PODER PASTORAL, TECNOLOGIAS DO PODER E INSTITUIÇÃO ESCOLAR:

O professor seria o “novo pastor” a serviço da máquina estatal?

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Túlio Pascal Rios dos Santos

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Graduando em Filosofia na UFG

Bolsista do PIBID/CAPES

As artes de governar

 

O que é governo e como governar são temas que desde Platão e Aristóteles vem ocupando um espaço considerável na história da Filosofia Política. A concepção grega em geral a respeito do que é governar diverge de outras noções como a Hebraica e a Egípcia. Existe uma literatura milenar de onde é possível buscar os sentidos da palavra governo que diferem do sentido político. Tal significado especificamente encontra-se de modo diferente na Mesopotâmia com o Egito e ao norte da Palestina com os Hebreus. Nessa literatura milenar a palavra “governo” relaciona-se ao governo das almas, a promessa de paraíso e a salvação. Ou seja, um sentido ligado à espiritualidade. Donde o magistrado, portanto, o homem político e o governo religioso constitui assim uma antítese. Através de um resgate semântico bastante geral feito por Michel Foucault através da consulta a dicionários franceses podemos verificar que as artes de governar arcaicas da espiritualidade oriental são divergentes da forma política, sobretudo, a partir do século XVI, no Ocidente. Para falar das duas formas de governar, a oriental, e a grega, é necessário levarmos em conta que em um sentido bem genérico, governar significa dirigir, direcionar o outro, comandar a si mesmo, se guiar ou ser guiado em um dado caminho.

Há outros sentidos para a origem da palavra, como o significado de subsistência. Foucault cita um texto para assinalar essa forma: “Trigo suficiente para governar Paris por dois anos” (FOUCAULT. 2008. Pág. 163). O trigo é a subsistência da cidade, e governa a alimentação dos habitantes. Há também o significado moral onde “governar” pode ser “conduzir alguém” no sentido espiritual do governo das almas ou pode dizer “governar” significando “impor um regime a um doente”. Nessa última perspectiva o médico governa o doente, ou ele mesmo se governa quando impõe a si mesmo certos escrúpulos. Ainda, por fim, há um sentido de “relação verbal”; governar a alguém pode ser falar com outrem, entreter uma conversa, governar um diálogo. Ademais, qual a figura física que governa? Se é que seja possível indagar de quem é essa função. No Egito e no povo Hebreu essa figura está ligada ao pastor. O deus é um pastor. Podemos sustentar a afirmação com a seguinte citação egípcia; “Ó Rá, que velas quando todos os homens dormem, que procuras o que é benéfico para teu rebanho” (FOUCAULT, 2008, p. 171). Especificamente a respeito dos Hebreus estes assumem um papel de maior relevo. É entre os hebreus que o tema pastorado irá se intensificar e no Ocidente precisamente a pastoral tem seu início e seu maior grau de desenvolvimento com o cristianismo a partir do século III.

Quanto ao Cristianismo, na sua alta espiritualidade - que abarca os séculos II, III e IV – a noção de governo é ainda mais desenvolvida e é acentuadamente diferente da noção grega. Doravante, antes de nos determos à tecnologia do poder pastoral, cabe mostrar as divergências entre a forma de governar grega e cristã. Se o deus do Oriente, como dito, é um pastor, que exerce sua soberania pela tecnologia pastoral, que tem suas especificidades, suas técnicas, suas regras, suas leis, seus procedimentos, ele se encontra em oposição ao deus grego que se ocupa em governar a cidade. Na Grécia governam-se os indivíduos apenas na medida em que esses se encontram habitando as cidades, ou seja, simplesmente de forma indireta. Postulação que devemos considerar para manter a distinção genealógica da palavra “governo”. Afinal, a palavra em sua origem não está ligada a um sentido político. Foucault explicita que trata-se de governar os homens. Vejamos: “Nunca se governa um estado, nunca se governa um território, nunca se governa uma estrutura política. Quem é governado são sempre pessoas, são sempre homens, são indivíduos ou coletividades. [...] Os homens é que são governados”. (FOUCAULT, 2008, p. 164). Podemos considerar a metáfora do barco para esclarecer como, então, se a palavra governar diz respeito à condução dos homens, como então se dirige uma cidade?

[...] É a própria cidade, que é como um navio entre os escolhos, como um navio em meio a tempestade, um navio que é obrigado a bordejar a fim de evitar piratas, os inimigos, um navio que tem de ser levado a [um] bom porto. O objetivo do governo, aquilo sobre o que recai o ato de governar, não são os indivíduos. O capitão ou o piloto do navio não governa os marujos, governa o navio. É da mesma maneira que o rei governa a cidade, mas não os homens da cidade (FOUCAULT, 2008, p. 165).

