RESUMO

Este trabalho tem como objetivo verificar no ordenamento jurídico brasileiro o reconhecimento de efeitos advindos do poliamorismo. A dinâmica da evolução social gera transformações na família, possibilitando o surgimento de novos arranjos familiares, entre elas destaca-se o poliamor, a prática da simultaneidade de parceiros nas relações afetivas. Ante a ausência de normatização específica para proteção dos vínculos paralelos, revela-se a importância do estudo dos efeitos sociais e jurídicos em tais casos. Busca-se a conceituação do poliamor, bem como a identificação da posição dos doutrinadores do Direito da Família que reconheçam e tutelem os efeitos das relações baseadas no poliamor.

 

PALAVRAS-CHAVE: Poliamor. Uniões Paralelas. Pluralismo Familiar.

 

A partir do momento em que a família deixou de ser o núcleo econômico e de reprodução para ser o espaço do afeto e do amor, surgiram novas e várias representações sociais para ela.[1] Com a constitucionalização da família na Constituição Federal de 1988, houve a possibilidade e a viabilização do pluralismo familiar com o sistema constitucional poroso e aberto.

A Constituição agasalha princípios que revelam os reclamos de justiça e, nestes tempos, verifica-se a tendência do constituinte originário no que se refere a viabilizar a interpretação que melhor atende á realização da pessoa humana.

Numa definição sociológica, pode-se dizer com Zannoni que a família compreende uma determinada categoria de ‘relações sociais reconhecidas e, portanto, institucionais’. Dentro deste conceito, a família ‘não deve necessariamente coincidir com uma definição estritamente jurídica’. Quem pretende focalizar os aspectos ético-sociais da família, não pode perder de vista que a multiplicidade e variedade de fatores não consentem fixar um modelo social uniforme. [2]

A família tem como pilar as relações de afeto, baseadas na solidariedade e cooperação, desta feita, não é o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento que existem para o desenvolvimento pessoal, em busca da felicidade.

As relações sociais são complexas. Surgem no mundo real situações não abarcadas pelo Direito. Como o poliamor. Mesmo que isso possa parecer antipático diante da maioria das pessoas, devido à tradição cultural e religiosa, o fato é que essa realidade existe e precisa ser regulamentada expressamente pelo sistema jurídico.

É possível amar duas pessoas ao mesmo tempo?

            O amor é uma construção social, em cada época as pessoas amam de forma diferente. O amor romântico parece estar saindo de cena porque nós estamos vivendo uma época em que se observa a busca da individualidade. A ética do sacrifício pelo outro, que você tem que ceder, pregada pelo amor romântico é incompatível com o atual estágio da sociedade.

Parece que um novo tipo de amor está surgindo, e essa saída de cena está levando consigo a exclusividade, a expectativa de que quem ama só tem olhos para o amante, só sente atração pelo outro, uma série de equívocos nos quais as pessoas passaram a acreditar.

Enquanto o amor romântico é ocidental, o poliamor existe no mundo todo. O poliamor surgiu na década de 90 como uma nova modalidade de relacionamento amoroso. Sem ligação com uma identidade particular, esta modalidade específica da não-monogamia é uma orientação de relacionamento na qual se acredita ser possível e aceitável amar muitas pessoas e manter múltiplos relacionamentos íntimos, se houver honestidade quanto a eles e se não for pensada, necessariamente, em termos de relacionamentos sexuais[3].

O movimento, ainda em ascensão, se propõe a quebra de padrões e surge com potencial para desafiar discursos vigentes sobre monogamia e infidelidade. Como na cultura ocidental existe uma construção de sexualidade dominante, na qual um relacionamento sexual deve ser pautado por elementos chaves, (a) entre um homem e uma mulher, (b) monogâmico; o poliamor surge discutindo esse ideal de relacionamento. Também dialoga com a ideia de um relacionamento ser entre apenas duas pessoas.

