POSITIVISMO JURÍDICO E NAZISMO: A SUPERAÇÃO DO MITO

 

Charles Nunes Bahia

Advogado; graduado em Direito pela PUC Minas

 

 

 

RESUMO:

O fim da Segunda Guerra Mundial significou uma total ruptura com o Positivismo jurídico, considerado o grande responsável por dar legitimidade às atrocidades do Nazismo. Destarte, ensejando desmistificar tais acusações, busca o presente artigo afastar essa inconsistência fática, demonstrando que o viés teórico positivista jamais teria o condão de desencadear regimes totalitários.

PALAVRAS CHAVE: Positivismo jurídico. Jusnaturalismo. Nazismo.

ABSTRACT:

The end of World War II meant a complete rupture with legal positivism, considered largely responsible for giving legitimacy to the atrocities of Nazism. Thus, allowing for demystifying such accusations, search this Article, to away this inconsistency factual, showing that the positivist would never have the power to trigger totalitarian regimes.

KEYWORDS: Legal Positivism. Natural Law. Nazism.

 

SUMÁRIO: 1- Considerações iniciais; 2- O grande vilão; 3- Uma absolvição necessária; 3.1- O relativismo filosófico; 3.2- A Definição pela forma; 3.3- Evidências histórico-políticas; 4- Conclusão.

 

1 - Considerações iniciais:

            A História jamais teria se arquitetado sem que fossem reconhecidas em suas páginas as identidades dos heróis e dos vilões como personagens singulares e indispensáveis. Talvez, em todas as esferas do conhecimento a verdade venha mascarada por esses antagonismos, que se mostram como a propulsão necessária à aceitação de determinada crença como válida no âmago da sociedade. No campo do direito, o papel de vilão coube ao Positivismo Jurídico, que ainda permanece irremediavelmente injustiçado pelos estereótipos que duramente lhe foram impostos.

            O século XX, submerso nas atrocidades das duas Grandes Guerras, procurava respostas acalentadoras ao espetáculo do terror que havia recaído sobre a Europa. O repertório de barbáries legitimado por regimes totalitários – em especial o Nazista - havia dado cabo a todas as liberdades fundamentais até então alcançadas. As causas da existência de um poder desmedido e cruel enxergavam no direito um forte aliado, capaz de justificar o surto de desumanidade que assolava o Velho Continente. Necessitavam de um bode expiatório sobre o qual recaísse toda a responsabilidade e, por isso, foram categóricos em suas afirmações aqueles que atribuíram toda a culpa ao Positivismo Jurídico, que por supostamente transformar o juiz em escravo da lei, teria abdicado de qualquer possibilidade de exercício de um direito de resistência frente às injustiças atentadas. Sob esse prisma, o legalismo seria equivocado e profundamente corruptor do Império do Direito[1].

A ideia positivista de definição do direito pela forma se tornou o centro dos ataques teoréticos no pós-guerra, momento em que o direito alemão, carente de identidade, estava à procura de um referencial teórico que servisse de alicerce às truculências nazistas. Passaram, então, a agredir o modelo formalista do direito, afirmando que o seu caráter neutro, tendente a excluir a moralidade do campo normativo, teria sido complacente com o extermínio dos judeus durante a Segunda Grande Guerra[2]. Esse seria, pois, o baluarte às críticas da filosofia jurídica alemã que há pelo menos cinquenta anos rejeitam e condenam o positivismo jurídico[3].

As acusações de que o juspositivismo, ao utilizar-se de um critério estritamente formal teria dado exagerado valor às leis, chegou a tal ponto que até mesmo Kelsen - o mais importante jurista do século XX, judeu e perseguido pelo regime nacional-socialista – passou a ser acusado de ter escrito uma teoria para o Nazismo, dada a redução que fizeram de sua obra a um estrito dever de obediência ao direito positivo, como se fosse um reflexo chinfrim do mais puro legalismo.