 

O propósito dessa passagem consiste em tentarmos pontuar o governo dos homens da igreja cristã e o da cidade por parte dos gregos. Em síntese, Foucault salienta tal dicotomia: “Porque nunca, entre os gregos, vocês encontrarão a ideia de que os deuses conduzem os homens como um pastor pode conduzir seu rebanho” (FOUCAULT, 2008, p. 168). É inútil insistir nessa antítese grega-cristã, uma vez que poderíamos nos perder em uma dialética sem fim. O que nos interessa é marcar claras distinções entre os gregos e a igreja cristã e respectivamente sobre suas formas de poder. A razão de ser dessas demarcações é bem objetiva; o poder pastoral em junção com o poder político é o sustentáculo do exercício de poder do Ocidente moderno.

Podemos nos assustar ao ver que na literatura grega palavras como “apascentar”, “pastor”, “pai”, tem certa relevância. Enfim, cabe citar Aristóteles, em sua “Ética a Nicômaco” para sustentar a hipótese de que nos gregos a noção de governar aponta para a estrutura da cidade e a preservação da mesma.

 

Ora, a Política (...) que determina quais as ciências que devem ser estudadas num Estado, quais são as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto; e vemos que até as faculdades tidas em maior apreço, como a estratégia, a economia e a retórica, estão sujeitas a ela. Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo como para o Estado, o deste último parece ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar (ARISTÓTELES, 1991, 1094b. grifo nosso).

 

Como já foi dito, o governo não é um Estado, nem uma estrutura política. Em Aristóteles é evidente que o fim maior da legislação não é o homem, mas sim o Estado e a preservação do mesmo. Nesse sentido, a ciência política é que vai se ocupar com o estado, e em oposição, a pastoral, com os indivíduos. Ou seja, o homem político cuida da disciplina dos corpos enquanto o pastor irá zelar das almas. O homem político é diferente do pastor. Foucault o define;

 

Seu papel seria agora o de tecer um tecido sólido para a cidade. Ser homem político não queria dizer alimentar, cuidar e educar sua primogenitura, mas associar: Associar diferentes virtudes; associar temperamentos contrários (Fogosos ou moderados), servindo-se da “lançadeira” da opinião popular. A arte real de governar consistia em reunir os vivos ‘numa comunidade que repousa sobre a concórdia e a amizade’, tecendo assim ‘o mais magnífico e o melhor dos tecidos’. Toda a população, ‘escravos e homens livres, envolvidos em suas dobras’(FOUCAULT, 1979 p.. 34).

 

Embora possamos conceber na literatura pitagórica a concepção de que o magistrado ou o homem político é um Philánthropos, e que tem zelo pelo o outro tal como o pastor, Foucault é contundente ao tentar afastar a noção de pastorado da Grécia. Afirma o filósofo: “essa tradição pitagórica é uma tradição, se não marginal, em todo caso limite” (FOUCAULT, 2008, p. 183). Mais adiante sentencia: “Esse tema está absolutamente limitado aos pitagóricos” (FOUCAULT, 2008, p. 184). Em suma, esse posicionamento classificatório entre o pensamento grego e o cristão, se ele nos é caro, é para preservar a ideia do surgimento da pastoral no Ocidente através do cristianismo propriamente, e não na Grécia, sem deixar, é claro, de constatar as apropriações cristãs feitas do mundo helênico. Essa estrutura de exercício do poder no Ocidente que é tão única se derivou do pastorado e o

Homem ocidental aprendeu durante milênios o que nenhum grego sem dúvida jamais teria aceitado admitir, aprendeu durante milênios a se considerar uma ovelha entre as ovelhas. Durante milênios, ele aprendeu a pedir sua salvação a um pastor que se sacrifica por ele”. (FOUCAULT, 2008, p. 174)

 

A tecnologia do poder pastoral e o pastor

 

Por mais que o mecanismo pastoral tenha entrado em crise no século XVI, ele não foi totalmente liquidado, tendo se desenvolvido em estruturas ainda mais complexas e sutis. Na história “houve revoluções anti-feudais, nunca houve uma revolução anti-pastoral”. (FOUCAULT, 2008, p. 199). Apesar das insurreições no século XVI - sobretudo as camponesas - a pastoral ainda assim tornou-se mais intervencionista, nunca antes influenciara tanto a vida material e temporal.

