PODER-SABER E A VERDADE NA PRÁTICA JUDICIÁRIA PENAL SEGUNDO MICHEL FOUCAULT

 

 

Ana Cássia Rodrigues da Silva

Márcia Regina Mourão da Silva

 

 

Sumário: Introdução; 1- Contribuição de Michael Foucault para o Direito Penal; 2- Função Punitiva; 3- Táticas Punitivas; 4- Poder-saber na prática Judiciária; 5- Disciplina como forma de manutenção de poder; Conclusão. Referências.

 

RESUMO

Este trabalho abordará a relação existente entre o poder-saber e a verdade na prática judiciária, segundo Michael Foucault, destacando as contribuições dele para o Direito Penal, as funções punitivas como forma de manutenção de poder.

Palavra-chave: Poder; Poder-saber; Direito Penal; Punição.

INTRODUÇÃO

Pretende-se averiguar as contribuições de Michael Foucault para o Direito, no que se refere ao estudo das punições dos criminosos e da própria relação jurídica existente na sociedade, confirmando o papel da verdade num processo judicial.

Abordar-se-á o significado da função punitiva presente nas sociedades relacionando-a com o poder-saber, citando táticas punitivas observadas por Foucault, nas quais são inseridas como forma de poder nas diferentes práticas ou formas jurídicas. Além de ressaltar a importância da disciplina como manutenção do poder em diferentes sociedades.

 

1CONTRIBUIÇÃO DE MICHAEL FOUCAULT PARA O DIREITO PENAL

A não tem como se falar de Foucault e não relacioná-lo ao Direito. Suas obras são recheadas de conhecimento que interessa tanto o Direito em si, como ao Direito Penal, a Criminologia e até a Psicologia, como em Vigiar e Punir ele aborda a história da punição que vai do suplício a prisão; em Verdades e Normas Jurídicas, Foucault afirma que a verdade não está entre as partes em si, mas estão de acordo com o inquérito e a partir deste na fala do magistrado que escolherá a melhor verdade.

Foucault separa duas grandes espécies de poderes: o soberano (legal ou jurídico) e a disciplina. O primeiro é o Estado (soberano) este geralmente é apoderado pelos juristas. Esse poder pode estabelecer um pacto de ordem já mencionado por Hobbes ao sugerir o pacto estabelecido no contrato social no qual servirá como forma de controle da sociedade que vive até então no ‘estado de natureza’. Quanto à disciplina esta está inserida na própria sociedade. O soberano não está interligado diretamente como anteriormente mencionado, ela moldará, observará e corrigirá os membros da sociedade. Tem caráter positivo, pois o poder disciplinar controlará indiretamente a vida social, os corpos serão docilizados, em vários espaços como na escola, nos hospitais, nos quartéis, e nas prisões.

Foucault em suas obras aborda o conhecimento como algo que não faz parte da natureza humana, é, portanto adquirido. “O conhecimento não é instintivo, é contra-instintivo, assim como ele não é natural é contra natural” (FOUCAULT, 1999.p.17). Logo temos ‘uma natureza humana, um mundo, e algo entre os dois conhecimentos. Não há entre eles nenhuma afinidade e semelhança ou mesmo elos de natureza’ (idem, p.18). O conhecimento relaciona-se como o poder e dominação.

Quanto à história da verdade, esta para Foucault também foi inventada, e é fruto das relações de poder, isso é constatado em sua obra Verdades e Normas Jurídicas, ele inicia sua ideia citando a passagem da justiça privada para a justiça pública, utilizando como origem no direito Romano-Germânico.

O Direito Germânico não opõe dessa luta a guerra à justiça, não identifica justiça e paz. Mas, ao contrário supõe que o direito não seja diferente de uma forma singular regulamentado de conduzir uma guerra entre o individuo e de desencadear os atos de vingança. O direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer a guerra. (FOUCAULT, 1999, p.56-57). (...) Entrar no domínio do direito significa matar o assassino, mas mata-lo segundo certas regras e certas normas. (idem, p.17).