Diante de tais críticas, mostra-se profícuo e um tanto quanto justo refutar tais acusações, esclarecendo-se que as imputações das atrocidades do Nazismo ao positivismo e ao subjetivismo jurídico se baseiam em frágeis premissas[4] e que, os argumentos que conduzem o Positivismo Jurídico à inquisição, como o grande herege do século XX, são apenas falácias não fundamentadas e incoerentes, uma vez que tal corrente jamais poderia ter servido de suporte à malfadada ideologia, dada a sua postura relativista, que tem como pressuposto a não aceitação da existência de uma verdade única, universal e absoluta, de valores universais e absolutos[5].

Ainda em defesa do viés juspositivista, será demonstrado que o jusnaturalismo - defendido por aqueles que veem no direito natural o renascimento de pressupostos éticos e ideais de justiça - possui uma forte tendência ao absolutismo filosófico, e ainda, que estudos históricos evidenciam que o nacional-socialismo era antipositivista. A própria literatura jurídica da era nazista deixava transparecer tal aversão ao positivismo, ao afirmar que o "juiz-rei do povo de Adolf Hitler deveria libertar-se da escravidão da literalidade do direito positivo” [6].

2 - O grande vilão:

 

            O mundo pós 1945 revelava uma Europa destroçada pela beligerância impetuosa das potências imperialistas. O retrato da devastação, gerador de um sentimento de justiça, almejava identificar dentre os vencidos, os culpados, sobre os quais recaíssem as merecidas sanções. Nesse contexto, a Alemanha passou a ocupar o banco dos réus, aguardando um julgamento nos moldes do estabelecido no Tratado de Moscou, assinado pelos vencedores em 1943:

“Ao estabelecer um armistício com qualquer governo que possa ser constituído na Alemanha, os oficiais e praças alemães e membros do partido Nazista que sejam responsáveis pelas atrocidades, massacres e execuções descritas acima ou nelas tomaram parte consentânea, serão reconduzidos aos países onde seus abomináveis atos foram cometidos, a fim de que possam ser julgados e punidos conforme as leis desses países libertados e dos governos livres que ali sejam estabelecidos.” (MARRUS, 1997, p. 20)

            Essa supramencionada passagem obviamente prenuncia a instauração do Tribunal de Nuremberg, como uma corte de exceção capaz de representar a vontade dos povos. Todavia, o grande problema gerado no julgamento de oficiais nazistas por esse órgão, consistiu no fato de que as atrocidades cometidas em nome do nacional-socialismo realizaram-se sob o pálio da lei, o que evidenciava um estrito cumprimento das obrigações do Estado. Essa situação de impasse, que prenunciava a impunidade dos culpados, recaiu sobre o positivismo jurídico, que desde então, passou a ser vislumbrado como sinônimo da mais profunda descrença.

            O modelo positivista, defendido por importantes teóricos do século XX, almejava alcançar uma definição do direito pela forma, o que na visão dos antipositivistas consubstanciava-se como um fator de identificação com o Nazismo, tendo em vista que esse formalismo não daria margem à discussão do conteúdo da norma, atribuindo um valor exagerado à legislação positiva. Sob esse prisma, as leis de Nuremberg teriam sido válidas nos moldes do ordenamento alemão vigente ao tempo do regime nazista. Na visão de Luís Roberto Barroso:

“Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido.” (BARROSO e BARCELLOS, apud LEITE, 2003, p. 107)

            De fato, a Segunda Grande Guerra significou uma ruptura radical com o positivismo jurídico, renegando-se teorias que até então tinham servido de alicerce para o direito. A mais importante obra de Kelsen, intitulada Teoria Pura do Direito, foi colocada em evidência como o pivô de legitimação do Nazismo, uma vez que sob a concepção kelseniana não haveria como conceber uma norma em conformidade com a justiça, por ser esta variável de acordo com os indivíduos ou grupos interessados. Uma conduta estaria, portanto, em conformidade com a norma posta, com um dever ser, não havendo normas justas ou injustas, mas válidas ou inválidas[7]. 