Essa forma de governar os homens, oriunda da igreja cristã, é uma ideia de governo “cuja origem deve ser buscada no oriente, num oriente pré-cristão, e no oriente cristão depois”. (FOUCAULT, 2009, p. 166). Um regime religioso antigo que perpassa a Idade Média e atinge o Ocidente moderno. Considerando a partir da alta Idade Média (séculos VI a IX) podemos perceber os desdobramentos da pastoral, sob a economia das almas e a partir das diversas técnicas que a igreja cristã absorveu do mundo helênico. A figura central dessa arte de governar é o pastor. Ele deve governar os homens tal como Deus governa a natureza. Vejamos a sua grande relevância em contraste com a função do homem político:

 

O chefe político apazigua as hostilidades na cidade e faz prevalecer a unidade (...) o pastor reúne os indivíduos dispersos pela a sua voz. Basta que o pastor desapareça para que o rebanho se disperse. Enquanto na Grécia antiga o bom legislador instituía boas leis e a cidade continuava fortificada mesmo sem ele (FOUCAULT, 1979, 25; grifo nosso).

 

O pastor faz de tudo pela totalidade do seu rebanho e por cada ovelha. A pastoral “é um poder individualizante” (FOUCAULT, 2008, p. 172). Por definição, a individualização força o indivíduo a voltar-se para si mesmo e o liga em sua identidade de maneira coercitiva (FOUCAULT. 1982).

 

O pastorado tinha efeitos individualizantes: ele prometia a salvação a cada um e de forma individual; ele implica a obediência, mas como uma relação de individuo com indivíduo, garantindo pela a própria obediência a individualidade; ele possibilitava que cada um conhecesse a verdade; melhor, a sua verdade. O homem ocidental é individualizado através do pastorado, na medida em que o pastorado o leva à salvação que fixa sua identidade por toda a eternidade, em que o pastorado o sujeita a uma rede de obediências incondicionais, em que ele lhe inculca a verdade de um dogma no momento mesmo em que lhe extorque o segredo da sua verdade interior. Identidade, sujeição, interioridade: a individualização do homem ocidental durante o longo milênio do pastorado cristão foi realizada à custa da subjetividade. Por subjetivação. (FOUCAULT. 2008, p. 310).

 

A individualização, como as demais técnicas da pastoral, tornam-se mais complexas na modernidade de tal modo que leva Foucault a dizer que o estado é “como a matriz moderna da individualização ou uma nova forma de poder pastoral”. (FOUCAULT, 1982, p. 7) Não podemos supor que o Estado moderno se constituiu de maneira a sobrepor o indivíduo; o Estado existe por si só. Foucault o define como uma estrutura muito articulada onde os indivíduos podem ser integrados sob uma condição: “que [sua] individualidade fosse moldada numa nova forma e submetida a um conjunto de modelos muito específicos”. (FOUCAULT, 1982, p. 7). A individualidade do sujeito é constituída em sua subjetividade na medida em que integra e se assujeita a esses “modelos específicos” de subjetivação. É necessário, portanto, a libertação não somente do Estado, mas da imposição de uma individualização que nos foi posta por vários séculos. Ou seja, libertação é um espaço possível para “promover novas formas de subjetividade”. (FOUCAULT, 1982, p. 8).

 

Da pastoral das almas ao Estado político

 

No Estado há uma nova perspectiva de condução dos homens. Não apenas por individualização, como no pastorado, mas ademais, pela totalização. Ao homem político não é viável que demande cuidados singulares com cada individuo. A totalidade e a individualização, observa Foucault, desenvolveu-se por meio de mecanismos complexos, pois é unicamente na nossa sociedade ocidental que essas duas técnicas tão astutas estão presentes em conjunto num “duplo constrangimento”. A razão de Estado, cujo fim tem sua própria conservação e sua permanência, passa a vigiar não apenas o território. Por meio da polícia o Estado se ocupa agora com o homem. Governar a todos e a cada um é então possível porque a “polícia governa não pela lei, mas intervindo de modo específico, permanente e positivo na conduta dos indivíduos”. (FOUCAULT, 2006, D.E. V p. 315). Portanto, a polícia é uma profissão de um novo poder pastoral. É preciso ter em mente que a palavra “Polícia”, assume, na razão de Estado um papel diferente do que se entende por polícia hoje. Ora,

 

A partir do século XVII, vai-se começar a chamar de “polícia” o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado. Em outras palavras, a polícia vai ser cálculo e a técnica que possibilitarão estabelecer uma relação móvel, mas apesar de tudo estável e controlável, entre a ordem interna do Estado e o crescimento das suas forças. (FOUCAULT, 2008, p. 421).

