Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Trabalho de Seminário da cadeira: Tópicos da Teoria Literária: Fernando Pessoa 

Possíveis paralelismos entre a estrutura, linguagem e temas entre as cantigas inseridas no Cancioneiro Popular Portuguez de Teófilo Braga e as Quadras de Fernando Pessoa

Introdução:

A ideia para este trabalho surgiu por várias razões, da ordem teórica e prática: em primeiro lugar, decidimos relacionar um autor canónico da literatura portuguesa com a literatura popular, que é a nossa principal área de investigação, para tentarmos demonstrar que a literatura erudita nem sempre é completamente oposta da literatura tradicional. Em segundo lugar, observaremos em que medida Fernando Pessoa se inspirou na herança cultural portuguesa para criar as suas Quadras, em que  também inconfundivelmente se reconhecem elementos do sistema poético deste escritor. A crítica literária considera este conjunto de poemas como obra de menor qualidade dentro da poesia pessoana, como da mesma maneira a própria literatura popular tem sido desvalorizada pelos autores eruditos, até ao século XIX, quando, na época do Romantismo, surge um interesse maior pelo folclore e tradição dos povos europeus. Por este motivo uma das dificuldades que se nos apresenta na elaboração deste trabalho é a escassa bibliografia. Daí admitimos que corremos o risco de fazer uma análise não demasiado aprofundada e tal vez um pouco pessoal da problemática que tencionamos estudar. Escolhemos propositadamente o Cancioneiro Popular Portuguez de Teófilo Braga para a comparação com as Quadras de Pessoa, tendo em conta que a primeira edição deste cancioneiro foi publicada em 1911, e que  Fernando pessoa escreveu as suas primeiras quadras em 1908 e as últimas podem ser datáveis entre 1934 e 1935. A  relativa proximidade temporal entre as duas colectâneas de poesia que pretendemos analisar reflecte-se sobretudo na ortografia, do ponto de vista formal, e no que diz respeito ao conteúdo, veremos em que medida os conceitos da alma portuguesa e algumas ideias sobre a Nação, apoiadas por Braga, persistem na poesia popular e em que medida a visão pessoana destes assuntos concorda ou não com a mundividência do povo português. No que se refere aos temas, no cancioneiro de Teófilo Braga predomina o amor, embora existam, temas religiosos, políticos e os destinados à população infantil. Mediante uma análise contrastiva entre estas duas obras, tentaremos verificar até que ponto a  sua temática coincide,  estudaremos a opinião de Pessoa sobre os temas que elabora, tal como pretendemos apontar para alguns motivos eformas de pensar característicos para este poeta.

Definição e estrutura da cantiga na poesia lírica popular portuguesa

Neste capítulo abordaremos a questão da definição dos termos cantiga e quadra na literatura popular, chamaremos a atenção para as características da verssificação e prosódia da poesia popular portuguesa e tentaremos verificar quais são os critérios seundo os que o povo português escolhe específicamente estas formas métricas para a sua poesia lírica. Deste modo observaremos até que ponto Fernando Pessoa conseguiu adequar a sua sintaxe, vocabulário e ideias ao “gosto popular“, em que escreveu alguns dos seus poemas. Este será um ponto de partida para aprofundarmos a nossa análise das cantigas populares e eruditas, para demonstrarmos que estes poemas têm o seu valor poético, estético e cultural.

