em sala de aula Carlos não aceita algumas brincadeira de seus colegas e é a partir desses acontecimentos que ele não consegue se controlar e acaba tento “crises de raiva” onde nem um adulto consegue segurá-lo.

    Quando nos deparamos com uma criança muito agressiva, cujos comportamentos fogem totalmente do controle,na maioria das vezes as pessoas se sentem perdidas, desnorteadas e confusas, e sem saber que atitude tomar. È comum pais, professores ou os profissionais que estão trabalhando com a criança se sentirem culpados pelo seu comportamento.

    Carlos ao logo dos oito meses de atendimento foi mostrando uma melhora significativa em seu comportamento na escola e em um dos atendimentos trouxe que quando sentia que ia ficar muito bravo se aproximava da professora  para evitar se meter em confusões com os amiguinhos.

    Para Bronfenbrenner(1981), a agressividade geralmente aparece nas famílias em que as atitudes são de superproteção  compensatória, de rejeição ou de superautoridade.

   Para Ballone(2001), a conduta agressiva entre os pré-escolares é influenciada por fatores individuais, familiares ou ambientais.

    Conforme o tratamento foi seguindo solicitei que a mãe de Carlos viesse a cada quinze dias em um horário após o atendimento dele para que pudéssemos conversar e aos poucos fui constatando que a Fabiana tinha uma queixa muito grande do pai do menino, pois dizia que ele não se interessava pelas coisas do filho e que o menino quando tentava se aproximar do pai dificilmente conseguia por que o mesmo não dava abertura. Fabiana acredita que toda essa reação se da por que o pai de Carlos é adotivo e quando criança não recebeu muito carinho dos pais e que por isso talvez não tenha paciência com o menino.

A mãe de Carlos disse que procura fazer todas as vontades do menino para que ele não sentisse tanto a falta de carinho do pai, mas ela também acredita que precisa aproximar pai e filho.E que  seu marido precisa entender que toda essa situação tem que mudar para que Carlos não precise chamar sua atenção aprontando na escola.

    Train(1997,p12) afirma que “se não tomarmos uma atitude, a criança poderá tentar nos ofender ainda mais e com isso sentimo-nos ainda mais frustrados.

    Em uma segunda-feira após ter realizado um atendimento a Carlos  e o mesmo ter contado que estava muito feliz por ter modificado seu comportamento na escola , a mãe do menino me ligou no final da tarde chorando para contar que a escola havia acionado o Conselho Tutelar por que ele havia tentado asfixiar um colega  que tinha pegado um brinquedo seu sem pedir. Então pedi que ela se acalmasse que eu entraria em contato com a escola para saber o que havia acontecido.Ao entrar em contato com a diretora da escola no dia seguinte a mesma  disse que nunca tinha visto Carlos tão agressivo e que ninguém conseguia  segurá-lo e que inclusive  a professora tentou separá-los e também não conseguiu.

    Após toda essa situação Carlos passou a comparecer uma vez por semana ao conselho tutelar e foi encaminha do para o CAPSI de Novo Hamburgo para uma avaliação do psiquiatra.Depois  de ter realizado avaliação o psiquiatra Ricardo entrou em contato comigo para saber se Carlos ia a todos os atendimentos e para que eu pudesse relatar como era seu comportamento na sessões por que  ele tinha ficado surpreso com o comportamento do menino na avaliação que não condizia com a mesma passada pela escola.Disse para Ricardo que comigo também nunca havia tido problemas com ele durante as sessões  que Carlos sempre se mostrou um menino muito calmo , solicito a meus pedidos.Ricardo disse que sua percepção era mesma em relação ao menino e disse que estava ainda em duvida se Carlos precisaria fazer uso de medicação. Em uma segunda avaliação do psiquiatra,Carlos começou a fazer uso de medicação, pois Ricardo acredita que a medicação  ajudará  Carlos a lidar melhor com suas questões.

    Depois de todos esses acontecimentos sugeri para a mãe que trocasse Carlos de escola, num primeiro momento a mãe se mostrou um pouco irredutível mas aos poucos fui mostrando os benefícios que a troca de escola traria para o menino e ela acabou concordando comigo. Antes mesmo que eu entrasse em contato com a escola novamente para saber como as coisas estavam a mãe de Carlos me avisou que o menino havia trocado de escola.