            Na visão de Kelsen, o fundamento de validade do direito estaria na hierarquia normativa, havendo a subordinação de normas inferiores a outras superiores, o que na visão antipositivista afastaria qualquer possibilidade de que fosse vislumbrado determinado conteúdo valorativo dentro do ordenamento jurídico. Sendo assim, a Lei do Reich seria legítima, por derivar de uma estrutura estatal que validaria tal legislação positiva dentro da mais estrita legalidade. Sob essa ótica, seria inegável a contribuição kelseniana à manutenção do totalitarismo:

"Segundo o Direito dos Estados totalitários, o governo tem poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é considerá-las como fora da ordem jurídica desses Estados". (KELSEN, 1996, p.44)

Resta evidente, desse modo, que o ataque proferido contra positivismo jurídico traz ao campo de batalha a ideia de que uma norma injusta jamais pudesse ser cumprida, tendo em vista que nem mesmo o Estado teria legitimidade para ordenar atos que atentassem contra a humanidade.

Ainda nesse cenário, em que o direito se encontrava envolto por contornos de uma beligerância ideológica, ganha destaque a imagem de Gustav Radbruch, importante jurista alemão que antes de 1946[8] tinha na segurança jurídica proposta pelo positivismo o valor por excelência do direito, e que mais tarde, ao se deparar com os estragos deixados pela Segunda Grande Guerra teria mudado sua visão e passado a defender, nos casos de extrema injustiça, a justiça e não a segurança[9] como valor supremo do Estado.

Em Cinco Minutos de Filosofia do Direito, Radbruch descreve sua impressão do positivismo jurídico por meio da seguinte metáfora:

 “Ordens são ordens, é a lei do soldado. A lei é a lei, diz o jurista. No entanto, ao passo que para o soldado a obrigação e o dever de obediência cessam quando ele souber que a ordem recebida visa a práctica dum crime, o jurista, desde que há cerca de cem anos desapareceram os últimos jusnaturalistas, não conhece excepções deste género à validade das leis nem ao preceito de obediência que os cidadãos lhes devem. A lei vale por ser lei, e é lei sempre que, como na generalidade dos casos, tiver do seu lado a força para se fazer impor. Esta concepção da lei e sua validade, a que chamamos Positivismo, foi a que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas. Torna equivalentes, em última análise, o direito e a força, levando a crer que só onde estiver a segunda estará também o primeiro”. (RADBRUCH, 1974, p. 415)

        

            Contrapondo-se às teorias positivistas, por considerá-las omissas a uma valoração jurídica concernente ao conteúdo das normas, baseadas no uso da força para dar legitimidade ao direito, Radbruch desenvolve uma teoria de proteção aos direitos fundamentais, conhecida como fórmula de Radbruch[10], direcionada a resolver o conflito entre segurança jurídica e justiça, de forma que se deixasse aberta a possibilidade de “se admitir a existência de ‘leis que não são Direito’, por conterem injustiça, e de ‘Direito por cima das leis’, assim os chamados Direitos Humanos. Desse modo, renegado estaria o lema segundo o qual ‘antes de tudo as hão de cumprir as leis’, que propiciara a Adolf Hitler a criação e manutenção da mais terrível ditadura legal de nossos tempos”[11].

            A visão de Gustav Radbruch não era outra senão a de superação do positivismo jurídico, que passava a ser concebido como protagonista das atrocidades que assolaram a Europa na primeira metade do século XX. Nas palavras desse douto jurista alemão, é constatada a sua afeição ao jusnaturalismo que se instaurava:

 

“No deben pasarse por alto – precisamente después de esos doce años – las terribles consecuencias que puede traer consigo, para la seguridad jurídica, el concepto de arbitrariedad legal, y la negación de la naturaleza de derecho de las leyes positivas. Nosotros debemos esperar que um derecho semejante permanecerá como un irrepetible extravio y una confusión del pueblo alemán, pero para todos los casos posibles nos hemos armado com la superación fundamental del positivismo, que debilitó toda la capacidad defensiva frente alabuso de la legislación nacionalsocialista, a fin de evitar el regreso de un Estado de ilegalidad semejante.” (RADBRUCH, 1992, p. 37-38)

