Prática de produção textual

Márcia Belzareno dos Santos

                   “Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens.” (Machado de Assis)

                  “Aprender a escrever é, em grande parte, se não principalmente, aprender a pensar, aprender a encontrar idéias e concatená-las, pois, assim como não é possível dar o que não se tem, não se pode transmitir o que a mente não criou ou não aprovisionou...” (Othon Garcia)

           A partir da década de 90 do século passado, a expressão “produção textual” ganhou tamanha força que, incrivelmente, hoje, até nas conversas familiares mais informais, como entre mãe e filho por exemplo, chega-se a ouvir “tu não és capaz de ‘produzir’ nem mesmo um bilhete, guri !”, situação em que as mães, independentemente do grau de instrução formal que eventualmente tenham, já utilizam o verbo “produzir” como sinônimo de escrever.

           Evidentemente que a produção textual, em níveis ideais, se é que se pode falar em ideal quando o assunto é escrever, vai muito além do simples ato de escrever. Escrever um texto é, em última análise, organizar o próprio pensamento, passando a entendê-lo melhor. É passar a saber o que nem se sabia que por nós era sabido, antes  de  termos escrito, nós próprios, o nosso texto. Pois é exatamente isso que acontece quando nos preparamos para escrever alguma coisa que temos em mente, ou seja, só aí passamos, efetivamente,  a tomar  conhecimento do  que, até então, apenas supúnhamos conhecer. 

            Em um primeiro momento, parece complicado, mas podemos observar que para tudo o que se tem a dizer existe uma expressão adequada e à espera de seu usuário, o qual, em um primeiro momento, é o próprio falante. Na verdade, na maioria das vezes em que pensamos ter esquecido de algumas palavras,  é porque  ainda não sabemos  exatamente o que desejamos falar. Não obstante, na prática interativa da linguagem, em que  a compreensão é obtida através da negociação de sentidos entre locutor e interlocutor, não é raro acontecer de o próprio interlocutor conseguir completar aquilo que gostaríamos de falar, antes até de nós mesmos termos encontrado a palavra certa a ser dita. O mesmo acontece com a escrita. O leitor completa o texto do escritor.

             Deste modo é que  podemos afirmar que  é na interlocução linguística  que a linguagem e os próprios  sujeitos  vão se  construindo,  num processo de produção de linguagem evolutivo e constante, através da incorporação de novas informações que vão se adaptando às já existentes. Isso acontece, igualmente, com o texto oral e com o escrito.

           Diz o nosso querido professor Gilberto Scarton, que os problemas da escrita não decorrem tanto da falta do domínio das regras gramaticais. Segundo ele, a competência comunicativa na produção textual implica outras variáveis que ultrapassam o conhecimento das normas puramente prescritivas que se aprendem na maioria das vezes  no ensino formal.

 

             Todos sabemos que, na verdade, o que faz realmente a diferença na competência linguística é, sobretudo, saber produzir um texto que seja coerente e adequado ao contexto de  interação em que se vive no momento, ou ainda naquele que se pretende ser o texto inserido.


             Nesse sentido, pode-se dizer que  a competência textual não se desenvolve simplesmente pelo próprio exercício da escrita ou da fala, por tentativas nem sempre bem sucedidas, muitas vezes advindas de treinamentos estéreis, ou adquiridas em livros-texto ou nos bancos escolares. Pelo contrário, durante a articulação linguística o que acontece, na realidade, é um verdadeiro processo de  internalização dos recursos de expressão de que o indivíduo necessita para escrever, para ler, enfim, para decodificar o texto em sua forma plena, indo além do próprio conteúdo nele escrito ou lido, procurando entender o próprio  processo de formação do pensamento e daquilo que pretende atingir ao enunciá-lo.

          O talento nada mais é do que assimilação, diz-nos o professor Gilberto Scarton, ao citar  o crítico francês Albalat. E essa assimilação traduzida em talento, como reconhecidamente insiste o professor Gilberto em todas as suas valiosas interferências, só pode decorrer do ler, do saber ler, do monitorar a própria leitura, do observar o texto, do surpreender-se com o texto, do admirar-se diante do texto; fatores esses  que levam o leitor a escrever o que  lê, a imitar, a recriar, a encontrar o seu próprio estilo de escrita. Segundo o professor, escrevemos o que lemos. Diríamos, ainda, complementando as suas sábias palavras,  que vivemos e sentimos o mundo de acordo com nossas próprias leituras.

 

          Sendo assim, a produção de texto, como nos assevera o linguista Adair Vieira Gonçalves, deve ser encarada numa perspectiva sempre e necessariamente dialógica. E a primeira interação, por mais estranho que possa parecer, vem com o nosso próprio entendimento do mundo, ou seja, na produção textual  somos o primeiro contra-ponto de nós mesmos.