De acordo com Malaca Casteleiro (2001:673), o primeiro significado para a entrada lexical “cantiga“ é “poesia dividida em estrofes iguais e de versos geralmente curtos própria para ser cantada“. Esta definição, encontrada num dicionário não especificamente literário, pode parecer-nos um pouco generalista após uma primaira leitura, uma vez que pelos conhecimentos que temos da literatura popular, as cantigas que estamos habituados a ver nas colectâneas estão compostas por uma estrofe de quatro versos. O que nos pode interessar da explicação desta palavra são os “versos geralmente curtos“, já que o verso mais característico para a poesia popular portuguesa é o heptasssílabo, verso de sete sílabas, também conhecido como “verso de arte menor“. O autor citado salienta também a possibilidade de a cantiga ser cantada, e esta parte da definição enquadra-se bem na inseparabilidade da poesia lírica popular do canto e dança, tendo em conta que as cantigas populares surgiram como complemento dos trabalhos de campo ou de festas populares. Em García (1998) a cantiga é caracterizada com mais pormenor como poema lírico de carácter profano ou religioso, que pode ser acompanhada por um instrumento musical, analisa-se a origem do seu nome, determina-se o número exacto de sílabas, salientam–se as influências da lírica provençal e os paralelismos usados como recursos estilísticos. De facto, a estrofe mais usada na lírica popular portuguesa é a quadra, embora estejam presentes em poucos casos a redondilha, a décima ou a sextina.  Em relação à quadra Jacinto de Prado Coelho (1981:883) tem a seguinte definição: “estância de quatro versos ou estãncia de quatro versos de arte menor“. O termo “arte menor“ na versificação refere-se ao verso com o número de sílabas igual ou inferior a oito sílabas.  Por isso, quando Fernando Pessoa (Pessoa, 1997:85) se exprime sobre as suas Quadras, como “versos feitos em modo menor“, não pensa na inferioridade da qualidade da sua obra, como o interpreta Fernando Cabral Martins (2008), mas salienta a sua intenção de imitar a forma típica para a poesia popular portuguesa. A maioria dos especialistas no cancioneiro popular português, nomeadamente Cortesão (1914, 1942), Braga (1911,1994, 2005) Leite de Vasconcellos (1890), Nunes (1978), Lima (1962) e Veigas Guerreiro (1992) concordam com que a versificação da poesia de cada povo corresponde melhor às características dessa respectiva língua. Enquanto que uns justificam as suas opiniões com a simplicidade, espontaneidade ou naturalidade da língua e poesia portuguesa, outros apoiam a ideia da maior possibilidade da improvisação na quadra, ou observam a quadra como estrofe que dá ao poema popular “uma figura redonda“ (Veigas Guerreiro, op.cit.). Alguns dos estudiosos referidos preferem optar por hipóteses mais “científicas“, explicando as formas métricas portuguesas por influências do cancioneiro erudito, lírica provençal ou poesia popular espanhola. Quando analisarmos as Quadras de Fernando Pessoa, tentaremos investigar em que medida os argumentos da naturalidade, espontaneidade ou simplicidade dessas formas poéticas são válidas e quais são as características que distinguem o estilo pessoano do “gosto popular“ em que foram feitas segundo Georg Rudolf Lind e  Jacinto de Prado Coelho (1979).

No que se refere à rima presente nas cantigas populares portuguesas, o que predomina é a rima abcb ou abab, sendo mais frequente  a rima consonante, em que coincidem as consoantes e as vogais. A coincidência apenas das vogais é muito rara de se encontrar.  De acordo com Lima (1962) os primeiros dois versos tiram conclusões da observação da natureza, uma vez que o homem primitivo, e especialmente no meio rural, foi muito mais estreitamente ligado à natureza, aos seus ciclos e mudanças, do que o homem contemporâneo. Este mesmo autor salienta que os últimos dois versos na cantiga popular servem para transmitir alguma mensagem ou dar uma consideração final, que de  certa forma se relaciona com a ideia expressa no início do poema. Para ilustrarmos melhor a visão deste estudioso, citaremos uma cantiga que nos pareceu bastante representativa:

“Nem toda árvore dá fructo

Nem toda erva dá flor

Nem toda mulher bonita

Pode dar constante amor” (Braga, 1911:4).

Como vemos a rima corresponde ao primeiro modelo mencionado e a estrutura do poema é tal que primeiro se introduzem elementos da natureza (árvore e erva) que são característicos porque não podem dar o que deles é esperado, para se chegar à conclusão de que há um aspecto em que a mulher é igualável aos elementos naturais: nem ela pode dar o amor. A rima em que coincidem o segundo e quarto versos é conhecida sob o nome “rima de pé-quebrado.” Segundo Viana (1975), quando existe rima “completa”, nos quatro versos da quadra, isso significa que a cantiga está inspirada na obra de um autor erudito sábio. No Cancioneiro Popular Portuguez de Teófilo Braga não conseguimos encontrar nenhuma cantiga com esta estrutura, no entanto consta-nos que nas outras colectâneas de poesia popular existem raros exemplos de rima aaaa.

Nunes (1978) denomina as cantigas com o tipo de estrutura abab como “cantigas quadradas”.

Como  modelo para a rima cruzada abab pode nos servir a seguinte quadra popular:

Cantigas estão estudadas

Cantigas, leva-as o vento,

Muito enganado anda

Quem comigo passa tempo (idem,11)

Neste pequeno poema rimam o primeiro e o terceiro verso e o segundo e o quarto, sendo desta vez a “conclusão” do poema encontrada nos versos pares rimados (da mesma maneira em que as cantigas são levadas pelo vento como palavras de pouco valor (e o autor anónimo do poema popular inspira-se no provérbio português “Palavras, leva-as o vento”), o pretendente da rapariga perde tempo com ela, porque ela não lhe pode dar um amor de grande profundidade.