    A cada atendimento ao qual Carlos vinha demonstrava uma maior satisfação em estar indo para escola  e que na sua nova escola  era tudo bem diferente que os meninos sentam com as meninas e que ninguém estava o incomodando e que assim já não sentia mais necessidade de estar saindo da sala como costumava fazer antigamente.

    Nesta nossa trajetória, que ainda transcorre, construiu-se entre nós uma confiabilidade. Há um processo seguro, de apego, gerando possibilidades de confidências e abrindo espaço para a fala direta de carlos sobre suas vivências, sejam elas de dor ou de amor. Certamente, se estas relações de apego seguro fossem multiplicadas e distribuídas principalmente entre sua mãe e seu pai, assim como outros adultos com os quais tem contato, suas chances de resiliência e enfrentamento das dificuldades seriam maiores. Mas seus impedimentos iniciam aí, pois o que atravessa seu desenvolvimento impedindo-o é justamente a relação perturbadora com os adultos cuidadores, que seguramente estão relacionados a questões morais e culturais da família e escola.

    Trabalhamos juntos, criamos um espaço transferencial no qual técnicas, ações, dinâmicas e estratégias psíquicas foram se estabelecendo. E, conforme o processo terapêutico evoluía, Carlos também apresentava mudanças, que evidentemente eu comemorava e levava à supervisão, demonstrando seu progresso.

 

3 A CLÍNICA DA INFÂNCIA -  O BRINCAR    

 

O brincar é um faz-de-conta, um fingir ser, é quando a criança utiliza-se da sua imaginação para representar sua realidade, de forma diferente, experimentando e pensando a respeito das suas vivências. Desperta a fantasia, enriquecendo a identidade da criança, fazendo-a experimentar outras formas de ser e de pensar. Quando brinca a criança se insere na realidade, representando-a para si e representando-se nela, é o caminho por onde ela interage com o meio e se adapta nele. É uma atividade aonde constrói e transforma o mundo, compreendendo como as coisas funcionam, os porquês, as regras. A brincadeira é a forma de comunicação que pode ser não verbal, numa situação onde são demonstrados os fatos vivenciados e onde a criança não pode ou não consegue transmitir através de palavras.

O faz-de-conta, então, ocorre de um ambiente culturalmente organizado em que a criança se desenvolve e o qual providencia os objetos que ela usará nesta atividade. O brincar é uma atividade prática, na qual as crianças constroem e transformam seu mundo, conjuntamente, renegociando e redefinindo a realidade. Assim, o brincar compreende uma construção da realidade, a produção de um mundo e a transformação do tempo e do lugar em que pode acontecer (CONTI & SPERB, 2001).

    Para as crianças, assim como para os adultos, o brinquedo pode fazer parte de um momento de pura distração, mas também é um auxiliar que a criança possui para desvendar sua subjetividade, assimilando o real aos seus desejos e interesses pessoais, externalizando sua compreensão dos episódios sociais, reconstruindo o significado de tais acontecimentos.

    Carlos, após meses de encontros e reencontros nas sessões, começa a fazer este movimento e a utilizar-se desta ferramenta quando, em uma das sessões, reúne alguns “Homenzinhos de Plástico” para comemorar seu aniversário, oportunizando um momento em que seu pai, com quem não tem um bom relacionamento e, por quem tem uma rejeição desde sua gestação, lhe faz carinho, abraçando-o na brincadeira.

    Para as crianças, é na brincadeira que seus sonhos podem ser realizados facilmente, quantas vezes os desejar, criando e recriando as situações que ajudam a satisfazer alguma necessidade presente em seu interior. Seu pai, dificilmente lhe acaricia, portanto Carlos usa deste momento para atender sua falta.

    A simbolização do brinquedo exerce um papel insubstituível, porque abre um espaço para que a criança organize sua história de vida, administrando seus esquemas afetivos, conscientizando-a de si mesma como um ser agente e criativo, que ao mesmo tempo em que se coloca no meio e com ele interage, mantém uma linha flexível, que define e apresenta sua individualidade. Para Cenci (2004) é a partir do brincar que a criança já pode falar de si (reconhecendo-se nesta imagem); dessa forma fazendo um deslizamento da cadeia de significantes. É quando o sujeito se produz, pois antes só existia no discurso dos pais, através do brincar, que agora, é uma atividade simbólica e imaginária. Para Vigotsky (1984), brincar é permitir que a criança aprenda a elaborar/resolver situações conflitantes que vivencia no seu dia a dia, e para isso, usará capacidades como a observação, a imitação e a imaginação.