            Tais acusações ainda hoje assombram o juspositivismo, que vem tentando se recompor de duras críticas. Doravante, faz-se necessário mitigar tamanho peso, desmentindo disseminadas ideias, como aquela de que “não há outro critério do justo e do injusto que não seja a vontade do soberano”[12]. Destarte, afastar a enfadonha falácia de que a sociedade teria vivido “por longos e longos anos, sob o quarto escuro e empoeirado do positivismo ju­rídico, sob a ditadura dos esquemas lógico-subsuntivos de interpretação”[13], se mostra medida obrigatória, afinal, esse legalismo estrito há muito já se encontra superado.

3 - Uma absolvição necessária:

O direito natural renascia no Velho Continente como uma alternativa desesperada para fundamentar uma ordem jurídica livre de injustiças, tendo em vista que já se encontrava consagrada a visão deturpada do positivismo jurídico associado ao nacional-socialismo. Todavia, essa proposta de superação filosófica se baseava em argumentos infecundos, repetindo-se acusações pouco fundamentadas e reduzidas a mais pura retórica.

Não há que se discordar de que “dita perspectiva tenha tido início na própria Alemanha, onde uma gama de juristas, perplexos com os horrores do Nazismo, teria precipitado em concluir que havia leis injustas e que, tendo as mesmas sido aplicadas, só poderia isto ser uma decorrência da oposição entre direito positivo e direito natural — com o triunfo do primeiro sobre o segundo”[14]. Fato é, que ao contrário do que se pensa, as atrocidades cometidas pelo Estado Alemão não foram praticadas por total e irrestrita obediência à lei, uma vez que os elementos quem compõem a estrutura positivista jamais conseguiriam justificar as ordens arbitrárias que se impunham para a instauração definitiva dessa estrutura estatal totalitária fundada no terror[15]. Assim, para afastar esse complexo e desarranjado emaranhado de ideias, faz-se necessário expor duas importantes características juspositivistas e algumas evidências histórico-políticas, que servirão de álibi para eximir de culpa inocente “vilão”.

3.1 O Relativismo filosófico:

 

            A aceitação de valores absolutos na construção do direito de determinada sociedade, pressupõe a concepção de verdades que independem da experiência, fundamentando-se em uma realidade a priori. Como o positivismo jurídico “se caracteriza pela negação do direito natural e pelo apego ao direito que se dá na experiência”[16], sua inclinação é oposta, de cunho relativista, coroada pelo mais puro ceticismo.

            O relativismo filosófico se propõe em separar realidade e valor, promovendo uma distinção entre proposições realísticas e juízos de valores genuínos que, em última instância, não são baseados em um conhecimento racional da realidade, mas nos fatores emocionais da consciência humana, nos desejos e temores do homem[17]. No campo jurídico, a tese relativista afastou da ciência do direito “quaisquer considerações sobre a legitimidade do direito, restando o papel descritivo, que considera apenas a validade de determinada norma ou de determinado ordenamento”[18]. Sob esse diapasão, não poderia um ordenamento normativo exprimir qualquer valor, o que evidentemente contraria a estrutura valorativa absoluta vigente ao tempo do Nazismo.

            Ao adentrar na essência do positivismo jurídico, se torna claro que esse relativismo filosófico é o mesmo “que governa todas as concepções kelsenianas”[19]. A própria cisão entre direito e moral deriva de uma postura relativista que nega a existência de uma moralidade absoluta capaz de justificar o direito[20]. Na visão de Kelsen, o racionalismo axiológico decorrente da razão humana submetida a um processo de aculturação, torna os valores relativos, isso porque inexiste uma autoridade transcendental capaz de justificar uma valoração absoluta conforme critérios neutros. Desse modo, “se não existem valores absolutos, consequentemente não pode haver conhecimento destes valores absolutos e ao jurista cabe apenas descrever as normas sem emitir qualquer juízo de valor sobre seu conteúdo”[21].

