PORTE DE DROGA PARA CONSUMO PESSOAL:

Uma análise crítica acerca da necessidade de tipificação do ilícito penal a luz dos princípios penais constitucionais¹

 

Carlos Alberto Braga Diniz Neto²

Anderson dos Santos Guimarães³

Maria do Socorro Almeida de Carvalho4

 

SUMÁRIO: Resumo; Considerações Introdutórias; 1. Art. 28 da Lei nº 11.343/2006: Análise dos elementos constitutivos; 2. A necessidade de interferência penal: perspectiva conservadora do Direito Penal e análise dos princípios penais-constitucionais envolvidos; Referências.

RESUMO

O presente artigo tem como principal foco e delimitação a análise crítica a respeito da necessidade da intervenção estatal na conduta descrita no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Tóxicos) à luz dos princípios penais constitucionais, tendo em vista que o Direito Penal é somente a ultima ratio do Estado para intervir na vida privada do cidadão que a ele se submete. Visa ainda responder se tal conduta é caracterizadora do fenômeno conhecido como Paternalismo Penal, que é abordado no decorrer do trabalho. Para isso, antes de tudo, será feito um breve estudo do tipo penal em questão, analisando os seus elementos constitutivos e, por fim, discute-se a necessidade ou não da intervenção penal na conduta sob uma perspectiva mais conservadora do Direito Penal e também sob a perspectiva do Garantismo Penal.

Palavras-chave: Necessidade. Princípios. Garantismo. Paternalismo.

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

 

O presente trabalho será elaborado com o objetivo de identificar a (des)necessidade da conduta descrita no art. 28 da Lei 11.343/06, que considera crime o porte de drogas sem autorização legal ou regulamentar para consumo pessoal. Objetiva também fazer uma interpretação dos elementos constitutivos do aludido dispositivo visando identificar a caracterização de uma atitude paternalista do Estado para com os cidadãos.

Para tanto, será necessário se debruçar, sobretudo, sobre os elementos constitutivos da conduta de porte de drogas para o consumo próprio minunciosamente. E também será de suma importância identificar os princípios constituicionais-penais envolvidos nesse contexto e realizar o sopesamento necessário com o fim de identificar se a posição tomada é a mais adequada, real e justa, dentro das possibilidades do ordenamento jurídico brasileiro.

A necessidade e relevância do presente trabalho surgiram por se identificar que o porte de drogas para o consumo pessoal (art. 28, Lei nº 11.343/2006) possui tipicidade polêmica na doutrina pátria, sendo que parte dela acredita ser de salutar importância tal tipificação, por entender que é preciso proteger a sociedade e o indivíduo, sendo esta uma corrente conservadora do Direito Penal. Outra corrente, a que defende um viés garantista do Direito Penal, afirma que o artigo 28 da lei nº 11.343/2006 consiste numa violação do caráter subsidiário do Direito Penal e afronta direitos e garantias fundamentais do ser.

Em suma, o resultado desejado é comprovar que, sob uma perspectiva garantista, a tipificação da conduta criminosa de porte de drogas para consumo próprio constitui uma atitude paternalista do Poder Público, que é prejudicial ao sistema penal brasileiro. Além disso, o artigo 28 da aludida legislação é violador de direitos e garantias fundamentais do ser humano e, além disso, violador de princípios constitucionais penais do ordenamento jurídico pátrio.

  1. 1.                  ART. 28 DA LEI Nº 11.343/2006: ANÁLISE DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS

 

A Lei nº 11.343/2006, de forma bastante sucinta, institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) e prescreve medidas para a prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, além de estabelecer normas para repressão a produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas. O artigo 3º aponta que “o SISNAD tem a finalidade de articular, integrar, organizar e coordenar” as atividades que mantenham relação com o supracitado.

O que nos interessa mais neste tratamento sobre a finalidade da lei é que esta também possui o caráter tipificador de condutas ilícitas e culpáveis, portanto normas incriminadoras.

Propomos, de maneira delimitada, fazer a análise dos elementos da conduta descrita no artigo 28 da Lei em comento. Esta não possui um nomen juris tipificado expressamente, mas é conhecido na doutrina como porte de droga para consumo pessoal ou próprio. Cite-se seu inteiro teor para uma facilitação do estudo de seus elementos:

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1o  Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2o  Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

§ 3o  As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4o  Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.