Linguagem e estilo das quadras populares portuguesas

Nesta parte do nosso trabalho focalizaremos dois aspectos formais da  lírica popular portuguesa: o estilo e a linguagem, de forma a verificarmos de que modos o povo se exprime na sua poesia. Analisaremos as figuras estilísticas, existência de clichés e frases feitas, a sabedoria transmitida nos provérbios e o sentido de humor popular.

Jaime Cortesão (1914) menciona que os autores populares têm um “ouvido certeiro” que lhes permite corrigir os versos menos bonitos e perfeitos e suficiente inteligência para “cortar infiltrações postiças” e uma grande facilidade para preencher lacunas da memória. Por isso as cantigas populares parecem muito naturais e espontâneas, porque o povo conhece a variedade e riqueza e recursos estilísticos da sua própria língua e não deixa escapar nada que possa soar mais rebuscado ou “artificial.”.

Braga (1911) designa a linguagem do cancioneiro popular como “corrente, melódica e encadenciada”, o que não significa que não se possa exprimir sobre os sentimentos complexos e profundos, porque, nomeadamente a poesia amorosa do povo português caracteriza-se pela facilidadde com a qual aborda todas as variantes do amor, desde o platónico até ao desejo do contacto físico. Este e muitos outros compiladores de cancioneiros populares salientam uma grande riqueza lexical da língua portuguesa e sublinham sempre a impossibilidade de qualquer outra língua encontrar o equivalente para o termo saudade. Mais adiante veremos qual é a posição do povo portugu~es e de Fernando Pessoa nas suas Quadras em relação a este tema.

De acordo com Jaime Cortesão (1942:105) a linguagem da poesia popular portuguesa destaca-se pela “extrema dimplicidade morfológica” , mas nunca pode dizer-se que é pobre, porque “os outros povos europeus, mesmo que tenham mais riqueza de vocabulário, não têm tamanha perfeição.”

Mesmo que nas cantigas do povo apareça alguma palavra cujo uso se restringe a uma determinada zona de Portugal, uma incorrecção gramatical ou um provérbio, este facto não lhes elimina a beleza e a graça que têm, muito pelo contrário, faz com que as imagens e palavras tenham mais vivacidade e expressividade e que a sabedoria popular seja mais aceitável  e reconhecível pelo público.  Uma das incorrecções gramaticais frequentes na poesia popular são as formas da segunda pessoa do singular do pretérito perfeito simples, às quais, por analogia com outros tempos verbais se acrescenta a terminação-s: “gostastes”, “fostes” etc. Nas cantigas populares este erro deve-se à pouca escolarização institucionalizada dos cantores que transmitiam oralmente os poemas. Além disso, na oralidade alguns desvios gramaticais são mais toleráveis, do que na linguagem escrita, uma vez que a língua falada é menos susceptível às regras que um registo mais formal.

Citaremos um exemplo de uma quadra que contém um provérbio para vermos de que maneira o povo com palavras simples exprime pensamentos muito profundos:

´Sta doente flor das flores

Chamar médico é loucura

Doença de mal de amores

Quem a causa é quem a cura (Braga, 1911:161) (o itálico é nosso.)

No que diz respeito às figuras estilísticas usadas no cancioneiro popular, muito frequentes são comparações, metáforas, trocadilhos e jogos verbais, sobretudo com as palavras homónimas, contrastes, paralelismos, repetições e hipérboles. Desta forma podemos encontrar metáforas do cravo e da rosa para designar um rapaz e uma rapariga, o “pé pequenino” comparado a um vintém, frases feitas e expressões idiomáticas “falso como Judas”, “dar o nó” (casar) etc. Por razões estilísticas e maior musicalidade o povo opta por repetir muitas v ezes a mesma palavra

“Esta noite à meia-noite,

À meia noite seria” (Braga, 1911, 15)

Os contrastes são muito facilmente identificáveis (noite-dia, morte, vida) e os paralelismos entre um elemento da natureza e o ser amado.

“ Rosa para ser rosa,

Deve ser de Jericó

O homem para ser firme

Deve amar uma só” (idem, 248)

 A linguagem popular permite  também muitos jogos com palavras, aludindo aos sentidos ambíguos de determinados termos. A semelhança fonética entre dois elementos pode por um momento confundir o público, fazê-lo rir ou levar ou ouvinte interpretar o significado do verso de forma errada. Muitas vezes encontramos jogos com a palavra “pena” como instrumento antigo de escrever cartas e “pena” como sinónimo de “mágoa”. Quando está presente alguma hipérbole, geralmente se trata do verso “Hei-de amar-te até a morte”, em que é possível insinuar alguma influência da lírica trovadoresca medieval.