            A ideia de que exista uma valoração absoluta sobre a qual se fundamenta determinado sistema político, estampa na ordem normativa um conteúdo emocional que lhe retira a neutralidade, abrindo-se precedentes para que o direito se estabeleça não só pelos fundamentos da lei, mas pelo sentimento do povo[22], o que conduz ao risco de que a sociedade se torne vulnerável ao fortalecimento de regimes despóticos, autocratas, cerceadores das liberdades individuais e opostos à égide democrática. Sob esse prisma, a autocracia seria o absolutismo político, encontrando paralelo no absolutismo filosófico, enquanto a democracia seria o relativismo político, tendo sua contraparte no relativ­ismo filosófico[23].

            Na democracia, o relativismo filosófico possibilita que o indivíduo participe do processo de conhecimento que conduz à criação de uma ordem jurídica democrática. Para Kelsen:

“O Processo de dominação não é tão diferente do processo de conhecimento, através do qual o sujeito, ao instaurar alguma ordem no caos das percepções sensoriais, tenta dominar o seu objeto; e não está muito longe do processo de avaliação, através do qual o sujeito declara que um objeto é bom ou mau, colocando, assim, o mesmo em julgamento. É exatamente na esfera da epistemologia e da teoria dos valores que se situa o antagonismo entre absolutismo filosófico e relativismo filosófico, o qual – tentarei demonstrar – é análogo ao antagonismo entre autocracia e democracia enquanto representantes, respectivamente, do absolutismo político e do relativismo político.” (Kelsen, 2000, p. 16)

A diferenciação entre o absolutismo filosófico e o relativismo filosófico demonstra que o conceito de direito pautado em uma valoração absoluta apresenta forte inclinação ao totalitarismo, isso porque todos “aqueles que creem na verdade absoluta e num conceito de justiça universal­mente aceita têm a tendência de as impor, com o agravante de terem certeza de estarem fazendo um bem”[24]. Do lado oposto, o racionalismo positivista assume uma postura estritamente relativista e cética em relação às verdades absolutas, traço peculiar que evidentemente o desvincula de qualquer liame com o nacional-socialismo.  

3.2 A definição pela forma:

A confusão gerada entre os requisitos de validade da norma e os requisitos de validade do sistema, sustenta a argumentação acusatória que recai sobre o juspositivismo. Por esse motivo, cabe esclarecer que de fato, sob o viés positivista (kelseniano), a satisfação do requisito de validade normativa conduz à aceitação de determinada norma como válida dentro do ordenamento jurídico. O erro, todavia, está em não se observar que o sistema exige a eficácia normativa como requisito de aceitação dessa mesma norma por todos aqueles que a ela estão submetidos. Nesse sentido, assim se manifesta Rinck:

“A norma possui validade independentemente da aceitação ou não do comportamento humano; já o sistema somente será válido se possuir eficácia, ou seja, se for aceito pelos indivíduos, membros da comunidade. Assim, quando críticos do positivismo kelseniano afirmam que a teoria da validade proposta pelo jurista austríaco possibilita justificar um sistema jurídico de um regime político ditatorial, como o do nazismo, por exemplo, equivocam-se ao interpretar o conceito de validade de Kelsen. O sistema normativo do nazismo foi válido porque os indivíduos daquele sistema aceitaram e se comportaram em conformidade com os mandamentos do sistema seja por livre concordância ou pela imposição da força do sistema”. (RINCK, 2007)

Uma vez corrigida essa desordem interpretativa, fica evidente a disparidade entre o positivismo e um totalitarismo que prega a reinterpretação do direito com referência a valores nacionalistas e racistas, rejeitando a visão positivista de segurança jurídica[25] e confundindo o conceito de forma. Nessa mesma linha de entendimento, assim esclarece Machado:

“(...) há de se ter em conta que o positivismo, dada a sua postura cientificista, não diz que o Direito deve ser definido pela forma. O caminho é inverso. Explica-se: é da observação de como o Direito funciona em diversos Estados e situações, inclusive em estados totalitários já que os regimes nazista e fascista não foram os primeiros e infelizmente também não os últimos deste tipo, que se tira a conclusão que o Direito se define, de fato, pela forma.” (MACHADO, 2008, p. 334)

Não restam duvidas, portanto, de que o Nazismo tenha vigorado porque o povo alemão aderiu às prescrições desse regime. Sendo assim, fica comprovado que as acusações imputadas ao positivismo não passam de meras falácias construídas na desordem interpretativa que se estabeleceu em torno do conceito de formalidade proposto pelos positivistas.

3.3 – Evidências histórico-políticas:

O equívoco da perspectiva antipositivista é confirmado no curso da própria história, tanto é que o nacional-socialismo, longe de ter se concebido a partir de uma legislação substancial, ergueu-se nos moldes de um movimento contra legem, projetando-se contra direitos fundamentais e impondo uma posição de subordinação das leis aos interesses do Reich[26]. Na visão de Bobbio, “a ideologia jurídica do nazismo era nitidamente contrária ao princípio juspositivista, segundo o qual o juiz deve decidir exclusivamente com base na lei, sustentando, ao contrário, que o juiz devia decidir com base no interesse político do Estado”[27]. Assim, ainda que a filosofia do direito alemã estivesse majoritariamente passiva diante do fenômeno totalitário, não se pode dizer que tenha havido uma cooperação por parte do positivismo[28]. O fundamento jurídico nacional-socialista é bem anterior à própria ascensão do regime e remonta a um período em que “os juízes sentiram-se afrontados não só socialmente como funcionalmente, reagindo com irritação à exigência de atuarem como meros ‘serviçais das normas’”[29].

O formalismo jurídico foi o grande responsável por frear o autoritarismo judicial que até então existia no direito alemão, pois deu margem à criação de um referencial teórico limitador do arbítrio dos juízes. Todavia, a insatisfação por parte da classe dos magistrados mostrou-se evidente e, nas chamadas “Cartas aos Juízes”[30], ficou óbvio o descontentamento com o sistema jurídico, ganhando força a afirmação de que o juiz não necessitaria “derivar a legitimação de suas decisões das leis vigentes”[31]. Paralelamente, a pretensão do nacional-socialismo em construir uma sociedade pautada em valores unitários e absolutos, também fez manifestar uma espécie de “autoconsciência da Justiça alemã, materializada na declaração de ‘total fidelidade’ a Hitler por parte da direção da Associação dos Juizes”[32].

As ambições do regime nazista, sustentadas na ideia de um sistema jurídico no qual prevalecesse o sentimento popular como um valor superior ao estrito cumprimento do dever legal, eram totalmente contrárias aos dogmas do positivismo. Na visão de Maus:

“O antipositivismo e o antiformalismo primários da doutrina nazista corresponderam à lógica de tais descrições funcionais. A aplicação correta do recém-criado direito nazista — supondo que este contivesse ainda ‘diretivas’ aplicáveis à Justiça — teria representado somente um obstáculo menor ao desenvolvimento do terror judicial do sistema nazista. Discriminações motivadas politicamente no tratamento de cada caso singular, como as que foram então exigidas, não são compatíveis com a vinculação a uma ‘lei’ qualquer, a qual esteja em vigor por um espaço mínimo de tempo. Deste modo, aparece nas ‘Cartas aos Juízes’ nacional-socialistas, com grande coerência, a personalidade dos juízes como uma importante garantia para a ‘correta’ jurisprudência, cujas tarefas só poderiam ser executadas por seres humanos livres, dignos, dotados de clareza interior, portadores ao mesmo tempo de um grande senso de responsabilidade e de satisfação na execução desta; a magistratura deveria representar a ‘elite nacional’”. (MAUS, 2000, p. 197)

            A pretensão de que fossem estabelecidos valores unitários e absolutos chocava-se com o relativismo filosófico pilar do positivismo jurídico. De modo diverso, a ideia de absoluto se mostrava bem mais próxima dos valores propostos pelo jusnaturalismo[33], tanto é que as supressões de determinadas garantias fundamentais durante o Terceiro Reich encontraram justificativas em um direito natural superior ao próprio Estado.  