 

O Estado, apesar de guardar resquícios da Techné technón - a tecnologia do poder pastoral – não nasceu dessas artes de governar, como as técnicas de governar os homens não nasceram no século XVII. (FOUCAULT, 2008, p. 162). Foi por uma nova tecnologia que o Estado adquiriu a forma que conhecemos. Aplicando a economia familiar em nível estatal, a estatística, o cálculo, técnicas gregas arcaicas, a razão de Estado se tornou muito mais sofisticada.

 

O ensino de filosofia: o professor seria o “novo pastor” a serviço da máquina estatal?

 

Como vimos, o Estado não nasce numa tentativa de sobrepujar o indivíduo. É precisamente o contrário. Desde que se concorde com os “modelos específicos” de subjetivação o indivíduo integra-se às custas de sua subjetividade. O sujeito é objeto de interesse do Estado. Ele “lhe pede para viver, trabalhar, produzir e consumir, como lhe exige morrer” (FOUCAULT, 2006, p. 308.). Dessa maneira, o sujeito irá se constituir sob algumas técnicas cristãs remanescentes, como a direção de consciência e a extração da verdade. Assim como na confissão cristã, a extração da verdade de si mesmo tem um papel primordial para a obediência integral no âmbito da razão de Estado. A verdade irá circular pelas mais variadas estratégias do discurso.

 

A ‘verdade’ está centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem [...]. É produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidades, exército, escritura, meios de comunicação). Enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas ‘ideológicas’)” (FOUCAULT, 2000, p. 13; grifos nossos).

 

A subjetividade torna-se fabricada, por um processo de sujeição onde o individuo “é sujeitado em redes contínuas de obediência, de um sujeito que é subjetivado pela extração de verdade que lhe é imposta” (FOUCAULT, 2008, p. 243). Novamente, podemos nos reportar às formas grega e cristã e apontar distinções entre o governo de si e dos outros. O governo de consciência do modelo grego era direcionado por um filósofo. O individuo examinava todas as noites sua consciência para que adquirisse controle de si mesmo, e fosse então senhor de si. A direção de consciência grega, além de ser episódica, era como um consolo quando o outro passava por dificuldades, não era uma direção permanente. Ela faz com que o individuo se torne apático às perturbações da alma e, com isso, controlava a si mesmo pela renúncia dos prazeres do corpo. No cristianismo, a direção de consciência é absolutamente obrigatória, constante e permanente, recaindo sobre tal procedimento uma obediência total. O exame de consciência aplicado no cristianismo é um instrumento para extrair a verdade. Só se examina sua consciência para dizer ao diretor uma verdade. A verdade sobre si mesmo está, portanto, ancorada na dependência do dirigido para com o diretor. Ser um diretor de consciência na tecnologia pastoral exige conhecer a consciência do outro, seus pensamentos, seus sentimentos, suas tentações, seus pecados, sua relação com a santidade, e a capacidade de dirigi-la.

Tal como o diretor de consciência, a polícia governa, de forma permanente, intervindo na conduta dos indivíduos. Se a polícia é um novo pastor, quem mais poderia reclamar para si o título de pastor? Foucault levanta outras profissões pastorais:

 

O agricultor, o padeiro é um rival do rei, é pastor da humanidade. Mas o médico que trata os que estão doentes também é pastor, exerce função de pastor, o professor de ginástica, o pedagogo que cuida da boa educação das crianças, da sua saúde, do vigor do seu corpo, da sua aptidão, estes também são pastores em relação ao rebanho humano. Todos podem reivindicar ser pastores e, portanto, são rivais do homem político (FOUCAULT, 2008, p. 191).

 

O pedagogo, o professor, que cuida da educação dos outros, também não estaria permanentemente interferindo na conduta e na subjetividade dos seus alunos? Assim, como a polícia, que é uma estratégia de controle do mecanismo estatal, o professor não estaria exercendo tal função de pastoreio?