Nos poemas populares portugueses não há alegorias, metonímias, sinécdoques, hipérbatos, polissíndetos ou outros recursos estilísticos “complexos”, mas não por o povo ser incapaz de os criar ou entender, mas porque para esses efeitos é preciso ter um determinado grau de erudição e de conhecimentos formais de retórica ou estilística, que são mais próprios ddos autores cultos do que dos poetas populares anónimos, que na maior parte dos casos não tinham acesso a uma escolarização institucionalizada.

Temas da poesia popular portuguesa

Muitos dos especialistas na área da literatura popular (Leite de Vasconcellos:1890, Braga 1911, Nunes,1978) são unánimes quando afirmam que o tema dominante na poesia lírica popular portuguesa é o amor. Jaime Cortesão (1914:22)  “o sentimento essencial à volta do qual gira toda a vida do Povo é o Amor”. As manifestações do amor na poesia popular variam desde a timidez e um sentimento puro e platónico, saudades, ciúmes, arrufos e zangas de namorados, até ao desejo e paixão. Na realização dos encontros amorosos a natureza desempenha um papel importante, sendo ela muitas vezes  confidente e cúmplicfe dos amantes. Na poesia popular amorosa existe sempre um tu, um interlocutor desejado, para o qual temos a impressão de que é próximo da pessoa que canta ou declama a cantiga: a mãe, a amiga, a natureza, até os próorios santos populares parecem ouvir atentamente tudo o que diz respeito ao amor e para o público não é difícil identificar-se com os sentimentos expressos numa quadra popular.  Outros temas importantes no cancioneiro popular português, e especialmente o de Teófilo Braga, são a religião, que se reduz muitas vezes às manifestações da religiosidade popular, combinada com crenças e tradições pagãs. Algumas quadras tradicionais tratam das romarias e festas populares em que a ida à igreja serve frequentemente apenas como um pretexto para o encontro dos namorados. Em Braga notamos uma tendência moralizadora nas cantigas de carácter religioso, em que se mencionam as virtudes fundamentais na vida dos cristãos, canta-se sobre os dez mandamentos, sobre os pecados que se devem evitar. O terceiro tema importante que chama a atenção de Braga são as cantigas de embalar e quadras para crianças, que ajudam ao público infantil a adquirir os conhecimentos básicos sobre o mundo que o rodeia. O último tema ao  qual Teófilo Braga dedica uma parte na sua colectânea do cancioneiro popular é a política, em que o povo com alguma ironia descreve os defeitos de algumas figuras importantes na história de Portugal. Veremos mais adiante até que ponto o conteúdo das Quadras de Fernando Pessoa corresponde à temática usada nas cantigas populares.

Quadras de Fernando Pessoa: designação, estrutura e alguns aspectos formais

Neste capítulo focalizaremos mais de perto a parte da obra pessoana que nos interessa, tentando explicar as razões pelas quais este poeta optou por escrever alguns poemas “ao gosto popular”, veremos em que medida eles influenciaram ou não alguns pontos de vista do autor em relação à sua identidade portuguesa e analisaremos alguns aspectos formais das Quadras para concluirmos que Fernando Pessoa não pode ser considerado um “poeta popular” no sentido em que o são António Aleixo e outros autores de quadras cujo nome hoje em dia é conhecido. Na opinião Fernando cabral Martins (2008:689) Pessoa foi influenciado pelas leituras de Almeida Garret, António Nobre e Correia de Oliveira, autores que tentaram revalorizar a poesia tradicional e “certos valores nacionais perdidos”.  Georg Rudolf Lind e Jacinto de Prado Coelho (in: Pessoa 1979) afirmam que não é por acaso que a data das primeiras quadras seja entre 1907 e 1908, quando o poeta chegou a Lisboa e encontrou-se de novo com a sua cidade e as suas origens. Para estes autores as quadras “populares” pessoanas são uma tentativa de o jovem escritor se identificar como português, depois de ter publicado até a altura apenas os poemas em inglês. Na opinião destes dois estudiosos  (op. cit, 13) “quem faz quadras portuguesas comunga a alma do povo, humildemente, de todos nós e errante de si próprio.” Esta citação pode parecer ao leitor como uma manifestação de sinceridade por parte do poeta, ou também pode ser uma falsa pista, mais uma “máscara” de Pessoa, que nos leva a pensar que escrever no estilo popular é mais uma maneira de fingir, e o jogo entre a falsidade e a sinceridade enquadra-se bem no sistema poético pessoano.

Tendo em conta que as últimas quadras foram escritas entre 1934 e 1935, no último ano de vida do poeta, é-nos permitido ter duas suposições: Fernando pessoa queria voltar às origens à simplicidade literária sendo já um autor afirmado e realizado, ou esgotou a inspiração e as ideias das suas grandes obras anteriores? Este assunto poderiaocupar a nossa atenção com mais pormenor, e será tratado mais tarde, nas conclusões deste trabalho.

