A causa real da maioria dos nossos problemas está entre a ignorância e a negligência.

Goethe

Quando penso em fazer algo que possa contribuir com o debate pela igualdade de gênero, visualizo como uma etapa inicial, os problemas envolvendo a hierarquia dos sexos. Esse texto visa uma forma de questionamento à própria mentalidade institucional, formada nos primórdios do cristianismo ocidental. A representação imaginária do falo nunca se serviu tão bem aos problemas da coletividade humana, como os arquétipos estabelecidos pelo monoteísmo – uma forma estratégica monolítica para mitos científicos e empíricos se adaptarem às mudanças tecnológicas, culturais e econômicas.

Acontece que nossa matriz pátrio-institucional se mantêm intacta na mentalidade coletiva – isto pela relação intrínseca e cotidiana da História das Mentalidades – , estreita, modulável, aceitável a determinadas concessões políticas: as instituições jurídicas e militares concentram em pleno século XXI, sua hegemonia. Não precisamos ir tão longe ao mencionar a proliferação do conceito Feminismo.

É verdade, trata-se de uma luta cultural recente (ao mesmo tempo milenar). Somente o gênero mulher foi capaz de propor algo tão íntimo na história. Isto se deve a intimidade de sua luta, consagrada pela oficialidade tardia – ainda sob a égide máscula – , mas configurando campos de discussão interessante providos de intensa criatividade numa busca ampla, no sentido de uma participação política.

Na Europa, a luta feminista encontrou o rumo das academias com o desempenho engajado de intelectuais como Michelle Perrot1. Historiadora e pesquisadora emérita da Universidade de Paris, atuou como militante do Partido Comunista Francês, tendo participado da luta pela libertação das colônias francesas na África ao lado de outros intelectuais, como Sartre, Georges Duby e Michel Foucault. Seus livros e pesquisas, assim como inúmeros textos monográficos, abordam a invisibilidade histórica dos não-partícipes no processo construtor das mentalidades através dos séculos. É o caso de operários, mulheres e prisioneiros.

A própria idéia conceitual da liberação feminina em partes, são influências diretas de sua atuação acadêmica. Mas reduzir Perrot à universidade seria um equívoco insalubre. A concepção de visibilidade feminina é algo tão diversificado quanto a idéia de gênero. Não é apenas a visibilidade das profissionais do sexo, trabalhadoras de fábricas, catadoras de papel em São Paulo, quebradeiras de coco babaçú do Norte do Brasil ou lésbicas organizadas em ONG's e cooperativas. Trata-se de uma política afirmativa para as instituições de poder, e não apenas fora delas. Os movimentos sociais que trabalham com tais temas, lutam nos dias atuais pela inclusão parlamentar e constitucional. No Brasil, o sistema democrático não inseriu em suas linhas gerais, a significação do sexo feminino nos direitos civis2. A prerrogativa "homens e mulheres" são iguais em direitos e obrigações, entretanto, ainda não se aplica a dupla, tripla jornada de trabalho exercida por mulheres de diferentes níveis econômicos aos homens.

O esboço utilizado pela mulher dos trópicos é o legado vivo do pensamento perrotiano, germinando no solo fértil e decadente da Europa pós-guerra. O elemento psicólogo e cultural favorecido pela contra-cultura3, está representado na aura da geração de Maio de 1968. Os primeiros focos de contestação esquerdista ao fantasma fascista e imperialista, transformavam-se em avalanches humanas explodindo nas ruas de todo o continente. Na América do Sul, Central e Caribe, havia o problema dos regimes civis-militares, sufocando qualquer possibilidade clara de estender a luta com a mesma intensidade no Novo Mundo.

Evidentemente, a presença das lutas populares estabeleceu condições propícias a conteste de mulheres mais efetivamente ao longo de décadas. A contribuição de Perrot nesta ótica de estudo será fundamental.

Configuração do Imaginário

Antes, será necessário que façamos um breve retrospecto da história e da simbologia alicerçadas em nosso consciente coletivo – num âmbito ocidental, amplo, quase inatingível das sociedades apoiadas na instituição cristã.