Dentre essas lutas que desencadeiam o direito entre as partes, nas quais ambas lutam pela sua verdade, cabe ao Direito, através de procedimentos, de fatos e de direito. Resolver esse dilema. Adentra então à figura do mediador que fará seu veredito sobre a verdade que priorizou o Estado na figura do magistrado que imporá sua verdade.

O soberano, o poder politico vem desta forma, driblar e, pouco a pouco, substituir a vitima. Este fenômeno, absolutamente novo, vai permitir ao poder politico apossar-se dos procedimentos judiciários. O procurador, portanto, se apresenta como representante do soberano lesado pelo dano. [...] Assim na noção de crime, a velha noção de dano será substituída pela de infração. A infração não é um dano cometido por um individuo contra outro; é uma ofensa ou lesão de um individuo a ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano. (idem, p.66)

A passagem da justiça privada para a justiça pública se dá com a introdução do mediador (Estado) com o intuito de resolver os conflitos existentes entre as partes em questões. Surge assim o inquérito, que autentica a verdade. Esta é uma forma de saber-poder, pois é a partir dele que há que o embate de verdades se institucionaliza, regulamenta, o inquérito ratifica a verdade que o soberano conclui.

            Na obra Vigiar e Punir Foucault relaciona suas ideias com o Direito Penal, a lei é simbolizada no corpo punido. Segundo Foucault, (1999, p.9) “A mesma lei que é desrespeitada é a que impõe suplícios e a vontade do soberano, segregando, também, o agressor (crimino). A lei aplicada e executada procedimentalmente, num verdadeiro teatro politico”.

            Foucault trás grande contribuição ao Direito Penal ao explicitar suas ideias em relação ao histórico da punição. Durante a Idade média, o suplicio era utilizado não como pena, mas como forma de se obter a verdade tão esperada pelos interessados. Chegam a conclusão depois de muitas tragédias e sofrimento que é melhor vigiar que punir (através da prisão). “O corpo interrogado no suplicio constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar de extorsão da verdade. Passa-se do ritual estabelecimento da verdade para o cerimonial do castigo publico” (FOUCAULT, 1999, p.10).

E por fim é através das ideias de Foucault que a sociedade descobre que o poder não está nas mãos somente do Estado, está nas relações de força e ação de cada um, e está em vários espaços que muitas vezes a pessoa se utiliza desse poder e nem percebe.

 

2FUNÇÃO PUNITIVA

A punição no decorrer da história foi se modificando e com ela a sua função. Até o fim do século XVIII e inicio do século XIX, o corpo foi utilizado como instrumento direto de punição, dessa forma o condenado ou supostamente condenado passava por toda forma de tortura imaginada, com intuito de se obter a confissão do suposto crime que era acusado. Tal prática era conhecida como Suplício, que foi abolido após várias críticas em relação a tanto sofrimento e dor por parte dos apenados. Suas penas eram verdadeiros espetáculos, eles eram expostos em praças publicas para que todos vissem e dessa forma não repetisse o feito.

Diante de tantas atrocidades e pressão por parte de intelectuais como Beccaria, que expõem duras críticas ao sistema na época através da sua obra “Dos delitos as penas”, diminui e posteriormente se extingui o suplício, que tinha como função o próprio sofrimento do condenado e surge como substituição a punição da alma através da privação da liberdade, junto com outras formas punitivas que era o trabalho forçado, a interdição do domicilio e a deportação.

Nestes termos FOUCAULT assegura que:

O corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o individuo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como direito e como um bem. Segundo essa penalidade o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigação, e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos [...]FOUCAULT (1987, p.14).

Na pena restritiva de liberdade cabe ao condenado obedecer, cumprir a ordens, normas preestabelecidas no julgamento, através do Estado que é representado pelo Poder Judiciário.