Consultando várias colectâneas com as quadras pessoanas, deparámo—nos com diferentes designações que os compiladores davam a estes poemas. Já mencionamos que a edição de Lind e Prado Coelho (In:Pessoa 1979) se intitula como Quadras ao gosto popular.

Teresa Sobral Cunha (In:Pessoa:1997) organiza a sua colectânea sob o título de Quadras e outros cantares, tendo como um dos critérios todas as composições poéticas de Fernando Pessoa que foram feitas imitando o estilo popular. Nós optámos pela denominação Quadras, que se mantém na edição de Luís Prista (In: Pessoa:1997), uma vez que  foi o próprio poeta que deu esse nome às poesias que guardou num envelope dentro da sua arca. Ricard Zenith (in: Pessoa: 2006:21) ao contrário de muitos especialistas na obra pessoana, exprime-sesobre esta parte da sua poesia como de “fertilíssima fase de quadras de sete sílabas, rimadas abab ou abcb, de acordo com a tradição popular, mas subvertendo nãoraras vezes os temas típicos desta expressão poética.”

Os temas que Pessoa aborda serão analisados mais adiante, no entanto, neste momento observaremos outras formas de “subversão” que este poeta introduz na forma usada na poesia portuguesa tradicional. Notámos que a sintaxe pessoana nas suas Quadras é mais complexa do que na poesia popular. Não é raro encontrarem-se frases longas, em que uma delas ocupe dois versos, ou frases subordinadas. Neste aspecto vê-se que as quadras de Fernando Pessoa foram escritas por um poeta culto, e muito bem elaboradas, destinadas para serem lidas e não declamadas ou cantadas, como acontece com os poemas populares. Para ilustrarmos este tipo de estrutura frásica, daremos alguns exemplos:

“Deixa que um momento pense

Que ainda vives ao meu lado...

Triste de quem por si mesmo                                                                

Precisa ser enganado.” (Pessoa;1997:80)

Nos primeiros dois versos vemos uma frase subordinada e no final estão as reticências, que como marca ortográfica não existe na poesia popular. Com esta táctica usada pelo poeta faz com que aumente ainda o tom pensativo e melancólico da quadra. Outra característica importante dos poemas “ao gosto popular” de Fernando Pessoa são as perguntas retóricas, às quais nem se responde nem se espera uma resposta. Citaremos a seguir uma quadra, para confirmarmos que este elemento é uma das marcas pelas que se distingue a poesia pessoana das cantigas populares:

“Ó tempo, tu que nos trazes

Tudo o que na vida vem

Porque não vens a matar

Quem já nem saudades tem? “(idem)

No que se refere à ortografia das quadras pessoanas, ela é bastante semelhente àquela que usa Teófilo Braga no seu Cancioneiro Popular Portuguez: mantém-se muito fiel à etimologia da palavra, conserva as formas escritas com ipsilon (“mysterio”), escreve h entre duas vogais (“ trahiu” em lugar de “traiu”), muitas vezes mantém a letra s onde o português contemporâneo tem por regra escrever-se o z “sósinho” em vez de sozinho. E ao contrário “puz” em lugar de “pus”.  Este facto não nos surpreende sabendo que por um lado, Braga que era revolucionário nas suas ideias políticas, era bastante conservador em relação às questões linguísticas, considerando a língua um elemento importante da identidade nacional. O ponto de vista de Fernando Pessoa perante este assunto é semelhante a de Teófilo Braga: Sabendo que para Pessoa a língua portuguesa era a sua pátria, e que como Bernardo Soares no Livro do Desassossego tem posições radicais no que se refere às inovações ortográficas, a fidelidade à ortografia antiga nas quadras escritas no seu último ano de vida parece-nos justificada.

Estilo e linguagem das Quadras de Fernando Pessoa

            Esta parte do nosso trabalho focalizará especialmente os recursos estilísticos e linguísticos usados por Pessoa nas suas Quadras, que é uma das características pelas quais Luís Prista, (in: Pessoa, 1997) no seu prefácio a esta obra não está de acordo com que Pessoa seja “um poeta popular.”.  Enquanto as quadras populares se caracterizam pela simplicidade morfológica, na poesia “popular” de Pessoa notámos muito a presença do futuro simples, que na língua falada se substitui pela construção ir+ infinitivo ou pela perífrase verbal haver de + infinitivo.  Outra caracretística de um registo mais formal é o uso do condicional simples, que na língua falada se substituiria com as formas do pretérito imperfeito.  No imperativo a forma da segunda pessoa do plural (vós), pouco usada na linguagem falada pode aparecer em algumas cantigas populares, como também aparece em Pessoa(“bebei do meu coração”,) (Pessoa, 1997:178)  Daremos alguns exemplos que confirmam a erudição de Fernando Pessoa e o seu estilo formal nas quadras: “”Se vive, ver-te-hei, se não”( idem,:80), “Dois anos te esperaria”. Neste caso não foi usado o pronome mesoclítico “esperar-te-ia” apenas por razões de imitar a facilidade com a qual se pronuncia um verso popular.