Assim como um preceptor, o professor tem por atribuição fazer com que seu orientando tenha uma formação ética, além de transmitir o conteúdo de sua disciplina e de formar segundo uma ética, tem por dever de lei, a formação de um pensamento crítico e autônomo. Veja o que a LDB diz a respeito de suas funções em sala de aula: “O aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (LDB, capítulo II – Da educação básica; seção IV – Do ensino médio; artigo 35, inciso III. Grifo Nosso). Se o Estado, como aponta Foucault, se interessa pelo indivíduo quando este pode fazer alguma coisa pelo poderio do próprio Estado, é necessário então que se fabrique indivíduos que sirvam a essa lógica estatal. A instituição escolar passa a ser uma ótima indústria, onde constrói subjetividades que sirvam para o Estado. Então, a formação ética, crítica, e autônoma, interessa sim ao Estado, desde que, o que se entenda por essa “formação” seja normatizada e regida pelo Estado. Se a educação é a oportunidade de ascensão social, torna-se o objetivo a ser alcançado pela sociedade. Dentro desse aparelho regido por uma razão normativa a relação entre dirigido e diretor se torna ainda mais eficaz para o assujeitamento. É na função do professor que a razão de Estado irá buscar aplicar a direção de consciência cristã. Por meio de aulas, avaliações, o professor transmite e extrai a verdade. Como sabemos, essa prática cristã não tem outra finalidade. Se não esta: o estado de obediência total. O aluno é incutido a obedecer, segundo a “verdade” transmitida pelo o professor. Esse procedimento, do qual o aluno é submetido em sala de aula, se assemelha com a prática cristã de direção de consciência, na medida em que o professor governa o outro não para que ele aprenda a governar a si mesmo, mas para que o outro se torne ainda mais dependente deste. Por conseguinte, para que seja passivamente conduzido. É necessário que o professor extraia a “verdade” do aluno. A verdade de si mesmo, para que esta possa ser moldada segundo a necessidade de conservação e de aumento das potencialidades do próprio Estado.

Diante do exposto, como pensar o ensino da Filosofia? A atividade filosófica, por estar ligada à espiritualidade,

 

postula que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito. (...) Postula a necessidade de que o sujeito se modifique, se transforme, se desloque, torne-se, em certa medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo, para ter direito ao acesso à verdade. A verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito (FOUCAULT, 2011, p.16).

 

Podemos sugerir uma definição para a espiritualidade, a partir do que Foucault observa. “‘Espiritualidade’ (é) o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, etc., que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade”. (FOUCAULT. 2011. Pág.15). O ensino da Filosofia está ainda ligado à espiritualidade na medida em que o professor postula que o aluno só tem acesso à verdade por intermédio do mesmo. A verdade do conhecimento só é dada ao aluno sob a condição de que este se modifique, segundo preceitos pedagógicos. Ademais, a espiritualidade postula que o sujeito não é capaz de verdade, mas que essa verdade pode salvá-lo, e configurá-lo. É o ensino dessa espiritualidade, sobretudo a cristã, que interessa, para a máquina Estatal. Pois o professor, ensinando, segundo essa perspectiva irá transfigurar a subjetividade de seu aluno, modulando-a conforme a necessidade do Estado. O ensino da Filosofia, ligado a espiritualidade, resulta em um estado de obediência integral, de passividade, suprimindo o governo de Si, e consequentemente, o governo dos outros. Pois para exercer atividade sobre o outro é necessário antes, governar a si mesmo.

Ou seja, para ter acesso a essa “verdade”, é necessário à destruição do próprio “Eu”, para que ele se modifique, segundo a formação ética, crítica e autônoma que o professor lhe incute. A colonização cristã do Ocidente, inevitavelmente, ainda atinge as práticas de ensino que, estrategicamente são apropriadas pelo Estado.

Bem, o que apresento aqui é uma hipótese de trabalho, é uma possibilidade teórica a ser investigada. Dirá Foucault, “O trabalho teórico não consiste em estabelecer e fixar um conjunto de posições sobre as quais eu me manteria e (que), na sua suposta ligação coerente, formaria um sistema”. (FOUCAULT. 1980. Do governo dos vivos. Excerto da aula de 30 de janeiro de 1980).

 

 

 

 

 

 

 

Referência Bibliográfica

 

FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. 1. Ed. São Paulo. Martins Fontes, 2008.

 

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do Sujeito. 3. Ed. São Paulo. Martins Fontes, 2011.

 

FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos V, Ética, sexualidade, política. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta; tradução Elisa monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa.-2ed.-Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. 1980.

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. 1982.

FOUCAULT, Michel. Microfisica do Poder. 15. Ed. Organização e introdução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2000.

FOUCAULT. Michel.“Omnes et singulatim” Para uma crítica da razão pública (1979)

CANDIOTTO, Cesar. Foucault e a crítica da verdade. 2. Ed. Belo horizonte. Autêntica editora, 2013.

MENEZES. Leandro. Uma análise da trajetória das artes de governar no pensamento de Michel Foucault. 2011.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. — São Paulo : Nova Cultural, 1991. — (Os pensadores; v. 2).