Ao participar do Simpósio Internacional Porto do Rio Grande: história e cultura portuário, comemorativo ao Bicentenário da Abertura dos Portos e do centenário do início das obras do Porto e da Barra do Rio Grande, observei a ampla possibilidade de estudos que podem ser desenvolvidos sobre o tema. Minha breve experiência servindo no Museu Histórico da Cidade do Rio Grande tem servido para verificar o grande repositório documental que o mesmo representa a respeito dos mais variados assuntos envolvendo aspectos diversos da cidade. A partir daí, realizei um levantamento de parte do acervo do Museu que dizia respeito à temática do Porto e da Barra do Rio Grande, principalmente no que se referia à construção do Porto Novo e dos molhes da Barra[1].

A documentação levantada concentrou-se no acervo iconográfico do Museu, mais especificamente do fotográfico, levando em conta principalmente dois dos trabalhos desenvolvidos naquele evento e publicados em seus Anais, um sobre a questão portuária a partir da iconografia (ALVES, 2008, p. 123-140) e outro que diz respeito à utilização da fotografia como fonte histórica para o estudo do mesmo tema (SENNA, 2008, p. 79-89). Nesse sentido, a imagem representa uma documentação histórica de fundamental importância, pois revela aspectos que muitas vezes não são destacados nos documentos escritos e o Museu Histórico rio-grandino possui uma notável coleção de fotografias que dão grande destaque à formação histórica da cidade.

A criação do Museu da Cidade do Rio Grande foi promovida pela Fundação Cidade do Rio Grande, instituição que tem se dedicado fortemente à promoção cultural em meio à sociedade rio-grandina. Em fevereiro de 1984, reunido o Conselho Diretor da citada Fundação, foi tratado o assunto sobre o Museu, que seria criado a partir de uma atividade integradora da qual participariam, além da própria Fundação, o Executivo Municipal, a Mitra Diocesana e as Empresas Petróleo Ipiranga, além da Superintendência da Receita Federal, que se propôs a ceder parte do prédio da Alfândega local, na época em fase de restauração. Nessa ocasião, por já estar estruturada e em plena atividade, a Fundação Cidade do Rio Grande assumiria a responsabilidade da estruturação, administração e manutenção do referido Museu[2].

Em homenagem ao 247º aniversário de fundação da cidade do Rio Grande, aos 19 de fevereiro de 1984, na Praça Xavier Ferreira, junto do Monumento ao Brigadeiro José da Silva Paes, teve lugar o ato de instalação do Museu da Cidade do Rio Grande, constituído pela Fundação da Cidade do Rio Grande, a qual se incumbiria de sua administração, de modo que, com a cooperação da Prefeitura Municipal, a Fundação proveria ao funcionamento e organização patrimonial e financeira do Museu. Na ocasião, a criação de um museu com a finalidade de preservar a memória histórica da cidade e do seu desenvolvimento econômico nos diversos aspectos da sua evolução, desde os primórdios da fundação da cidade até os tempos presentes, era encarada como uma antiga aspiração da comunidade rio-grandina[3].

Para a execução do objetivo de formação do Museu, a Fundação passava a constituir um Conselho que deveria organizar e administrar a entidade e bem assim as verbas recebidas de órgãos públicos, privados e particulares, ou da receita do próprio Museu. Ficava também constando na estrutura do Museu representantes da comunidade rio-grandina como a Prefeitura Municipal do Rio Grande, a Delegacia da Receita Federal, a Mitra Diocesana, a Fundação Universidade do Rio Grande, o Centro de Indústrias do Rio Grande, a Câmara do Comércio e a Biblioteca Rio-Grandense[4]. A partir de sua criação, o Museu Histórico da Cidade do Rio Grande iria aprimorar crescentemente sua atuação junto à população rio-grandina.

O Museu Histórico passava desse modo a cumprir a função social de toda instituição voltada à museologia (SUANO, 1986), ou seja, despertar o interesse público para com o passado histórico e a memória social (GIRAUD; BOUILHET, 1990, p. 45), buscando aprimorar-se à medida em que avançava no tempo, na constante tentativa de aperfeiçoar-se e adaptar-se às novas exigências de natureza museológica (BITTENCOURT; BENCHETRIT; TOSTES, 2003). Dessa maneira, as peças do acervo do Museu da Cidade do Rio Grande, podem ser consideradas como fragmentos multifacetados da memória rio-grandina (TORRES, 1999, p. 43), revelando detalhes formidáveis da formação histórica da cidade:

"Redescobrir a identidade local em meio à tamanha multiplicidade de vivências passadas é um desafio extremamente difícil. Porém, não devemos dar cada passo ignorando que gerações já compartilharam este espaço e fizeram leituras do mundo, equivocadas ou acertadas, e que estas leituras ainda estão presentes na matéria inerte das ruas e no imaginário dos falares. Os fragmentos desta trajetória humana (...) possui significados que exigem grande sensibilidade para serem lidos, afinal, foram construídos na contradição das relações que os homens estabelecem entre si e com o meio ambiente. O presente deve conhecer a consciência não apenas da preservação cultural mas de promover leituras de identidades, a serem resgatadas e repostas aos atores sociais, para que estes possam projetar um futuro conscientes na condição de possuidores de um referencial de existência que se processa além da temporalidade de viver e morrer, inata a cada indivíduo". (TORRES, 2000, p. 42)

Dentre as diversas coleções existentes no Museu, a de fotografias é de significativa importância. Revelam os registros fotográficos cenas do cotidiano que outros tipos de documentos históricos, principalmente os escritos, têm bem menos facilidade de expressar, pois a imagem traz em si e em todo o seu significado (PANOFSKY, 1979, P. 51) um contato direto, visual e quase que instantâneo com a realidade retratada, representando, desse modo, em síntese, um fragmento da memória (KOSSOY, 1989). A fotografia traz consigo

"Aquele instante, fragmento da realidade que se imagina eternizado, tem, em sua concepção, exatamente este desejo: manter viva a lembrança de um acontecimento, de um momento carregado de significações especiais. Apreciar uma fotografia é, normalmente, um instante de prazer, de recordação, daquilo que já vimos ou vivemos ou simplesmente conhecemos e admiramos. Muitas vezes observamos, na fotografia, detalhes e cenas das quais nem sequer participamos, mas que de certo modo evocam lembranças que nos são significativas ou que evocam instantes que gostaríamos de eternizar. (...) A fotografia exerce poderosa atração sobre os que a contemplam ou estudam, como documento possível de múltiplas interpretações e respostas. Não é somente o belo, o exótico ou o original de uma foto que prende nossa atenção, mas a possibilidade de conhecer uma certa realidade, dentro de um certo contexto. (...) Mas a fotografia não se esgota em seu potencial estético. Nesse sentido, poderíamos afirmar que a importância da fotografia como fonte para a história'residiria nesse seu dom de permitir visualizar o ontem e o outro em seus contornos de verdade'. (...) A leitura da fotografia exige sempre a formação de seqüências para completar sua mensagem e de uma hierarquização que permita penetrar as relações internas das posições sociais ou uma ordenação cronológica expressiva. A leitura pode ser feita por metáforas qualitativas ou através de simetrias e assimetrias que ligam o universo ao destino humano e à ordem social, ou através de códigos binários que nos fornecerão significados latentes, a partir de manifestos como o vestuário, a habitação, os gestos, o alimento e as expressões e marcas físicas. (...) A fotografia deve ser considerada como produto cultural, fruto de trabalho social de produção sígnica. Uma mensagem que se quer transmitir, intencionalmente". (SENNA, 2008, p. 80-82)

Um dos temas mais relevantes da formação história rio-grandina, a questão do Porto e da Barra, é debatido em grande escala por variada documentação. Nesse sentido, um arrolamento documental sobre o tema permite "que o leitor trave contato com alguns dos microcosmos que constituíram o universo representado pelo histórico processo dos melhoramentos pretendidos e entabulados no sentido de resolver os problemas de acesso à principal 'porta de entrada' do Rio Grande do Sul". Dessa forma, "desde os primórdios do século XIX, a vila/cidade do Rio Grande passaria a granjear crescentemente a condição de grande centro comercial da capitania, província e estado sul-rio-grandense", mas, "as dificuldades para 'vencer' a Barra e os limites da infra-estrutura portuária, diante da evolução das atividades mercantis, acabariam por constituir um obstáculo ao avanço ainda mais agudo do entreposto litorâneo". Tais "problemas observados desde o início do projeto colonial seriam de difícil solução e se arrastariam por décadas a fio, de modo que aquelas melhorias passariam a constituir uma das mais candentes aspirações da comunidade rio-grandina" (ALVES, 2007, p. 175) e a documentação reproduziu fielmente esse conjunto de aspirações.

Os registros fotográficos sobre o Porto e a Barra do Rio Grande são de suma importância para a reconstituição histórica a respeito dessa temática, principalmente a partir dos primeiros anos do século XX. Os graves problemas para atravessar a Barra Diabólica caracterizaram a história do Rio Grande desde a sua fundação e, durante todo o século XIX, foram muitas as lutas dos rio-grandinos em busca de melhorar essas condições de navegação. Foi somente ao final deste século e no início do seguinte que as providências começaram a ser tomadas com maior eficiência.

Os destinos da cidade do Rio Grande começariam a mudar a partir da execução das obras dos molhes da Barra e da construção do Porto Novo, realizadas desde 1908 e chegando até 1915, quando seriam inauguradas tais obras. Esses acontecimentos fazem parte "de um processo histórico de duração razoavelmente longa, que perpassou desde as origens da comunidade do Rio Grande, na primeira metade do século XVIII, e deita raízes até o presente". Naquela época, "as aspirações da coletividade atingiam um momento de indelével importância, com a abertura da Barra e a inauguração do Novo Porto", trazendo em si "a culminância de um processo reivindicatório que demarcou um amplo avanço econômico, sinal de progresso que, mesmo que nem sempre constante, passaria a constituir elemento-chave na sobrevivência do município do Rio Grande" (ALVES, 2006, p. 93).