            No que diz respeito ao vocabulário, notámos nas Quadras pessoanas alguns elementoscultos, inexisténtes na poesia popular “débeis” em lugar do termo popular “fracos”, “o Além” em vez de “o Céu”, aparecem termos como “incompleto” e “incompletar”, “ecoar”, “escarlate”, “calcular”, “florir”, “imitado”, “incomodar”, “implorar”, “delgado”, “anonyma” e outros que não se adequam à  linguagem da poesia popular. Por outro lado, na quadra em que se mencionam os versos “feitos em modo menor”, vê-se claramente a palavra Autor escrita com maiúscula, o que nos dá a saber que aqui existe uma plena consciência da autoria da quadra, que, no entanto se atribui a uma bebedeira do poeta. Deste verso podemos tirar uma conclusão ambígua: por um lado o autor sente-se orgulhoso do que escreve e por isso salienta a letra maiúscula, por outro rejeita a sua criação, escondendo-se detrás de uma bebedeira. Isto não é nada mais do que outro jogo pessoano entre a verdade e a falsidade, categorias que tanto preocupam o poeta e que se enquadram de forma excelente no seu sistema poético. A cultura e erudição do poeta vislumbram-se ta,mbém na alusão a elementos da cultura clássica: Diógenes que procura o homem em Atenas e daqui vemos que o autor das quadras que analisamos tinha um sólido conhecimento da literatura antiga, que, embora adquirido em regime auto-didacta, ajudou Pessoa a distinguir-se entre outros poetas da sua época.

            No vocabulário das Quadras observámos inconfundíveis elementos da modernidade: “relógio no pulso”, “tampa da cafeteira”, “latas de atum”, “moinho de café”, “bule de chá”,  “hospital” pelos quais sabemos que  o que se descreve nas cantigas decorre no tempo em que o poeta viveu. Estas e outras características da linguagem situam claramente algumas das quadras no ambiente urbano: a rapariga sobre a qual se canta tem uma pulseira que herdou, o que a caracteriza como descendente de família burguesa, outra usa um xaile de seda, outra tem chapéu e luvas. Estes pormenores revelam que Pessoa era alguém que vivia na cidade e conhecia bem os costumes e a vida urbana. No entanto, quando uma cantiga descreve o ambiente rural, vê-se muito bem que alguns dos motivos são boas imitações da poesia popular. Menciona-se mangerico, rosas do roseiral, limão que cai no chão e os namorados vão apanhá-lo. Para imitar a linguagem rural, Pessoa recorre à mesma forma errada da segunda pessoa do plural no pretérito perfeito simples “gostastes” e “fostes”, a preposição para, quando se junta ao atrigo definido masculino ou feminino passa a ser pró e pr´a. Outra marca da oralidade presente nas quadras pessoanas é o uso do termo “lá”, que no verso”tome lá minha menina” não tem a sua função espacial.  Recorrre-se até a uma palavra do domínio do calão (“Hei-de apagar-te mijando”) (idem, 183) para se aproximar quanto mais à linguagem das camadas sociais mais baixas. Notaremos também que nas “verdadeiras” cantigas populares  este tipo de linguagem não aparece, devido à consciência que os cantores medievais tinham sobre o carácter educativo das suas criações.  Para evocar melhor o ambiente rural dalgumas quadras estão presentes vocábulos característicos para uma aldeia: “feira”, “púcaro de barro”, água a pingar no tanque., “campos verdes”, “pomar”. Os “campos verdes” e a “pastorinha” que se menciona como personagem central de uma cantiga são elementos bucólicos, e esses motivos também interessavam pessoa, sobretudo se sabemos que em nome de  Ricardo Reis, Pessoa escreveu o “guardador de rebanhos.”  Imitando as quadras populares este poeta utiliza o vocabulário “um modo assim-assim”, (idem,94) “um certo não sei que” para se referir aos abraços e olhares que revelam o amor. Este tipo de construções é justificado nas cantigas medievais em que existia a vigilância social, religiosa e familiar dos namorados e em que a decência não permitia falar-se aberta e directamente nas emoções.  Em Pessoa  a escolha desta táctica reflecte que era um bom conhecedor da literatura popular. Para Rudolf Georg Lind e Jacinto de Prado Coelho (1979) o seu estilo implica um “espírito tão cerebral e especulativo”. Isto é, mesmo após uma primeira leitura, é evidente a falta da naturalidade, simplicidade e espontaneidade da qual abundam as quadras verdadeiramente populaeres. Nota-se qua a intelectualidade de Pessoa planeou e pensou muito bem cada palavra, que elaborou a linguagem e o estilo, os quais, ainda que recorram aos mesmos recursos estilísticos que usa a poesia popular (comparações, metáforas, trocadilhos, repetições) são o reflexo do trabalho de um poeta culto.  Na poesia “popular” de Pessoa não há provérbios, mas sim existem as suas imitações “Como a mãe assim a filha” (idem, 117), que se poderia substituir pelo “verdadeiro “ provérbio “tal mãe-tal filha”, e frases de tom filosófico ou moralizador “ o amor é vida a sonhar” , “não fales mal de ninguém”, “tudo no mundo é egual.” (idem,111) As situações em que a estrutura bipartida da quadra não aparenta guardar nenhuma relação entre os versos, tal como a banalização e trivialização de determinadas figuras estilísticas, pode representar uma ligeira ironização da literatura popular e um rompimento com os clichés existentes. Comparar cartas  de amor com as latas de atum abertas na nossa opinião significa gozar com as frases feitas que depois de muito uso perderam o seu significado original.