O banco dos réus superlotava a consciência alemã pós-1945, fato que rapidamente desencadeou uma reconstrução do passado de forma a promover uma distorção fática dos reais acontecimentos. Para Maus, a esse período de restruturação dos valores:

“(...) restou o poder de reelaborar o próprio passado, de tal forma que lhes foi possível invocar a mesma doutrina jurídico-positivista de interpretação do direito, combatida por eles de 1933 a 1945 em seu potencial supostamente destruidor da governabilidade, contrapondo-a depois de 1945 à submissão da Justiça no regime nacional-socialista. Desta forma tornou-se mais fácil justificar o domínio da doutrina antiformalista com o ‘recomeço do Estado de direito’". (MAUS, 2000, p. 198-199)

            Fica claro, portanto, que os defensores do jusnaturalismo moderno, ao imputarem o peso da culpa ao juspositivismo, ignoram “o fato elementar de que a realização do poder do Estado [durante a vigência do regime nacional-socialista] não dependeu de modo algum de normas de autorização”[34]. Sob esse prisma, a memorável discussão travada entre Carl Schmitt e Hans Kelsen, a respeito do controle de constitucionalidade das leis, corrobora tal inclinação à ausência de subordinação normativa na qual se fundamentou o regime nazista.

 

Conclusão:

Os destroços deixados ao fim da Segunda Guerra Mundial fizeram com que o direito se tornasse principal instrumento na busca de justificativas ao terror instaurado. Na Alemanha, juristas passaram a pensar um novo referencial teórico que condenasse a barbárie que havia assolado o Velho Continente, momento em que optaram por despertar um jusnaturalismo considerado adormecido durante toda a primeira metade do século XX. Para tanto, atribuíram ao formalismo jurídico que dava alicerce às teorias positivistas, a responsabilidade pela ascensão e manutenção do totalitarismo, uma vez que o caráter formal do direito permitiria legitimar qualquer vontade política. Assim, os antipositivistas abrolharam como defensores inveterados dos valores da justiça, vertendo sobre o juspositivismo todo o peso de um retrocesso teórico ortodoxo.

As críticas em torno do positivismo apelam ao Nazismo, justificando os horrores praticados pelo nacional-socialismo na mais pura redução ao legalismo. Sob essa ótica, a aplicação mecânica das leis do Terceiro Reich, atrelada à definição do direito pela forma, como capaz de dar legitimidade às normas injustas, teria permitido a manutenção do partido nacional-socialista no poder, o que se revela como infeliz acusação, tendo em vista que a redução do papel do magistrado à aplicação normativa mediante o critério da subsunção, já se mostrava deveras superada, não tendo sido abraçada por nenhum dos teóricos positivistas contemporâneos ao regime nazista.

As evidências históricas claramente demonstram que as grandes modificações perpetradas pelo Nazismo basearam-se em maior medida em argumentos que evocavam valores suprapositivos, tendo em vista que o Estado alemão encontrava-se diante de um típico regime de exceção, com a suspensão da ordem jurídica e sua substituição pelo comando do Terceiro Reich. Esse ambiente se mostrava completamente hostil às teorias juspositivistas que, defensoras de um relativismo filosófico, negavam a existência de verdades absolutas.

A figura de um déspota impondo um conceito de justiça por meio de deveres e obrigações também se mostra verdadeira afronta aos ideais positivos. Cabe lembrar que para Kelsen, a subjetividade do conceito de justiça não permite que o mesmo seja utilizado como critério de validade de uma norma dentro do ordenamento jurídico, já que este exige uma segurança jurídica necessária, que por sua vez, é avessa à manutenção de qualquer Estado Totalitário.