 

3TÁTICA PUNITIVA

As táticas punitivas para Foucault têm aspectos “positivos” e uma “produtividade” gerados pela prisão. Essas táticas consistem em excluir, organizar uma compensação, marcar e aprisionar. A exclusão ocorre na maioria das sociedades, trata do isolamento do condenado em um local a margem da sociedade, na prisão, local onde há outros com os mesmos problemas sociais. Pessoas que não seguiram as leis e regras do seu meio, portanto mantem-se excluídas. A compensação é uma espécie de acordo entre o lesado e o que provocou a lesão. A tática punitiva de marcar consiste na marcação do criminoso através de cicatriz, no qual ficará assinalado configurando um sinal do crime. E por fim o próprio aprisionamento.

4 PODER-SABER NA PRÁTICA JUDICIÁRIA

Na maioria dos países o saber sempre esteve atrelado ao poder principalmente no que se refere à prática judiciária. No Brasil não foi diferente o saber jurídico sempre esteve atrelado ao poder e esse poder é o politico.

O curso de Direito no Brasil só vigorou no inicio do século XIX. Até então os bacharéis incluindo outras áreas como a Medicina e Engenharia se formavam em Portugal, a metrópole do Brasil. Retornando a historicidade do curso de Direito, este surge no Brasil em 1827, com a necessidade de formar aqui mesmo a estrutura burocrático-administrativa e jurídico-administrativa.

Com o fim da escravatura em 1888, e posteriormente a Proclamação da República os bacharéis de Direito são influenciados pelas ideias do liberalismo vinda da Europa e prega a voto universal, igualdade jurídica e democracia.

Outro fato histórico que se interligará diretamente aos bacharéis de Direito é a situação econômica vivida em meados dos nos de 1930, totalmente capitalista voltado para o mercado e com os bacharéis não vai ser diferente. Nessa época eles serão fortemente influenciados pelo positivismo até então buscavam o naturalismo para seus embasamentos jurídicos.

Anos de 1950, o Positivismo ganha espaço no meio jurídico. Nos anos da Ditadura, de 1964- 1984, a grade curricular do curso de Direito se modifica com o objetivo de se tornar menos critico-reflexivo. Para então surgir bacharéis totalmente despolitizados sem interferência na situação politica vivenciada. Isso só se modificara com as Diretas Já em 1985 com a queda do governo militar.

Com a democracia houve varias mudanças no meio jurídico como o surgimento da OAB Ordem dos Advogados do Brasil, os Direitos Humanos passou a atuar com maior desenvoltura, as pessoas voltaram a usufruir do voto, mas o poder (Estatal ou não) ainda é muito forte no meio jurídico. Evidenciado principalmente nas sentenças milionárias, nas sentenças que os poderosos ganham. Sentenças em que os pobres são condenados por um crime de pouca gravidade, e ricos sendo absorvidos por corrupção e desvio de dinheiro publico, enfim por situações revoltantes que se vê todos os dias.

5 DISCIPLINA COMO FORMA DE MANUTENÇÃO DO PODER

O corpo mais uma vez entra em cena, não como forma de punição, mas como instrumento disciplinar, com objetivo de modelar, manipular, docilizar com o objetivo de torna-lo obediente, hábil para assim manter-se ou aumentar o poder dominante.

Essa prática de disciplina através da utilização do corpo é muito antiga, mas ela só irá ser docilizado, treinado, torna-se um soldado fabricado em meados do século XVIII.

O corpo hábil e eficaz surge com a disciplina que obtidas com técnicas que consiste na distribuição dos indivíduos no espaço, assim temos os alunos numa sala de aula, eles são chamados em ordem, são colocados em filas, devem obediência aos que tem cargos hierárquicos como professores e diretores. Isso ocorre também em quarteis e fábricas onde eles obedecem a uma hierarquia, além do cumprimento de horários, etc. Outra forma de controle é a elaboração temporal do ato, que consiste num programa com ritmo coletivo e obrigatório, como a marcha dos soldados, o canto do Hino Nacional. Donde o corpo e o gesto, era outra forma de disciplina, exemplo a caligrafia e a ginastica. Há ainda a articulação corpo objeto, esta mais voltada para os quarteis, através da manipulação das armas e por ultimo a utilização exaustiva, era o próprio treino a prática dos exercícios.