Temas das Quadras de Fernando Pessoa

         Uma vez que as Quadras de Fernando Pessoa representam uma imitação “ao gosto popular” das cantigas tradicionais, é lógico que se repitam alguns temas.  Fernando Cabral Martins (2008:689) cita a divisão que o próprio Pessoa deu das suas cantigas: “1. amorous (all kinds)2. Elegiac 3. philosophic and general 4. in other mouths 5. Objectionable. De acordo com Teresa Sobral Cunha ( In: Pessoa:1997) o sentimento dominante é o amor, atípico para o resto do corpus deste poeta. Nas cantigas de conteúdo amoroso imitam-se as cantigas de amigo  medievais e algumas delas estão escritas como se a protagonista fosse uma rapariga. Um dos exemplos é a quadra em que se pede a um certo José para ter paciência.  As estudiosa acima mencionada considera que uma parte das quadras está dedicada à Ofélia, mas o nome da amada do poeta nunca é mencionado directamente, sendo substituído por nomes convencionais da literatura popular, geralmente Maria e Rosa. As recordações da infância como de um período feliz na vida do poeta também estão presentes no conteúdo dos poemas. Uma das priomeiras quadras em que Pessoa declara que gosta mais da mãe do que das terras em que nasceu são muito características para este autor.  Há também quadras com os temas filosóficos e metafísicos (o tempo, a verdade, a mentira, o questionamento da vida eterna da alma no “Além”, momentos em que é visível o agnosticismo de Pessoa (quando Deus é tratado como “Rei de cousa nenhuma”.  A religiosidade  em Pessoa reduz-se a algumas menções de igreja, oração, romaria e Deus, que são mais mogtivos convencionais das cantigas populares, e especialmente as do ambiente rural, do que qualquer reflexo dos sentimentos e convicções de Pessoa. A política também não ocupa demasiado a atenção deste autor, uma vez que é conhecido que ele nunca fez parte de nenhum partido político português. A solidão do indivíduo entre muitas pessoas no baile também é um pequeno reflexo dos temas que preocupam o poeta. Encontra-se também glorificação da palavra “saudade” “ que só os portugueses têm”, e nesse ponto de vista Pessoa concorda com Jaime Cortesão (1914) que destaca que esta palavra é “tão genuinamente nossa”.  Salientam-se a melancolia, o pessimismo e um determinado fatalismo nos Portugueses, que são comparados com os barcos que estão feitos para naufragar. E. M. De Melo e Castro (1980:46) afirma que “ Fernando Pessoa  viria a acrescentar uma dimensão interiorista e mental.” Enquanto na poesia popular é notável a presença de um tu, as quadras de Fernando Pessoa têm um cariz mais introspectivo e virado para o íntimo do poeta. Por isso, não é de extranhar que Richard Zenith (2006) tenha colocado as Quadras dentro da colectânea intitulada como A Poesia do Eu.  Nesse eu complexo do poeta reflectem-se algumas das questões que inquietavam o autor das quadras: conhecer-se ou não a si próprio, pensar sobre a posição do indivíduo no mundo, o sentido da vida. Saraiva e Lopes (2001:1046) destacam que a poesia de Pessoa é uma “poesia inquisitiva” em que se reflecte a dialáctica entre dizer a verdade e fingir, sendo na sua opinião o fingimento no caso de Pessoa admitido e necessário tanto psicologica como socialmente. Traços desta dicotomia reconhecem-se também nas quadras, quando a pena do poeta escreve levemente as mentiras e falta-lhe tinta para escrever a verdade,