          Com efeito, a produção textual, sendo  uma atividade essencialmente verbal, está necessariamente e indissociadamente  a serviço de fins sociais e, portanto, inserida em contextos mais complexos de atividades. Produzir um texto é embrenhar-se em  uma atividade consciente, criativa, que compreende  não só o desenvolvimento de estratégias concretas de ação, mas principalmente  a escolha dos  meios adequados à realização dos objetivos previamente vislumbrados.

         Em outras palavras, a  articulação linguística, seja escrita ou falada, é  uma atividade invariavelmente intencional, na qual  o falante, de conformidade com as condições sob as quais o texto é produzido, empreende sua ação, através da manifestação verbal,  tentando dar a entender  ao seu destinatário os seus propósitos ;  em suma, é  uma atividade interacional, visto que os participantes linguísticos, de  diferentes maneiras, se acham envolvidos na atividade de produção textual.

         Como o uso do código (que é a própria língua)   é um ato social, envolvendo, consequentemente, no mínimo duas pessoas, é necessário que o código seja utilizado de maneira semelhante e preestabelecida,  para que a comunicação possa   verdadeiramente se efetivar.

            Desta forma, a presença do outro, no ato comunicativo, passa a ser de extrema importância. O outro  inscreve-se tanto no ato de produção de sentido na leitura, como também na própria produção do texto, no momento em que está sendo construído. A existência do outro  é condição necessária e indispensável para a existência do texto. Tanto o é assim que,  à medida que o produtor imagina leituras  desejadas ou não-desejadas pelos eventuais leitores, mais clareza ele conquista a respeito daquilo que se faz necessário escrever. 

         Assim, podemos afirmar que a concepção de linguagem  que procuramos no século XXI é a interacionista. Ou seja, é  dever de qualquer profissional da área da Comunicação eleger um modelo de linguagem que antes de mais nada reconheça  um sujeito que é ativo em sua produção linguística, e realiza um trabalho constante com a linguagem dos textos orais e escritos; tal trabalho, por outro lado, é resultado da exploração, consciente ou não, dos recursos formais e expressivos que a língua coloca à disposição do falante.

          Buscando coerência com essa realidade, na prática escolar, com relação à produção de textos, a escola deveria procurar   a aproximação da escrita tal como ela ocorre em situações concretas da vida do aluno. Caso contrário, corre-se o risco de o estudante ter a sua proficiência linguística prejudicada pelas limitações advindas de uma escrita prescritiva. Desse modo, problemas de argumentatividade em textos dissertativos, e outros, tais como os de não-adequação ao código escrito da língua, em situações formais, podem revelar a dificuldade da escola em instaurar práticas intersubjetivas de linguagem.

           A concepção interacionista do uso da língua, que reconhce que o sujeito é ativo e autônomo em sua produção de textos, orais ou escritos, pode ser o primeiro passo para que o professor de português, ou qualquer outro profissional da área de Comunicação, possa realizar um trabalho de constante sucesso com a linguagem dos textos orais e escritos; tal trabalho, por outro lado, passa a ser o resultado, consciente ou não, dos recursos formais e expressivos que a língua coloca à disposição de todos os falantes, muitas vezes independentemente do seu grau de instrução formal. Assim, o texto, nosso maior e mais importante instrumento  de comunicação, de investigação e, portanto, de conhecimento, só ganha valor efetivo quando está inserido num real processo de troca de informações.

       No dizer de Pécora, o que ocorre é que a escola, na sua trajetória histórica, falseia as condições de escrita e não fornece ao estudante as ferramentas de uma prática interativa da língua com a vida e com o outro. Destarte, com esse falseamento, a escrita torna-se um exercício penoso de cristalização do discurso. Exemplos disso são as frases-feitas, os argumentos de senso comum que, frequentemente, aparecem em textos dos alunos, mas que, na verdade, para eles próprios, não querem dizer muita coisa; ou, pelo menos, não revelam aquilo que eles gostariam de ter escrito ou falado. Entretanto, ao instituir uma prática intersubjetiva, que leve em conta a reflexão, será possível resgatar de cada um dos alunos um discurso mais pessoal e mais autêntico.

      Por isso, o professor, ao solicitar uma escrita, é imprescindível que o texto do aluno tenha um destinatário real. O processo de escrita exige a saída da  solidão. Caso contrário, é bem provável  que o texto venha a significar muito menos do que pretendia seu autor. 