    A criança, como todo sujeito, é um ser social que se constitui através de vários espaços reais, internalizando conceitos e adquirindo conhecimentos. Através do brincar compreende, reorganiza e ressignifica suas vivências e expressa seus desejos como forma narrativa de expressão. Santa Roza (1993), coloca que não podemos duvidar de que as crianças falam e não são seres mudos e pré-verbais, no entanto, o brincar e o jogar são as formas básicas desta comunicação infantil, com as quais as crianças inventam o mundo e elaboram os impactos exercidos pelos outros.

    O adulto, na sua maioria fala, consegue transmitir em palavras suas questões, ansiedades e medos. A criança, também na sua maioria, brinca, tendo como dificuldade maior o não brincar. Com isso, a brincadeira na clínica com crianças está como um dispositivo, que oportuniza o espaço onde as relações entre paciente e terapeuta acontecerão, proporcionando uma interação e maior vínculo.

A forma narrativa pode ser definida como uma estrutura organizadora de fatos em uma forma coerente e seqüencial, que possui uma estrutura, um conteúdo, pois nos transmite algo. A narrativa tem por função nos transmitir experiências, conservar e transformar a memória e também organizar a representação da realidade, segundo Vieira & Sperb (1998).

Para a criança representar e transmitir a realidade através da narrativa pode se transformar em uma experiência um tanto quanto difícil por fatores tanto emocionais quanto estruturais. Assim, uma das formas pelas quais a criança pode nos apresentar a seu mundo é através do brincar, que assume esta estrutura narrativa porque sempre tem algo a nos dizer e é através da linguagem e da imagem unidas pelo brinquedo que a criança nos conta uma história, representa o seu mundo.

Com isso, o terapeuta de crianças proporá instâncias oferecendo lugares de escuta, onde exclusivamente os pais e a criança poderão completar com suas palavras, ditas ou representadas, o espaço vazio para esta composição.

Para as crianças, oferecemos um espaço de brincar espontâneo, no qual nos colocaremos, cautelosos, para observar o desdobramento de sua produção, as conexões que dão sustentabilidade e os prováveis conflitos na construção do conhecimento. Para Duarte (1989), o paciente atua seus conflitos na conduta, no brincar, no não brincar, em expressões gráficas, na relação que estabelece com o terapeuta. Em fantasias e na sua ilusão, a criança pode colocar-se onde precisa que estejamos para personificar os seus conflitos.

Lembramos que o brincar é por si mesmo uma terapia e, se fizermos com que uma criança brinque, estamos estabelecendo uma psicoterapia que possui aplicação segura, além de fazer que o brincar seja visto como uma atitude positiva diante dos olhos do social.

    Duarte (1989), refere-se que a tarefa da psicoterapia é justamente, compreender onde o paciente nos coloca, quem somos para ele, que ansiedade surge daí e toda a gama de defesa decorrente destes conflitos. Tratá-lo é patrocinar-lhe dados e condições para que possa corrigir ao máximo as distorções das suas fantasias, favorecer-lhe informações e espaço para a resolução das questões ali pertinentes. Assim, com esta afirmação, permito-me dizer que a intensa participação do psicoterapeuta auxilia na condução do processo terapêutico, pois não percorremos por caminhos antes estabelecidos por métodos e técnicas, que ignoram a história e o desejo da criança, mas sim construímos com cada paciente a sua própria terapia.

    A exemplo disso trago um relato bastante marcante, que caracteriza meu papel enquanto psicóloga de carlos, criando para ele um espaço de escuta e de fala. Neste dia especialmente, sua mãe traz uma queixa relacionada a choros constantes por que Carlos não que arrumar seus materiais escolares e essa sempre foi uma tarefa a qual ele nunca havia reclamado para desempenhá-la .Carlos não participa deste momento da conversa.