No âmbito do Estado Social Democrático de Direito, que privilegia a cláusula da dignidade da pessoa humana, reconhece-se a concepção do pluralismo familiar. Esse sistema jurídico poroso, desafia os operadores do direito a encontrar soluções para essas novas demandas.

A presença de outros tipos de convivência familiar sempre existiram na sociedade brasileira, mesmo na época dos patriarcas coloniais. A diferença para a época atual fica por conta da mudança do status social que essas formações familiares adquiriram no século XX.[4]

Para Maria Berenice Dias, não há como considerar a monogamia como princípio constitucional, até porque a Constituição não o contempla, de forma que, elevar a monogamia ao status de princípio constitucional é obter resultados desastrosos, uma vez que, diante da simultaneidade não se pode simplesmente deixar de prestar tutela jurisdicional para uma das relações, sob o fundamento de que foi ferido o princípio da monogamia.[5]

Segundo a psicóloga Noely Montes Moraes, professora da PUC-SP “a etologia (estudo do comportamento animal), a biologia e a genética não confirmam a monogamia como padrão dominante nas espécies, incluindo a humana. E, apesar de não ser uma realidade bem recebida por grande parte da sociedade ocidental, as pessoas podem amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo”.[6]

Não há que se negar a opção da ordem jurídica pátria no sentido de ser a monogamia o eixo organizacional da família, até porque, com tal raciocínio estaria a se negar a influência da moral e da religião ocidental no Direito.

No entanto, diante da vida como ela é, com os contornos que vem sendo delineados no mundo globalizado, dinâmico e cada vez mais complexo, não cabe ao poder estatal repudiar formas de convivência resultantes da livre escolha de coexistência material. Negar proteção estatal, pode, conforme o caso, afetar a dignidade da pessoa humana, superprincipio que dá base e sustentação do sistema jurídico brasileiro.

Dispõe o art. 1.513 do Código Civil em vigor que: “É defeso a qualquer pessoa de direito público ou privado interferir na comunhão de vida instituída pela família.” Trata-se da consagração do princípio da liberdade ou da não-intervenção na ótica do Direito de Família.

Para Paulo Lobo, o Princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeitadas suas dignidades como pessoas humanas: à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral.[7]

Além disso, o princípio em questão mantém relação estreita com o princípio da autonomia privada, que também deve existir no âmbito do Direito de Família, que corresponde à liberdade de cada indivíduo diante dos outros membros e da própria entidade familiar.

A família, com o passar do tempo, afastou-se de sua função tradicional, tendo em vista não se tratar como interesse do Estado a vida íntima e os valores pessoais dentro da instituição familiar. O princípio da liberdade diz respeito não apenas à criação, manutenção ou extinção dos arranjos familiares, mas a sua permanente constituição e reinvenção.[8]

Segundo os melhores critérios de interpretação constitucional, existe uma cláusula de inclusão para implicitamente abranger como entidades familiares uniões afetivas outras que não somente as advindas do casamento.

A norma de proteção à entidade familiar tem como foco a personalidade de cada integrante, o valor é a pessoa e a família, enquanto locus de afetividade, realiza e dá consistência ao princípio da dignidade humana.

Não é razoável que se interprete a Constituição de forma a discriminar situações, é dizer, organizações afetivas que tenham as mesmas características, requisitos e finalidades não podem ter tratamento diferenciado.

Segundo Pereira, “o moralismo prefere sempre a formalidade e a lei em sua literalidade, enquanto o ético, a essência do Direito, e, por isso, buscará sempre nos princípios a fundamentação para mais justa adequação”[9].

A sociedade evoluiu desde os modelos retrógrados de família patriarcal, mas ainda somos banhados pelo ranço da moralidade, da cultura e da religião, mesmo que isso resulte em injustiças e possa afetar a dignidade da pessoa humana.