O sexismo é uma característica do fundamento patriarcal. Desenvolvemos uma série de códigos apoiados no vínculo cristão-romano-católico, princípios esses definidores de uma imutabilidade ao aspecto geral dos parâmetros discriminatórios de sexo. A crença única da força física e psicológica sobre a afetividade sensorial, possibilita traços marcantes do poder ao masculino, algo inquestionável. O modelo de homem e mulher, são justificados pela monogamia cristã, como atributo imprescindível à ordem da espécie humana.

A virilidade biológica serve como dogma de perpetuação social. Por exemplo, a figura de Eva no paraíso – através da mitologia hebraica – e a figura de Pandora – pelo mito grego – são semelhanças impostas pelo taxioma da ferramenta animista, também representadas pelo imaginário. Essa mesma relação de valores (corpo e mente) transita no espaço de poder político: a idéia de Papa pela Igreja Católica (ou a tecitura vigilante do padre, conforme presenciamos no templo cristão) é o imagético do espaço punitivo. Ou seja, lugares para homens, para mulheres. Não se trata apenas do espaço geográfico, mas do desenho psíquico atravessando a poeira do tempo, instalando-se em todos os cantos os cantos não limpos. Onde papéis não são tocados. Cartas, versos, poemas inteiros bradando um grito de liberdade da "histérica" não correspondida. Privada de seus sentimentos, mas "enraivecida" pelo olhar paterno, colocadano seu "devido" lugar, mas por pouco: não tardaria que os registros cíveis, boletins de ocorrência, levantes e panelaços ocupassem ruas e campos.

A metáfora da maçã proibida, experimentada por Eva e compartilhada com Adão, resultam no pecado cristianizado, induzido pelo código de uma serpente. Durante a Renascença italiana, inúmeros quadros foram pintados preservando uma interpretação livre acerca do bem e do mal a partir da visão hebraica. Neste caso, a mulher é responsável pelos males do mundo. Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, enfatiza uma visão politeísta, até mais antiga que as crenças dos hebreus. Na versão pagã, essa mulher abre uma pequena caixa e liberta os males do mundo. A figura feminina é responsabilidade mais uma vez, e através destes dogmas iniciais as sociedades gregas desenvolveram seus códigos de valores na superioridade de sexo. As virtudes ficaram no fundo da valise.

Arte e rebeldia

Artistas detentores de uma opinião similar à luta ideário feminino, aparecem no século XX como transgressores do universo institucional pátrio, como os exemplos do dramaturgo Federico Garcia Lorca4 e o cineasta Pedro Almodóvar5. Passemos por uma confluência política de suas respectivas obras. A alma e os anseios da mulher são problemáticas de contextos culturais similares de um mesmo país, Espanha. Ambos de Castella, influentes e polêmicos em suas criações de estética feminina. Essa convergência artística e política, atravessa o microcosmo dos principais acontecimentos de Espanha no século XX. A priori, o que precisamos compreender é a aproximação artística entre obras distintas, porém, interligadas pela observância da sobrevivência feminina. Geografia e tempo histórico ungidos pelo mesmo processo de análise. As peças teatrais de Lorca abordam os problemas do início da ditadura franquista no país, na década de 1930, da qual o autor foi vítima pelo assassinato. Almodóvar aparece na Madri urbana das inquietações sociais, pelo movimento artístico "La Retomada", decretado oficialmente com a morte do general Francisco Franco (1975)6, inaugurando uma nova etapa na democracia do país.

O diretor-roteirista inicia uma sólida carreira profissional em fins do regime. Lorca fora assassinado no auge de sua criatividade, justamente quando sua peça mais polêmica, "Yerma", era encenada para o ódio dos sensores moralistas da época, uma subversão calada antes de dar frutos. A personagem central de mesmo nome é uma insurgente. Era o início da ditadura militar apoiada pela monarquia castellana. Yerma, mulher casada, desejosa por filhos, mas com o problema da esterilidade. Com as dificuldades da conjuntura local (religião, suspeita de adultério e solidão), rebela-se contra as tradições da região.