    Assim durante uma outra sessão converso com  Carlos o seguinte: “Que ele é um menino super inteligente, gosta de brincar, que ele precisa arrumar seu quarto e seus materiais escolares em casa  para que ele  tenha mais facilidades para estudar e encontrar o que quer . ” Eu pergunto qual o motivo pelo qual ele não não quer arrumar seu quarto e seus matérias ele então responde: “ acho muito chato  e naquela eu não estava com vontade estava cansado por que não fazia muito tempo que tinha chego da escola” Pergunto para o menino o por que ele não arrumou depois: “por que depois eu esqueci”.Em seguida pergunto para Carlos o que podemos fazer para ajudar a sua mãe que está chateada por não estar sendo atendida por ele.

Carlos me olha nos olhos e compreende que sua atitude não foi legal e prontamente me diz: “Assim que eu chegar em casa vou conversar com minha mãe, vou dizer que ela não precisa ficar triste” eu então pergunto para por que que ele não quer ver sua mãe triste ele me responde: “ por que se eu perder o amor dela eu vou ficar sozinho e não é isso que eu quero”.

De certa forma, as crianças organizam-se do seu jeito para as atividades e brincadeiras, redefinindo os papéis para que possam brincar e ao mesmo tempo começar a conhecer seu meio. Criam personagens e/ou imitam pessoas, esta imitação contém uma parte de assimilação, e de identificação com o outro que é significativo para si. Quanto mais participam da brincadeira, mais assimilam e entendem seu significado. Ao adotar um papel, um personagem, a criança experimenta como é ser este personagem, assim como quando imita a mãe, a professora. A brincadeira para a criança é estruturada segundo os sistemas de significado da cultura do grupo ao qual está inserida, no entanto, faz com que se reorganize neste mesmo ato, de forma que tais ações e significados sejam compreendidos a melhor maneira, conforme comenta a autora:

A criança produz na brincadeira a sua própria vida. Os personagens adquirem vida com projeções, quer do eu, quer das figuras paternas, quer uma combinação das duas, mas sempre através de uma assimilação deformante, mais agradável à criança (OLIVEIRA, 1992, p.47).

Estar presente e deixar-se envolver pelo momento da criança, oportunizando situações e através de seus recursos e especificidades auxiliar a criança a resolver suas circunstâncias de conflito, liga paciente/terapeuta criando a possibilidade de uma ressignificação, do surgimento de hipóteses, construção de novos caminhos e a descoberta das possíveis soluções que levam a reformular o sistema de compreensão e reconstrução do sujeito.

Além do brincar, a clínica na infância, se dá também através do seu discurso, da linguagem que completa este brincar, das produções gráficas que apresentam tanto seus conflitos, como a sua evolução, e traz consigo os atravessamentos que ocorrem durante o processo terapêutico. É preciso estar atento aos acontecimentos à volta e “aproveitar” vinculando ao procedimento.

A condução da clínica com pacientes infantis baseia-se em dar um espaço para que as crianças possam assimilar, entender, recriar, transformar suas realidades através do brinquedo, dando suporte e trabalhando com eles e para eles. Onde o terapeuta, empresta seu potencial para que possam reconstruir ou resgatar aquilo que está perdido ou de difícil entendimento, corrigindo experiências emocionais, tolerando as próprias limitações.

A criança vem para a terapia, ou melhor, é trazida, na busca de alguém que seja capaz de tirá-la de apuros, das suas dificuldades. Para ela, um adulto não se diferencia do outro, no entanto, às vezes é preciso que este adulto, ao qual procura, seja alguém que entre no mundo dessa criança e que a permita produzir suas resistências. Quando chega à clínica, na maioria das vezes, é porque seus pais já não estão conseguindo suprir suas necessidades, assim, é preciso encontrar um outro adulto motivado e formado para esse trabalho (Cyrulnik, 2004).

No caso em evidência, diferente do que retrata o autor, a paciente não foi encaminhada pela mãe, mas pela escola, que percebeu as dificuldades de Carlos. O olhar da mãe estava permeado por outros sintomas que não somente os psíquicos, deste modo não conseguia atender às necessidades da filho, ainda, os sintomas orgânicos de Carlos eram reais e perceptíveis para a mãe e justificavam os “entraves” do seu desenvolvimento.

 

4 O NOSSO APRENDIZADO

A terapia de uma criança é sempre um desafio. Precisamos mergulhar com ela neste mundo de fantasias, precisamos brincar e nos prestar para que ela, na sua ilusão, nos tome como um objeto transicional. Precisamos também poder tolerar muita agressão que geralmente é contida nos outros relacionamentos. Estas circunstâncias todas fazem do trabalho de psicoterapia de crianças uma vivência e uma tarefa impregnada de emoção e também de solidão (DUARTE, 1989 p.41).