Neste viés, não se pode negar a existência dos relacionamentos paralelos vivenciados por inúmeras pessoas, muitas vezes de forma clandestina, frente ao temos das consequências sociais. No poliamor existe uma diversidade especial, que consiste justamente na premissa do um parceiro saber que o outro possui outros relacionamentos, baseando-se na concordância dos envolvidos que buscam a promoção harmoniosa.

Impende aqui abrirmos um parêntese para frisar que nem toda relação paralela têm o condão de se constituir uma entidade familiar.

Se as múltiplas relações se formam publicamente, e todos os núcleos têm ciência uns dos outros, em aparente tolerância, estamos diante de uma relação simultânea pública de boa fé. A clandestinidade de alguma das relações retira desta qualquer pretensão de natureza familiar, pois uma do elementos primordiais de toda relação conjugal é a ostensividade, ou seja, a publicidade da relação.

Alinhavando esse entendimento, Paulo Lobo assegura que a enumeração constitucional é meramente exemplificativa, o que não permite excluir qualquer entidade que preencha os requisitos da afetividade, estabilidade e ostensividade. Dessa maneira, por mais abrangente, o rol constitucional não é exauriente, na medida em que não elencou todos os arranjos familiares merecedores de proteção. Assim sendo, os relacionamentos que mantém uma relação pautada pelo afeto, merecem a devida proteção e reconhecimento previstos na CF/88.

Este modelo afetivo começa a despontar, especialmente pelo efeitos patrimoniais que gera no Direito, no entanto ainda possui longa trajetória até o seu efetivo reconhecimento.

A sexualidade comporta variantes e a sociedade exige uma resposta nos moldes dos padrões estabelecidos segundo variáveis conceitos culturais. Ao se fugir destes padrões, emerge o embate. Nestes casos há a necessidade de uma disciplina jurídica que autorize a efetiva tutela desses direitos ditos "anormais". Deve-se levar em conta todas as profundas transformações ocorridas nos valores sociais bem como os obstáculos transpostos pelo Direito de Família.

Há uma mudança de ótica. A ênfase do sistema jurídico pátrio está na personalidade, ou seja, a orientação da Constituição brasileira trata de promover a dignidade humana. Neste sentido, em sede de Direito de Família, a preocupação está dirigida à proteção dos filhos, garantir a efetividade dos direitos da personalidade dos integrantes da entidade familiar, independentemente do ato solene do matrimônio.

Deve-se levar em consideração que as estruturas escritas nem sempre correspondem ou são eficazes para atender as novas demandas que surgem, é dizer, as especificidades dos casos concretos. Esta realidade é nitidamente detectável nas relações interpessoais.

Deixamos claro que o princípio da monogamia, da fidelidade, do respeito e do afeto devem ser basilares nas relações familiares. Essa deve ser a regra. No entanto, quando ocorrem situações adversas daquelas previstas e aceitas pela lei, não pode o Direito se eximir de tutelar tais demandas, correndo o risco de ser omisso e falhar na sua maior finalidade que é a Justiça.

Ressalte-se que este trabalho não pretende amparar os desejos sexuais levados indiscriminadamente às ultimas consequências, mas tem por objetivo enfocar a questão da livre manifestação das múltiplas relações afetivas, marcadas pela assistência e respeito mútuos e pelo amor.


[1] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e o novo Código Civil. Coord.: Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias. Belo Horizonte: Del Rey/IBDFAM, 2002, p. 226-227.

[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil: alguns aspectos da sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 170

[3] Klesse, C. (2006). Poliamory and its ‘others’: contesting the terms of non-monogamy. Sexualities, v.9, n.5, 565-583.

[4] RUZIC, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias Simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional, p. 167.

[5] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias, p.58-59.

[6] “O Fim da Monogamia?”, reportagem da Revista Galileu, publicação da Editora Globo, outubro de 2007, pág.41.

[7] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. pág. 46.

[8] Ibid., pág. 46.

[9] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família, p.88.