Experimentar a visão do produtor cultural num determinando momento crítico de recorte espacial, não é exclusividade de pessoas que idealizaram uma sociedade mais justa à frente de seu tempo. Conforme percebemos na micro-história não revelada nos arquivos públicos do Velho Mundo, a determinação perrotiana em reconstruir e interpretar a participação econômica, militar e social das mulheres na França através da literatura (até como mecanismo constitutivo do imaginário popular), nos permite constatar o que chamo de políticas do esquecimento público, dificultando bastante à pesquisa histórica:

O pai da sociologia ocidental, Auguste Comte, vai longe na sua radical visão separatista dos sexos ao referir-se a "inaptidão radical do sexo feminino". O doméstico não lhe poderia ser entregue sem controle; mas concorda-se em confiar às mulheres – dentro de certos limites – a família, a casa, núcleos da esfera privada (Perrot :1988:178).

O ideal revolucionário burguês, em certo sentido como entendemos no Ocidente, revela-se inibidor na emancipação política das mulheres, à medida que temos o refreamento cultural apostolado pela normatização científica do século XIX. Os chamados magazines femininos e outras publicações dirigidas ao entretenimento da dona-de-casa burguesa na Europa, melhor resultado para justificar papéis sexuais. Temos a criação clássica da "rainha do lar".

Não seria de estranhar os aviltados catedráticos, teóricos da ordem moral e cívica, arquitetando a "ocupação" diária dessas senhoras. O positivismo tratou de negar a autonomia da mulher através da História.

Aos homens, o jornal, a bebida e as discussões políticas. À senhora do lar, panos e costuras, cuidado aos filhos e folhetins culinarísticos para os dotes da casa. Perrot chama a atenção a inúmeros motins provocados por mulheres na França dos séculos XVIII e XIX. Em suas pesquisas, revela o temor das autoridades policiais e comerciantes pelas "furiosas" mães dos cortiços parisienses, esbravejando pelo alto preço do leite. Ou as aflições de um entregador de pães, que supostamente tentar lesar uma recém-chegada camponesa às urbes paupérrimas de uma Europa em franca industrialização.

Ou nos famigerados dias de 1848, na França, quando mulheres entravam em frentes de batalha – algumas se trajando como homens – com paus e pedras ao lado dos rebeldes. Como podemos observar na mentalidade separatista denunciada pela autora:

Aos homens, o cérebro (muito mais importante do que o falo), a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos (Perrot, 1988:178).

Parte dessa literatura dos periódicos dos periódicos femininos, começou a ser produzida pela lógica dicotômica das mulheres recém-alfabetizadas, induzindo disciplinarmente à forma romanesca, dócil e criminal do sexo frágil. No pensamento da época – caso viessem a viajar ao século XX pelas vias da ficção – não poderiam supor mulheres em bancos universitários.

Entretanto, priorizaram o mimetismo da biblioteca apropriada, escrita pelo viés de uma civilização segregacionista aos direitos sexuais. Esses reflexos da Era Positiva, ainda povoam o imaginário das novas (mas velhas) estruturas sociais.

Pensando o espaço público

A partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa (Foucault, 1993:241).

Ainda não temos a figura imaginária da repartição pública feminina. Os dados recolhidos por Perrot e trabalhados em seu método historiográfico, alertam para esse déficit político das representações institucionais, ora mais concomitantes às transformações da tradicionalidade, porém, resistentes às estruturas da lei. Ajudar a pensar o espaço público das mulheres, é pensar estratégias de política afirmativa em âmbito jurídico-discursivo.

Não estou defendendo uma medida para aumentar as estatísticas de soldadas nas forças armadas – o que pode ser uma estratégia significante – , mas uma real representação da mulher nesse espaço de poder. Da mesma forma, soa superficial a exigência de um quantitativo específico para cargos administrativos em repartições públicas de maioria masculina se a presença do feminino não vem acompanhada de direitos.

Na mesma sala, as mesmas funções e responsabilidades, porém, um salário mais baixo. Intercalemos isso ao espaço educacional dos filhos. Por diversas vezes, ela terá de ausentar-se de suas múltiplas funções e tarefas de gabinete às necessidades do rebento: ligações da direção escolar, um eventual acidente infantil, cobranças do parceiro ou parceira em determinadas obrigações fixas, submetidas pelo elo de convivência, etc. Percebemos a imagética culpabillização das atividades do lar, o consciente tradicional nos remete a comportamentos primitivos.