Ao conhecer Carlos e saber das suas dificuldades, tive a sensação de vazio, de desconhecimento. Por mais supervisão e orientação de estágio acadêmico que pudesse ter, o sentimento de solidão a que se refere à citação se perpetuou. Pois quando estamos em atendimento, são nossas as ações e palavras que darão seguimento ou não às produções dos pacientes. Assim, decidir se seria ou não objeto de transição foi decisão única e exclusiva, assim como assegurar as respostas que vinham a surgir.

Este caso trouxe muitas questões que me fizeram refletir sobre o papel de psicóloga que ocupo, sobre as teorias que aprendi na graduação, e a construção de um lugar. Trabalhar a clínica com crianças, especialmente este caso que apresento aqui afirma as muitas possibilidades que a Psicologia pode alcançar ao sujeito e junto com ele garantir um lugar de constituição.

Criar um espaço, um ambiente onde a simples presença do profissional traz para a criança segurança e condição de trabalho resulta em fatores positivos. E é a criação, o desenvolver deste lugar, que trago como resposta para uma das minhas questões sobre o papel do terapeuta, formar possibilidades.

Trago comigo grandes descobertas que auxiliarão no decorrer da minha carreira e que, a cada novo encontro, de alguma forma, acrescentarão meu conhecimento, mesmo que trazendo novas questões a serem refletidas. Entre estas descobertas, está o sentimento de ter o reconhecimento da minha implicação neste tratamento. Falo do reconhecimento com propriedade, pois vejo no olhar de Carlos e também nas suas atitudes que estou sendo importante para sua reestruturação como sujeito.

Sei que estou sendo, assim como os brinquedos,os jogos e os desenhos um instrumento para a evolução de Carlos, mas vejo também que este é um dos papéis do psicoterapeuta, permitir a intervenção seja ela através de um objeto, da escuta ou de si mesmo como parte integrante do processo.

         Já sobre as possibilidades na clínica de crianças, vejo que são muitas e que dependem da disponibilidade de quem está junto com a criança, envolvendo neste contexto, a família, a escola e o psicoterapeuta. Cada passo é dado com cautela e a direção tomada vai depender da resposta do paciente, da relação transferencial e contratransferencial. Não há um norteador, há sensações, envolvimento, interpretações.

O caso segueem atendimento. Encerrá-locom uma conclusão fechada, não é possível, além do que Carlos continua também com suas relações extraclínica, sua freqüência escolar, seu universo familiar, que lhe trará a cada dia mais questões a serem descobertas. Meu trabalho com Carlos terá continuidade,através de minha colega Marcela, com o intuito de fundamentar suas potencialidades para que possa enfrentar as adversidades de uma escola de ensino fundamental, como também os problemas que ainda surgirão.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: OS SENTIMENTOS DE UM ESTÁGIO

Apresentar este caso é bastante significante para mim, já que traz minhas aprendizagens no fazer da Psicologia, da clínica com crianças. Este caso trouxe muitas questões que me fizeram refletir sobre este papel de psicóloga, sobre as teorias que havia aprendido na graduação, e a construção de um lugar. Primeiro o meu lugar enquanto profissional, que na visão do outro é dono de um saber próprio, incontestável. Depois o lugar do paciente, que vem, enquanto criança, pelo desejo do outro e não sabe, ou pensamos que não sabe o motivo de estarmos juntos.

Trabalhar a clínica com crianças, especialmente este caso que apresento afirma as muitas possibilidades que a Psicologia pode alcançar ao sujeito e junto com ele, para sua constituição.

No entanto, por todo o percurso de estágio nesta escola particular  em  Novo Hamburgo, experienciei inúmeras situações que me fizeram rever conceitos, pensar sobre minha prática. Aprendi que o trabalho solitário nos traz mais obstáculos, que é preciso uma equipe, um trabalho conjunto, para que surjam os possíveis.

Neste período dei início a construção de uma identidade e como em todo processo construtivo, atravessaram-se em mim sentimentos de alegria e entusiasmo, assim como frustrações e ansiedades. Trabalhar estes sentimentos também foi fundamental, pois a desconstrução de um ideal e reconstrução do real faz de nós seres mais completos.