As acusações imputadas ao positivismo jurídico são deveras levianas, injustificadas e superficiais. De fato, o totalitarismo se valeu de determinados pressupostos positivistas para perpetrar barbáries, todavia, nesse rol de culpas e imputações, exerce o jusnaturalismo maior destaque, até porque sua tendência à valoração absoluta encontra laços mais estreitos com os sistemas ditatoriais.  

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[1]DWORKIN, Ronald. A Matter of principle (1985:115).

[2]DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico (2006:257).

[3]HOERSTER, Norbert. Em defensa del positivismo jurídico (1992:9).

[4]ZAGREBELSK, Gustavo. El derecho dúctil – Ley, derechos, justicia (2008:72).  

[5]MACHADO, Roberto Denis. Das críticas e dos preconceitos ao positivismo jurídico (2008:347).

[6]MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade (2000:197).

[7]MUNHOZ, Wellington Daniel. A Teoria Pura do Direito e a Lei da Cidadania do Reich.

[8]Em 1946, Radbruch publica Umrecht und Übergesetzliches Recht, obra que evidencia a inclinação desse jurista ao jusnaturalismo.

[9]Para mais informações ver: Gesetzliches Umrecht und Übergesetzliches Recht, traduzido em uma edição brasileira por: Leis que não são direito e direito acima das leis, Justitia,1976, p. 155-163.

[10]A fórmula de Radbruch estabelece que no conflito entre justiça e segurança jurídica, tem preferência primeiramente o direito positivo, ainda que seu conteúdo seja injusto. Todavia, se a injustiça praticada for extrema, a justiça prevalecerá sobre a segurança jurídica.

[11]VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica (1996:253-254).

[12]HOBBES, apud BOBBIO. In: Teoria da norma jurídica (2012:61)

[13]SCHIER, Paulo Ricardo. Novos desafios da filtragem consti­tucional no momento do neoconstitucionalismo. (2007:253).

[14]FONTOURA, João Fábio Silva da. Positivismo jurídico e pós-positivismo à luz da metódica estruturante. (2009:50).

[15]NEUMANN, apud FONTOURA. In: Positivismo jurídico e pós-positivismo à luz da metódica estruturante (2009:51).

[16]GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito em Kant e Kelsen (2004:24).

[17]MACHADO, Roberto Denis. Das críticas e dos preconceitos ao positivismo jurídico (2008:335).

[18]GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito em Kant e Kelsen (2004:278).

[19]GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito em Kant e Kelsen (2004:276).

[20]A submissão do direito à moral, ao contrário do que se pensa, era quase unânime entre juristas nazistas, que viam na moralidade a vontade do povo alemão refletida nos interesses do partido nacional-socialista.

[21]GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito em Kant e Kelsen (2004:219).

[22]HART, Herbert L. A. Law, Liberty and Morality (2002:12).

[23] KELSEN, Hans. A Democracia (2000:353).

[24]MACHADO, Roberto Denis (2008:337).

[25]Mais informações In: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006.

[26]FONTOURA, João Fábio Silva da. Positivismo jurídico e pós-positivismo à luz da metódica estruturante (2009:51).

[27] BOBBIO, Norberto. Positivismo Jurídico - lições de filosofia do direito (1995:236).

[28]KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história (2002:123-124).

[29] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade (2000:195)

[30]“Cartas distribuídas pelo Ministério da Justiça a partir de 1942 — na condição de protetor dos valores de um povo [...] e aniquilador dos falsos valores; o povo torna-se ‘unidade’, ‘verdadeiro’ povo, objeto da representação e produto da atividade decisória judicial” (MAUS, 2000, p. 197).

[31]MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade (2000:197)

[32] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade (2000:197). Tal declaração data de 19 de março de 1933 e reivindica o papel decisório do juiz, que por ser consciente e nacionalista, estaria apto a decidir conforme a própria consciência.

[33]KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história (2002:123-124).

[34] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade (2000:199)