Para uma mulher de vinculação familiar mais sexista, é difícil desestabilizar os laços de separação: a delegacia, o juiz, as testemunhas oculares, pouco dinheiro e problemas conjugais afetam diretamente suas decisões. Como esgueirar-se de tantas receitas de "histeria"? A naturalidade de um cotidiano adia a revolução radical. Claro, muito já foi feito contra a opressão positiva. A pergunta é: como avançar mais?

Num país com tantos problemas como o Brasil, os avanços são ambíguos, confusos. Do mesmo modo que um método democrático avança, se expande um preconceito socialmente.

Os sistemas democráticos nos séculos XX e XXI, na América do Sul, trazem a primeira presidenta na república chilena com Michelle Bachelet, e Cristina Kirschner na Argentina. América Central e Caribe despontam crescentes avanços femininos em cargos de liderança. Os encontros feministas latino-americanos expandiram-se rapidamente em vários países, agregando particularidades conjunturais e geográficas pertinentes à língua e cultura.

Nas universidades brasileiras, inúmeras intelectuais apresentam teses e discussões inovadoras, confrontando a visão masculinizadora dos muros acadêmicos. É notável neste país, a contribuição da mulher aos estudos de gênero. A visão feminina amplia-se em vários aspectos: direitos reprodutivos e afetivos, autonomia médica de planejamento familiar, conscientização dos papéis para a obrigatoriedade masculina, etc.

O próprio debate sobre a orientação sexual da mulher, abre um novo precedente nos discursos que envolvem a homossexualidade7: uma representatividade lésbica de poder não reconhecida pelo movimento gay nos explosivos anos da contra-cultura. Os embates decisivos da percepção esquerdista de gênero, distanciadas da uniformidade pátria, formularam novos debates acerca da exposição lesbo no ocidente.

Modelos de perspectiva social

À frente das manifestações ou desfiles, elas se congelam como símbolos. E se a República se encarna numa Marianne, sem dúvida é uma última maneira de transformar a mulher em objeto (Perrot, 1988).

Nas modernas repúblicas, um poder feminino e jurídico irá levantar a bandeira da igualdade de gênero. Seria necessário aplicar outro conceito discursivo ao núcleo institucional cristão-ocidental? Seguramente. Este estudo também perpassa pela organização matrimonial do regimento oficial, onde seria mais apropriado enfatizar as cobranças sociais referentes à mulher procriadora e administradora das relações domésticas.

Num país tão prolixo como o Brasil, a maioria dos homens não possuem essa consciência numa perspectiva cultural. Até a forma como educamos nossos filhos e filhas. Nesse caso, é fundamental fazer o homem acreditar na sua importância paternal (ela de fato existe) – aos olhos das normas e códigos sociais – ,respaldado pelos tendões de Aquilles de sua companheira8. Crer na própria imagem – particularmente externa socialmente – configuram desejos do dia-a-dia, as esquizofrenias mundanas, a autorização poligâmica de consentimentos vários.

O cerne do arquétipo masculino – bastante reduzido ao critério do clichê – são cumplicidades do seio doméstico. Na maioria das vezes, a testosterona permite uma voz mais alta e ríspida para impor autoridade. Retomando Perrot, não é capaz de argüir com a diversificada organização do parlamento feminino. Uma plausível analogia ao sistema monárquico-parlamentar contemporâneo. A rainha reina, mas não governa. O parlamento ouve, de antemão, o primeiro ministro. De fato uma constatação? Uma suposta autoridade imagética fisicamente vantajosa, mas psicologicamente reduzida pelas dinâmicas culturais existentes? Novas possibilidades de exercício democrático de mulheres e homens, tornará possível o enfraquecimento desses mitos.

Poderíamos falar até de uma neo-feminilidade? Toda e qualquer influência exógena das democracias onde o feminino está mais consolidado, é válida. Exibir a construção política na simbologia maior de datas comemorativas (como o dia 8 de março) precisa estar cada, vez mais acompanhada de intervenções à imutabilidade das leis. Levar uma causa, uma mudança constitucional, emenda parlamentar, maior cobrança de verbas às secretarias específicas de políticas para mulheres, proposições de participação rígida em setores de poder cujos interesses paternalistas não cedem espaço intelectual, são movimentos que a cada dia precisam estar imbuídos de novos métodos de ataque e soluções. Uma conjuntura onde mulheres e homens possam pensar igualmente.