§ 5o  A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.

§ 6o  Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II - multa.

§ 7o  O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

Primeiramente é importante comparar a lei nova com a antiga (Lei nº 6.368/76), para se pontuar as principais mudanças que ocorreram com a entrada em vigor da nova legislação.

 A principal mudança foi a dispensa da pena privativa de liberdade, sendo substituída pelas penas dispostas nos incisos supracitados, que podem ter seu prazo dilatado, a depender de fatores como a reincidência (§4º). Esta pena pode agora ser aplicada, também, aos casos equiparados encontrados no §1º do dispositivo em questão, outra inovação trazida pela Lei.

Outras pequenas e sutis mudanças foram feitas como utilizar o termo “drogas”, sendo este o objeto material do crime em estudo, conceituada pela própria Lei no parágrafo único de seu artigo 1º como “as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”. Outra foi adicionar as condutas de transportar e possuir em depósito. Feito o breve estudo sobre as mudanças, inicia-se o já adentrado estudo sobre os elementos do tipo penal.

Primeiramente, o bem jurídico protegido pode ser depreendido da própria função da Lei nº 11.343/2006. Este é a saúde pública e de forma mediata a saúde daqueles que se expõem ao uso indiscriminado das substâncias proibidas.

O titular do bem jurídico saúde pública, logo sujeito passivo do crime, é toda a coletividade, por ser um direito de todos. Dessa forma classifica-se como um crime vago. Também quanto ao sujeito ativo não há restrições, podendo ser qualquer pessoa, classificando-se, portanto, como crime comum.

Com a mudança da legislação, restaram cinco as condutas tipificadas no caput. Dessa forma o crime é classificado como do tipo misto alternativo, pois o agente somente responderá uma vez pelas condutas cometidas.

Luiz Flávio Gomes (2006, p. 119), expressa muito bem a conceituação de cada uma das condutas, as quais peço vênia para desenvolver seus conceitos.

A primeira conduta, de “adquirir”, significa que o autor não tinha a posse, mas passou a tê-la por qualquer tipo de aquisição.

 A segunda, de “guardar”, seria, segundo o autor, mantê-lo em “clandestinidade”, escondendo-o.

A terceira, “ter em depósito”, significa armazenar, deixar a sua disposição.

 Finalmente as condutas de “transportar” e trazer consigo seriam meramente a de deslocar o objeto material de um ponto a outro.

O crime é de mera conduta, visto que não é necessário a ocorrência de um resultado naturalístico para que a consumação da conduta ocorra, sendo esta com a mera prática de qualquer das condutas presentes no tipo. Admite-se a tentativa.

O elemento subjetivo é o dolo, que consiste na vontade livre e consciente de praticar qualquer das condutas descritas no tipo. Luiz Flávio Gomes (2006, p. 121) afirma que deve haver o elemento subjetivo especial do tipo “para consumo pessoal”, podendo, se não o possuir, incorrer no crime de tráfico.

É imprescindível frisar que o elemento normativo “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” esteja presente. De fato, se a droga que o sujeito ativo estiver portando não estiver expressamente proibida em lei, não há que se falar em crime de porte de droga para consumo pessoal.

  1. 2.                  A NECESSIDADE DE INTERFERÊNCIA PENAL: PERSPECTIVA CONSERVADORA DO DIREITO PENAL E ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS PENAIS-CONSTITUCIONAIS ENVOLVIDOS

Feita a análise dos elementos constitutivos do tipo penal em tela, passemos agora a analisar a postura do Sistema Penal brasileiro quanto à tutela exacerbada de condutas que deveriam ser descriminalizadas, tendo em vista seu baixo grau de ofensividade.

De fato, há uma discussão doutrinária que discute se tal conduta já não teria sido descriminalizada, no entanto, já superada a discussão, tem-se em mente que ainda constitui um crime, apesar de todas as mudanças.

Temos em mente que o Direito Penal é a ultima ratio do Estado, quando se trata da tutela vertical dos interesses da sociedade, visando proteger apenas os “bens jurídicos mais importantes” e “intervindo somente nos casos de maior gravidade” (JESUS, 2010, p. 46/52). Este é o princípio da fragmentariedade do Direito Penal. Mirabete (2006, p. 3) cita ainda que deve haver o “merecimento da pena”.