      Quando falamos em produção da escrita, há de se considerar que uma parte significativa dos materiais didáticos adotados pelas escolas de Ensino Fundamental e Médio, desconsidera o caráter dialógico da linguagem. Não há uma preocupação com as estratégias do dizer tendo em vista um interlocutor específico. Quase todos partem de uma concepção tradicionalista do ato de escrever, concepção a qual vê a linguagem como expressão do pensamento ou apenas como mera forma de comunicar-se. Consequentemente, apela-se para listas e listas de exercícios de metalinguagem, sugestões de práticas de textos, metodologias de aplicação e sugestões de correção dos textos que pouco ajudam o aluno no seu propósito de “aprender” a escrever.

        Enfim, no ensino de redação, como tradicionalmente chamamos,  é urgente entender o saber, a escrita como algo a ser construído, como um processo e não como um  produto finalizado. Produzir textos, motivar, fazer debates, comparar textos são práticas viáveis; no entanto, o que é mais importante é o conceito que temos sobre o uso da língua, as funções que a linguagem deve exercer em nossas vidas. A interação deve permear a relação professor/alunos e estes entre si. O importante é o “para quê” dessas práticas.

       Suassuna,  ao traçar os objetivos de uma prática pedagógica que garanta uma interlocução real para os estudantes e que amplie as formas de interação através da linguagem, propõe:

A) o resgate das relações sociais em geral, pelo entendimento das relações entre os fatos da língua, e entre esta e o mundo;

B) o processo de constituição da subjetividade e de novas relações intersubjetivas, instauradas pelo exercício da linguagem;

C) a utilização da língua em contextos interacionais efetivos e diversificados, com base na assunção de diferentes papéis no jogo das representações sociais.

       Com a linguagem sendo vista como forma de interação, é possível trabalhar o texto mais profundamente. Isso significa abordá-lo de maneira crítica;  investigar os recursos utilizados pelo produtor para transmitir a mensagem; decifrar a intencionalidade e as estratégias das quais se vale o autor para atingir seu objetivo. Sobretudo, para que se realize plenamente o prévio estudo do assunto e a posterior escritura do texto, seja em que modalidade for, são necessárias a compreensão, a síntese, as inferências e, se possível, uma etapa final em que o aluno possa externalizar  algo que adquiriu, que internalizou com a redação de seu próprio texto. Ou seja, para que possamos entender o que realemnte queremos ao escrever, esperamos a resposta do outro e de nós mesmos em relação ao que estamos escrevendo, como um sinal de que está tudo certo, de que a comunicação foi efetivada. Como diriam as nossa máquinas, hoje, “OK.Sua mensagem foi enviada com sucesso”. E como diriam as nossa teorias linguísticas interacionistas, só aprendemos algo, quando nossos textos são trocados/ entendidos com sucesso, pelos outros e, em primeiro lugar, por nós mesmos.

         Vale dizer, o ato comunicativo, escrito ou falado, consiste em valiosa senha para a abertura de uma relação de amizada, de amor, de companheirismo, ou o pior, pode ser o começo de uma grande dor de cabeça, caso não consigamos nos fazer entender.

         Isto é, o trabalho de escrita, seja de que natureza for, só faz sentido quando tudo o que se escreve está direcionado para o outro, a serviço do outro. E nós só entendemos nossos enunciados, verdadeiramente, depois que o concretizamos. É apenas na leitura de nós mesmos e do outro que completamos a nossa escrita. Plenamente.

 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBALAT, Antoine. A arte de escrever ensinada em vinte lições. Lisboa: Clássica Editora, 1934.

GERALDI, J.W. Concepções de linguagem e ensino de português. In: GERALDI, J.W. (org).O texto na sala de aula – leitura & produção. 2.ed. Cascavel: ASSOESTE, 1990. cap.5, p.41-48.

_______________ Portos de Passagem. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995

GOLÇALVES, Adair Vieira. A produção de texto numa perspectiva dialógica. www.portaldasletras.com.be

KOCH, I.V. A inter-Ação pela linguagem. 5.ed. São Paulo: Contexto, 2000.

____________ O Texto e a construção dos sentidos. 2.ed. São Paulo:Contexto,1998..

PÉCORA, A.  Problemas de redação. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

SANTOS, Márcia Belzareno. Produzir um texto é uma realização a dois. In: Estudos linguísticos. Série Cadernos – Ano III – nº 04. Curso de Letras – ULBRA-São Jerônimo/RS.

SCARTON, Gilberto. Guia de Produção Textual- PUCRS. www.pucrs.br/gpt

SUASSUNA, L.  Ensino de língua portuguesa - uma abordagem pragmática. Campinas: Papirus, 1994.

TRAVAGLIA, L.C. Gramática e Interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. 2. ed.São Paulo: Cortez,1997.