O declínio da masculinidade para uma nova feminilidade: fêmeas e machos na balança

O mesmo espírito percorre a Historie sem qualité (História sem qualidade) onde eu, por minha vez, quis substituir a representação dominante de uma dona-de-casa insignificante, negligenciada e negligenciável, oprimida e humilhada, pela de uma mulher popular rebelde, ativa e resistente, guardiã das subsistências, administradora do orçamento familiar, no centro do espaço urbano (Perrot, 1988:172).

Outro fator de grande importância é a presença econômica das relações femininas às formas modernas de imposição capitalista. Também perpassam pelas ciências jurídicas vistas anteriormente. No decorrer da história humana, esse ocultamento foi cedendo às pressões sociais de pertencimento as agruras do sistema.

A tríade de controle dos bastiões patriarcais ressurge na perspectiva da ideologia resistente: os velhos anciãos incontestes ainda preservam a intocabilidade de suas togas medievais. Onde podemos constatá-la? Nos poderes que nos regulam:

1) A lógica do Estado, na figura simbólica do pai.

2) A lógica metafísica, na figura do Deus-homem.

3) A lógica da força biológica, na concepção de guerra econômica pelos sistemas de produção.

Gerando os seguintes caracteres ou problemas:

  1. Mulheres ganhando menos e trabalhando mais.
  2. Mulheres executando funções masculinas durante o período de guerras.
  3. Maior dificuldade para a educação feminina na sociedade capitalista.

Esse esboço representativo, se utilizado como um método de ligação entre letras e números, permitirá uma visualização clara dos problemas mais complexos à distribuição igualitária das relações de gênero. 1 + a, 2 + c, 3 + b, e, até pelo mecanismo da inversão dos códigos (2 + b, 1 + c, 3 + a).

No mundo paterno, há outros fatores de desestabilização das teorias médicas e sociológicas que redimem o diversificado papel feminino da resistência e busca legitimista. Um exemplo de apoio à micro-história das mulheres, especialidade da historiadora Perrot. O poder feminino não deve se masculinizar. Talvez os males do mundo não estejam na caixa de Pandora, e sim, nas perversões de Zeus. Questões relativas à apropriação dos sexos é uma fonte desejosa, impreterível na manipulação humana. Formas que surgem parra se tornar estáveis.

Seria fundamental em décadas futuras, uma mulher assumindo a autoridade máxima do Vaticano em Roma. Como romper os arcaicos muros da Igreja Católica Apostólica Romana no quesito gênero? O jargão "caça às bruxas", mancomunado ao projeto do Tribunal do Santo Ofício, considerava atitudes femininas ousadas como heresia, petulância, descristianização da ordem estabelecida.

A tradição oral na Europa sobre o assunto é vastíssima: seitas, grupos políticos ou reuniões periódicas de mulheres interessadas na instrução, na inclusão literária, foram perseguidas a todo custo no decorrer da história.

Essa instituição permanece tão intocada em seus meandros de poder, parecendo altamente inovador uma mulher questionar espaços de afirmação nos templos cristãos. Isso em pleno século XXI. Não deveria ser visto como tal. A indignação deve se tornar uma válvula inquietante para mudanças na tradição? Então Einstein estaria correto ao dizer que ela é o juízo dos imbecis? Sacudir a cultura pode ser a negação da "verdade" mito-religiosa? Talvez na adorável e brilhante prosa de Nietzsche, ao declarar a libertação do espírito pelo super-homem (quando de fato somos Deus), não poderia mencionar a grande mulher, desvinculada dos dogmas religiosos do ideologismo cristão que tanto combateu?

Imaginemos outras literaturas... Verdadeiramente, como pensaremos esses "breves" esquecimentos lingüísticos nos dias futuros? Os problemas da língua masculina enquanto uma escrita?

Parece-me certo que um debate polêmico – alimentado pela catarse que deve criar – é uma propositividade aconselhável: desconstruir o poder, o falo, como mecanismos de uma nova imagem institucional feminina contemporânea. Ou seja, formas e saberes femininos enquanto cultura no imaginário e representatividades de poder.