Bitencourt (2010, p. 40), ao dissertar sobre o Direito Penal mínimo e garantista afirma que:

A gravidade dos meios que o Estado emprega na repressão do delito, a drástica intervenção nos direitos mais elementares e, por isso mesmo, fundamentais da pessoa, o caráter de ultima ratio que esta intervenção deve ter, impõem necessariamente a busca de um princípio que controle o poder punitivo estatal e que confine sua aplicação em limites que excluam toda a arbitrariedade e excesso do poder punitivo.

Por esse motivo, o Direito Penal é tutelado pelo princípio da intervenção mínima, o qual procura “restringir ou impedir o arbítrio do legislador, no sentido de evitar a definição desnecessária de crimes” (JESUS, 2010, p. 52). E ainda, tal princípio determina que “a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico” (BITENCOURT, 2010, p. 43). O mesmo autor ainda afirma que “se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável” (BITENCOURT, 2010, p, 43).

A conduta descrita no artigo 28 da Lei em comento é praticamente inofensiva, sendo desproporcional e, quem sabe, exagerado, afirmar que o bem jurídico afetado é a saúde pública como um todo. A conduta não chega nem a prejudicar o próprio sujeito ativo, pois nem ao menos tipifica o uso da droga.

Presente hoje no Sistema Penal brasileiro está o princípio da adequação social, pelo qual o Direito Penal só deverá tipificar condutas que possuam relevância social. A sociedade atual não mais repudia tal conduta inofensiva. Em verdade, esta não prejudica e nem entra na esfera de interesses de nenhum outro indivíduo, mas apenas na daquele que a pratica.

 De fato, “certos comportamentos em si mesmos típicos carecem de relevância por serem correntes no meio social” (BITENCOURT, 2010, p. 49). Para que uma conduta seja criminalizada deverá haver um verdadeiro desvalor da ação e não “um mero descompasso entre as normas penais incriminadoras e o socialmente permitido ou tolerado” (BITENCOURT, 2010, p. 49).

Diante disso, temos que não foi obedecido o princípio penal da ofensividade, pelo qual “o Direito Penal só deve ser aplicado quando a conduta ofende um bem jurídico, não sendo suficiente que seja imoral ou pecaminosa” (JESUS, 2010, p. 52).

O indivíduo acaba sofrendo desnecessariamente o que se chama na criminologia crítica de estigmatização. Sofre ele moralmente com a imposição de um processo criminal e com a subsunção de uma conduta sua inofensiva a um tipo penal. Sendo que tal ato ilícito poderia ser resolvido por outras áreas menos temerosas do Direito.

Este é o retrato do Sistema Penal brasileiro, caracterizado por ser uma figura paternalista, intervindo desnecessariamente na vida privada do indivíduo.

 O Paternalismo Penal, desenvolvido primeiramente por John Stuart Mill, está aí presente, pois tutela a vida do cidadão como se ele precisasse de proteção e deixando totalmente de lado a autodeterminação de cada pessoa, principalmente daquele que já tem desenvolvimento mental completo e sabe o que quer.

O Estado atua, dessa forma, impedindo que o indivíduo disponha de seus direitos, mesmo que eles não interfiram na esfera pública. É o que acontece quando a prostituta não pode escolher sustentar-se através de um rufião, pois este incorrerá em uma pena ridiculamente grave.

O Sistema Penal brasileiro é, portanto, deveras arcaico e paternalista. O conservadorismo ainda está presente num discurso falso de modernização e descriminalização. Notamos isso na criminalização em massa em que o legislador atua sem pensar e de forma ineficiente. De fato, o indivíduo é proibido até mesmo de praticar uma conduta quem implique, se nos esforçarmos bastante para chegar nesse aspecto, numa mera autolesão.

REFERÊNCIAS

 

GOMES, Luiz Flávio. Nova lei de drogas comentada artigo por artigo: lei 11.343/2006, de 23.08.2006. São Paulo: RT, 2006;

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tradado de Direito Penal: Parte Geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010;

JESUS, Damásio de. Direito Penal: Parte geral. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2010;

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2006;