Conclusões

Contrastando o Cancioneiro Popular Portuguez organizado por Teófilo Braga e as Quadras de Fernando Pessoa encontrámos alguns aspectos semelhantes tanto na forma como no conteúdo, o que apenas confirmou a hipótese de que a literatura popular e a erudita não são absolutamente opostas e que servem para se complementarem e apoiarem uma na outra. A leitura das Quadras pessoanas colocou muitas questões como por exemplo: em que medida elas podem ser consideradas “populares”? Serão elas apenas “popularizantes”, como na expressão de José de Almeida Pavão Jr. (1991)? O povo pode realmente gostar das quadras “ao gosto popular? Podem ser usados os temas filosóficos numa forma métrica popular? Fernando Pessoa respondeu positivamente a algumas destas dúvidas com o virtuosismo de um grande poeta e conhecedor da língua e cultura portuguesa. Lendo tanto as cantigas populares coligidas por Teófilo Braga como as da autoria de Pessoa, embora as u´ltimas fossem consideradas uma obra de modesta qualidade, aprendemos que nenhuma criação literária deveria ser desvalorizada, porque cada obra tem algo com que se pode aprender. E nisso reside a beleza e a grandeza tanto das criações anónimas como da literatura dos autores que fazem parte do cânone de uma literatura e cultura.

 

 

Bibliografia
a) Obras poéticas consultadas:

BRAGA, Theóphilo (1911) Cancioneiro Popular Portuguez 1,2. J.A. rodrigues & C.ª, Lisboa

PESSOA, Fernando (1979) Quadras ao Gosto Popular, texto estabelecido e prefaciado por Georg rudolf Lind e Jacinto de Prado Coelho, Edições Ática, Lisboa

_________________ (1997) Quadras e Outros Cantares, Editora literária teresa Sobral Cunha, Relógio d´ Água, Lisboa

________________ (1997) Quadras,Vol. I, edição de Luís Prista, imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa

___________________ (2008) Poesia do Eu, Edição de richard Zenith, Assírio& Alvim, Lisboa

 

b) Dicionários:

CASTELEIRO, João Malaca  (coord.) (2001) Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa (vol. I) Editorial Verbo, Lisboa, p.673

GARCÍA, Constantino,  (org.) (1998) Diccionario de Termos Literarios, Xunta de Galicia, Cograf, santiago de Compostela, pp.268-269

MARTINS, Fernando Cabral, (2008) Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Caminho, Lisboa, pp. 689-691

c) Obras teóricas:

 

BRAGA, Theóphilo (1902) Historia da Poesia Popular portugueza, As Origens, 2 vols, Manuel Gomes Editor, Lisboa

_________________ (1994) O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, vol, I, prefácio de Jorge Freitas Branco, Publicações Dom Quixote, Lisboa

CASTRO, e. M. Melo de (1980) As Vanguardas na Poesia Portuguesa do Século XX, instrituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa

­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­__________________ (2005) História da Literatura Portuguesa (Recapitulação), Idade Média, vol I, Imprensa Nacional- casa da moeda, Lisboa, pp.7-152

CORTESÃO, Jaime (1914) Cancioneiro Popular, Antologia precedida de um Estudo Crítico,Renascença Portuguesa, Porto

­­­­_________________ (1942) O que o Povo Canta em Portugal, Livros de Portugal, Rio

de Janeiro

GIUERREIRO, Manuel Veigas  (coord.) (1992) Literatura Popular Portuguesa, Teoria da Literatura Oral /Tradicional/Popular, ACARTE,  Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pp. 5-7, 101-129,191-239

LIMA, Fernando de Castro Pires (1962) Cancioneiro, Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, Lisboa

NUNES, Maria Arminda Zaular (1978) O Cancioneiro Popular em Portugal, Instituto de Cultura Portuguesa, Lisboa

SARAIVA, António José, LOPES, Óscar (2001) História da Literatura Portuguesa, Porto editora, Porto, pp.1039-1055

VASCONCELLOS, José Leite de (1890) Poesia Amorosa do Povo Português, Viúva Bertrand e Cª , Sucessores Carvalho & Cª , Lisboa

d) Bibliografia consultada embora não directamente referida:

ANASTASÍA, Luis Víctor (1996) Fernando Pessoa: Pensamiento Estético, Poético, Histórico y Político,El Hilo en el Laberinto, Montevideo

PANERESE, Luigi (1967) Poesie di Fernando Pessoa, Lerici Editori, Milano,