Trabalhar em uma escola privada, pertencer a uma organização, nos traz obstáculos, que precisamos enfrentar para alcançar nossos objetivos, mas que nos proporciona reflexões acerca do trabalho da Psicologia. Criar um espaço, dentro de um lugar, agregar meus conhecimentos ao do outro, não foi fácil. Por muitas vezes me senti fora de um contexto e me perguntei sobre a razão de estar ali, um sentimento de “despertencimento”. A nossa simples presença não traz a condição de trabalho, é preciso uma repetição de discurso, um teclar constante sobre nossas idéias, a fim de apresentar as propostas e as possibilidades que a Psicologia pode trazer. 

Hoje, olho para todo o caminho já percorrido e percebo o quanto importante ele foi para minha construção. Houve uma mudança de identidade, não sou a mesma estudante de Psicologia de meses atrás, afirmo que o estágio e suas adversidades me fizeram amadurecer enquanto pessoa e principalmente enquanto profissional.

O curso me trouxe a teoria, muito importante; o estágio me trouxe o conhecimento, apresentou o trabalho, a profissão, a realidade psi, além de abrir as portas para uma nova etapa, quando nos proporciona conhecer uma equipe, participar das construções metodológicas, das discussões em parceria com as instituições.

A inserção nas escolas não foi fácil, no entanto, neste período de trabalho, de apresentação das possibilidades da Psicologia, como mais um instrumento para a construção do sujeito, foi permeando e dando início a criação de um espaço, de um lugar que deixa a “inexistência” e passa a fazer parte, a ser necessário no processo de construção.

Hoje, refletindo sobre esta caminhada importante, percebo o quanto cresci. Enfrentar adversidades, discussões, imposições de idéias, participar de seminários, avaliar, ser avaliada, apresentou-me uma realidade da qual apenas imaginava e fantasiava. Mas, na medida em que participei, questionei, me envolvi, passei a compreender, a ser.

Deixo as escolas, mas não os lugares. Não estarei presente semanalmente, cumprindo um horário, contudo sei que a Psicologia estará lá, presente nos questionamentos, nas decisões, nos apontamentos. Iniciei uma trajetória, que marcou e está representada na fala da equipe, quando ao perceberem o final desta etapa de estágio, apresentam as queixas, a demanda, as oportunidades de trabalho. Alegro-me em perceber que deixei um caminho iniciado, uma brecha para um novo trabalho, o desejo da presença da Psicologia nas escolas. Com isso, minha estada, minha construção não ficará apenas na lembrança, mas no anseio de continuidade e na visão reformada da importância do papel da Psicologia.

Considero meu esforço e dedicação como parte importante deste desenvolvimento, no entanto, preciso agradecer muito, a oportunidade que toda a equipe de trabalho da fundação proporcionou neste período de estágio. Principalmente às psicólogas Maria e Tereza. Maria, que desde a entrevista para seleção mostrou-se atenciosa e sensível às adversidades, que durante as supervisões conduziu com serenidade e sabedoria minhas angústias e frustrações, oportunizando meu aprendizado. Larissa, que me acolheu de forma segura e calorosa.

Acrescido a isso, coloco que as supervisões coletivas e seminários, realizados, contribuíram muito para tal aprendizado, oferecendo-nos momentos de escuta e reflexão sobre as práticas dos colegas, como também leituras e ênfases teóricas para o embasamento destas ações.

Ainda, trago aqui, o reconhecimento da importância dos encontros semanais na supervisão da Universidade, onde foi possível conhecer muitas realidades e saber como cada colega trabalha, assegurando nossa condição de aprendente, vendo o processo individual de cada um como também o seu o crescimento. Além disso, poder apresentar um pouco do nosso trabalho e ter um olhar da supervisão, uma opinião ou questionamento que nos remeteu a reflexão fazendo de nós alunos da Psicologia, pessoas com pensamentos mais maduros e coerentes com nossos objetivos.



[1] Carlos, nome fictício, a fim de preservar a identidade do paciente. 

[2]  Trecho de uma fala e posterior publicação de Leandro Dieter - Psicólogo, Psicanalista, Mestre em Educação, na 1ª Jornada Municipal sobre a Infância e Adolescência. Novo Hamburgo - RS, em 2005.