Dessa forma, quando em março de 1915, o navio-escola Benjamin Constantatravessava a entrada litorânea rio-grandina, demonstrando a eficiência dos molhes, e, em novembro do mesmo ano, o Porto Novo era inaugurado, uma nova era se anunciava para o município rio-grandino:

"Os longos tempos de aspiração e planificação acabariam por desembocar na concretude daquele 1915. Obstáculos de toda ordem, ainda mais tendo em vista a magnitude das obras a serem executadas, a dependência do investimento de capitais internacionais, os diferentes e divergentes interesses em jogo e culminando com um conflito bélico de abrangência mundial, constituiriam os estertores da alcunha "Barra diabólica". Ainda que "conquistada" pela ação da ciência e do homem, que estariam a sobrepujar as forças da natureza, a Barra não seria "eliminada" como um todo em seu papel de óbice ao progresso rio-grandense, uma vez que a conservação das condições de navegabilidade permaneceria como premissa básica para o desenvolvimento das relações de intercâmbio através do litoral gaúcho. Se acontecimentos como a formação da Comissão de Melhoramento, ou a perspectiva da execução das obras com Corthell, tinham significado momentos de inflexão na história do Porto e da Barra do Rio Grande, a chegada do Benjamin Constant e a inauguração do Novo Porto seriam ainda mais potencializadas como datas magnas na construção de uma memória coletiva em torno do tema e alocadas como episódios de relevância crucial na elaboração de uma cultura identitária no Rio Grande, ainda mais numa época em que a comemoração apropriava-se de novos instrumentos de suporte, como monumentos, placas, fotografias, entre outros, exercendo um grande domínio em que a política, a sensibilidade e o folclore se misturavam nas construções memoriais". (ALVES, 2008, v. 1 p. 416)

A magnitude das obras, o gigantismo do maquinário empregado, o número de pessoas envolvidas no trabalho, estariam lado a lado com as transformações sociais, econômicas, políticas e culturais trazidas pelas obras do Porto e da Barra na cidade do Rio Grande. O impacto social foi de enorme proporções naquela cidade que cada vez mais se afirmava como principal pólo comercial do Rio Grande do Sul. Alguns fragmentos dessa realidade seriam muito bem demonstrados a partir dos registros fotográficos, como alguns dos seguintes arrolados junto ao Museu Histórico da Cidade do Rio Grande.

Linhas férreas foram construídas para o deslocamento do material necessário às construções e enormes blocos de pedras foram transportados para elevar os molhes e o cais do Porto Novo. Materiais de construção das mais variadas origens foram trazidos para a cidade. Maquinário especializado em escala monumental como guindastes, transbordadores e os famosos "titãs" teriam deixado os cidadãos rio-grandinos boquiabertos diante de seus colossais tamanhos. Galpões e armazéns eram construídos a toda pressa e os mais variados tipos de embarcações cuidavam dos constantes serviços de dragagem.

Aqueles tempos foram de uma correria infernal, afinal era a época em que se passava a consolidar cada vez mais a certeza de que o ser humano tinha condições de vencer o meio ambiente, ou seja, o homem iria transpor a "Barra diabólica". Os prazos eram curtos, o mundo mergulhava na I Guerra Mundial e os capitais escasseavam, mas aquilo que era considerado com a "marcha para o progresso" não poderia parar e as obras foram concluídas.

Mas essa velocidade da passagem dos acontecimentos teria ficado esquecida ou lembrada de forma incompleta no campo da memória coletiva, de modo que os registros fotográficos servem para recuperar ao menos em parte esses fragmentos de memória. As lembranças que poderiam escapar por entre os dedos dos cidadãos, com o passar dos anos, teriam na fotografia uma forma de testemunho incomparável. Esse introdutório estudo e levantamento de algumas das fotos sobre o Porto e a Barra do Rio Grande realizado junto ao acervo do Museu Histórico da Cidade do Rio Grande, tem por objetivo demonstrar a importância desse tipo de registro histórico, expressar a relevância da função social do Museu na preservação da memória coletiva e estimular a realização de novas pesquisas a respeito do tema.




[1] Para a realização desse trabalho foi fundamental o apoio da Coordenadora do Museu, Profa. Marisa Gonçalves Beal.

[2] ATA N. 323 de 9 de fevereiro de 1984 do Conselho Diretor da Fundação Cidade do Rio Grande.

[3] Termo de instalação do Museu da Cidade do Rio Grande – Prefeitura Municipal do Rio Grande, 19 de fevereiro de 1984.

[4] Termo de instalação do Museu da Cidade DO Rio Grande.