Segundo o que FOUCAULT (1997) descreve:

[...] a disciplina não pode se identificar como uma instituição nem como um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos e técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação de alvos; ela é uma ‘física’ ou uma ‘anatomia’ do poder, uma tecnologia. E pode ficar a cargo de instituições especializadas (penitenciarias) seja de instituições que dela sirva como instrumentos essenciais para um fim determinado (coisas de educação, os hospitais), sejam de instalação preexistente que nela encontram maneira de reforços ou de organizar seus mecanismos inteiros de poder [...] seja enfim de aparelhos estatais que tem por função não exclusiva, mas principalmente fazer reinar a disciplina na escala de uma sociedade(a policia).

A disciplina atua diretamente como mantenedora do poder, e isto é constatado desde os primeiros anos de vida do ser humano e na maioria das vezes se perdura até o final dela. Ele aprende que através de normas ou regras, deve se comportar, como manter a postura, falar respeitar enfim aprende como se colocar diante de situações e pessoas. Depois à medida que necessita de outras instituições fora da família como a escola, também se muda e aprende novas regras como já mencionadas como as filas, à ordem.  Enfim é através de vários aparatos que surge a hierarquia e com ela o poder que não é exercido somente pelo Estado, mas por todos seja dentro da família, dos hospitais, dos quarteis ou na própria sociedade.

É importante salienta que esse poder nem sempre é negativo, pois quando se refere ao poder geralmente associa-se a dominantes e dominados, pobres e ricos aos favorecidos e desfavorecidos, mas há o outro lado e muitas das vezes esse poder pode ser salutar e engrandecedor. Como enfatiza FOUCAULT (1997, P.172).

(...) deixar de escrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele ‘ exclui’, ‘reprime’, ‘realça’, ‘censura’, ‘abstrai’, ‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade o poder produz campos de objetos e rituais da verdade. O individuo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção.

CONCLUSÃO

 

São de grande relevância as contribuições que Foucault deu não só ao Direito Penal, mas ao próprio Direito, a Criminologia e até a Psicologia, pois em várias obras abordou assuntos interessantes para tais áreas como a disciplina, a punição, o encarceramento, e o suplício além do estudo das verdades. Foucault com suas obras Vigiar e Punir, Microfísica do Poder, A verdade e as formas jurídicas engrandece o meio jurídico, pois é através de tais obras que o Poder é visto de forma diferente do que é costume, ou seja, o Poder centrado no Estado. O Poder segundo Foucault é uma relação de forças que não está concentrado no Estado, mas em todos, e esse poder interliga o saber que não é desvinculado um do outro em nenhum momento.

Foi através de suas ideias que passa-se a ver espaços até em então fora de qualquer suspeita como hospitais, escolas e hoje as indústrias como locais onde os corpos são docilizados, manipulados, orquestrado em nome do Poder. E sem nem perceber a sociedade está inserida nestes locais e não sabem o que está por trás, se é a educação em si, o cuidado com a saúde e o término de um determinado produto ou há algo de mais pretencioso nestes ambientes.

 

REFERÊNCIAS

FONSECA, Marcio Alves da.Michel Foucault e o direito.2 ed. São Paulo: Saraiva,2012.

FOUCALT. Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Ed. Cadernos da PUC/RJ, 1974.

________________As palavras e as coisas: uma arqueologia das Ciências Humanas: Editora Martins Fontes, 1997.

                                                             

________________ Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal , 1979.

________________Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Tradução de Ligia M. Ponde Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1997.

ROCHA, José Manuel de Sacadura. Michel Foucault e o direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.