Apoiado nesse raciocínio, o esquema abaixo foi construído. São modelos propositivos de desvinculação social nas práticas entre mulheres e homens, enquanto seres presos pelo repartimento dos papéis, comportamento e afetividade entre si.

Modelo Imposto

(Esquema 01)

Amizade (laços de construção sociológica).

  • Felicidade.
  • Organização afetiva ao longo da vida.
  • Participação social.

Homens

  • Vínculo de camaradagem.
  • Normas corporais distanciadas.
  • Divisão em núcleos econômicos.
  • Preservação cristã (força física e ideológica).

Mulheres

  • Vínculo de aceitação.
  • Práticas corporais diferenciadas ou mistas.
  • Divisão em núcleos econômicos.
  • Preservação cristã (gestação e procriação).

Modelo Reformulatório

(Esquema 02)

Amizade (laços de construção sociológica).

  • Felicidade.
  • Organização afetiva ao longo da vida.
  • Participação e desconstrução social.

Mulheres

  • Vínculo de emancipação.
  • Práticas corporais mistas expositivas.
  • Rediscussão dos núcleos econômicos.
  • Rediscussão da preservação religiosa (gestação e procriação).
  • Apropriação de caracteres da identidade masculina e papéis sexuais.

Homens

  • Vínculo sensorial.
  • Práticas corporais relativizadas.
  • Rediscussão dos núcleos econômicos.
  • Rediscussão da preservação religiosa (gestação e procriação).
  • Apropriação de caracteres da identidade feminina e papéis sexuais.

Podemos observar nos Esquemas 01 e 02, as unidades de valorização dos códigos, conforme e estrutura da amizade horizontal entre os gêneros. Analisando a hierarquia do Esquema 01, a relação humana religiosa mantêm a cadeia intacta.

A naturalização imaginária da vida social não atinge uma projeção de intercâmbio. Nesse caso, o saber construído para as identidades no gênero continua estático. O Esquema 02, mais transformador, apoiado nos mesmos princípios institucionais do Esquema 01 (Amizade + laços de construção social), não incentiva a desmantelação de um sobre outro.

Poderíamos apenas reverter à ordem. Isso significa dizer a organização identitária visando uma prática de democratização, e não a disputa de padrões sexistas existentes. Vale ressaltar que nos esquemas vigentes (matriz da felicidade), a convergência dos códigos não busca uma confrontação, mas o diálogo. Se essa perspectiva for construída historicamente como uma alternativa ao Esquema 01, as instituições estariam colocando em cheque o poder consolidado, mas isso, equivale dizer o exercício cultural de uma prática da amizade menos burocratizada. Outro fator importante é o acirramento, o segregacionismo que a ideologia capitalista provoca sobre as relações de gênero. Nesse caso, uma relação de amizade inovadora, propondo experimentos viáveis às práticas afetivas.

Naturalmente, o desenvolvimento de um discurso neo-feminino possui seus antagonismos, vantagens e descobertas. As formas de luta precisam, em certo sentido, reverter a ordem do discurso reinante do século XIX, apoiado nas descobertas da medicina e da biologia. É um vocabulário naturalista, que insiste na existência de duas "espécies" diferentes (feminino sensível e macho agressivo). O que renega a capacidade de uma violência feminina, sua capacidade de defender-se ou a disputa no comércio. A desconstrução da invisibilidade histórica das mulheres.

Liberação e cooperação

Suponhamos que os poderes larguem essa sua fala melífula e se apresentem de peito aberto, como vontades de potência não disfarçadas: por que se envergonhar? (Lebrun, 1999:118).

As vontades e ambições humanas, só podem ser possíveis na busca igualitária quando ensejamos o apoio, novas possibilidades de liberar-nos das amarras que limita a ação democrática. Uma legislação discriminatória pode estar escrita em páginas, mas uma mente está sujeita a transformações e, isso permite radicalizar estruturalmente os saberes quando necessário. Este ensaio visa uma contribuição nesse sentido. As desigualdades sofridas por mulheres nos círculos de poder têm diminuído, mas muito ainda será feito, nas bases de cooperação para uma sociedade mais justa.

Só então homens serão capazes de ampliar sua visão acerca do universo feminino, incentivando-lhe e incluindo sua participação nestes. Permitindo-nos pensar uma melhor representação do poder das mulheres – imenso tema de investigação (e ação) histórica e antropológica.

Referências

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ARIÈS, Philipe & DUBY, Georges. História da vida privada: da Revolução à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

BRESCIANI, Maria Stella Martins. A mulher e o espaço público. (Org.). Revista Brasileira de História – Órgão da Associação Nacional dos Professores Universitários de História – São Paulo (ANPUH). Marco Zero, vol. 09, agosto de 1989.

CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002. 427p.

FADERMAN, L. Surpassing the Love of Men. New York: William Marrow, 1980.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

LEBRUN, Gérard. O que é poder. São Paulo: Brasiliense, 1999.

LASCH, Christopher. A mulher e a vida cotidiana: amor, casamento e feminismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

MUSUMECI, Bárbara Soares. Mulheres invisíveis. São Paulo: Civilização Brasileira, 1999.

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

_______________. Mulheres públicas. São Paulo: Unesp, 2004.

_______________.Mulheres e os silêncios na história. São Paulo: Unesp, 2004.

_______________. Minha história das mulheres. São Paulo: Unesp, 2005.

Fonte virtual: www.mulheresnobrasil.org.br

1 Nascida na França, em 1927, Perrot inaugurou o discurso da História das Mulheres naquele país. Seu pensamento político constitui-se de uma vasta obra distribuída em artigos, ensaios e livros abordando o tema da feminilidade na História. Em obras como Os Excluídos da História, expõe em vários artigos sua preocupação por uma historiografia feminina.

2 Constituição Federal de 1988: "Todos são iguais perante a lei". Título II – Dos direitos e garantias fundamentais. Capítulo I – Dos direitos e deveres individuais e coletivos, Inciso I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos dessa Constituição. Parece-me um tanto contraditória essa resolução constitucional. No Brasil, a participação das mulheres em todos os setores da sociedade é, pelas vias da lei, uma teoria bem redigida e não cumprida. Na vida pública-parlamentar, basta analisar o percentual de mulheres ocupando cadeiras no Senado, Câmara Federal e outras esferas do poder público.

3 O que chamamos de contra-cultura no ocidente, corresponde a toda gama de informações vindas com a pílula anti-gravidez, o surgimento do rock pela indústria cultural e a propagação do amor livre, entre outros. Somemos isso à difusão mundial de determinados tipos de droga como um desses elementos de novas práticas sociais.

4 Nascido numa pequena localidade na Andaluzia (Espanha), em 1898, foi uma das primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Considerado um dos maiores poetas e dramaturgos de Espanha no século XX. Um de seus textos mais famosos, Yerma, já foi encenada diversas vezes no Brasil.

5 Diretor e roteirista nascido num povoado nos arredores de Madri. É conhecido por seus filmes focados no universo feminino, considerado o mais famoso diretor de cinema de Espanha depois de Luís Buñel.

6 Francisco Franco (1892-1975). Foi chefe de estado em regime ditatorial em Espanha após a vitória dos nacionalistas depois da Guerra Civil. Seu mandato (1939-1975) teve como apoio a Igreja e a monarquia castellana, contrária aos às frentes de ação comunista e anarquista organizadas contra as elites do país por melhores condições de vida à população operária e camponesa.

7 A respeito desse tema, um interessante estudo aguarda ansiosa publicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Trata-se da dissertação de mestrado de Daniele Machado Bezerra, trazendo como estudo de causa a vivência homoerótica de mulheres profissionais do sexo na cidade do Natal, Rio Grande do Norte. Conforme calendário letivo, a defesa deverá ocorrer em março de 2008. É o primeiro trabalho sobre o gênero pela abordagem do comércio sexual.

8 Essa analogia reflete a mentalidade feminina pela educação paternalista, observando valores cognitivos religiosos, econômicos, etc. Conforme a exposição teórica de Maria Helena Guerra e Carlos Biyngton (Café Filosófico, março de 2007), há um conjunto de valores míticos no imaginário coletivo que nos impede, muitas das vezes, de perceber a educação que transmitimos culturalmente a nossos filhos. Por exemplo, a mitologia judaico-cristã e grega de Eva e Pandora são exemplos disso. Construções discursivas que reforçam idéias negativas sobre o sexo feminino.