1.   PODER FAMILIAR

1.1.     Evolução Histórica

Desde a antiguidade, a família era constituída com o fim específico de procriação e criação dos filhos, isto é, o vínculo tanto era fundado na perpetuação da espécie que em algumas sociedades como na babilônica, apesar de monogâmica, o marido poderia buscar outra esposa se a primeira não pudesse conceber ou ainda em caso de doença grave[1].

O poder sobre a família – mulher e filhos –, os bens e os escravos era do pater (pai) e, por isso, conhecido até os tempos modernos como pátrio poder. Em Roma, o pai era o chefe do lar e conduzia a religião familiar, estabelecia a disciplina e a ordem. O pater poderia punir, vender e matar os membros de seu clã e detinha todo o patrimônio da família, que não possui bens individuais (auctoritas[2]), tampouco capacidade de direito, eram alieni juris[3].

O abrandamento da autoridade do pater foi levado por povos estrangeiros, no decorrer dos tempos, como uma evolução da família de sorte a restringir tal poder conferido ao pai[4].

É certo, entretanto, que a transformação do poder de auctoritas para um múnus, ou seja, um efetivo encargo, não se deu de forma imediata[5], conduzido por movimentos pela emancipação e liberação social da mulher, mormente após a Revolução Industrial e finalmente com a Declaração Universal da Organização das Nações Unidas, em 1948, o patriarcado foi substituído pelo princípio da igualdade por co-gestão[6].

Com a evolução dos conceitos de igualdade, homem e mulher passaram a conduzir os interesses da família conjuntamente, afastando a supremacia masculina arraigada na sociedade antiga, prevalecendo assim os reais interesses de proteção que devem sustentar a família, mormente a prole.

Desta forma, culmina-se em um novo conceito de poder, mais acertadamente chamado de poder familiar, que objetiva a proteção dos filhos e não um benefício de um dos genitores.

Na noção contemporânea, o conceito transfere-se totalmente para os princípios de mútua compreensão, de proteção aos menores e dos deveres inerentes, irrenunciáveis e inafastáveis da paternidade e maternidade[7].

 No Direito Brasileiro, com a influência das ordenações portuguesas, tal transformação deu-se de forma ainda mais paulatina.

O Código Civil de 1916, sob a égide da Constituição de 1891, dispunha que o marido era o chefe da sociedade (artigo 233), poder corroborado ainda pela incapacidade relativa da mulher casada, submetendo-a ao poder do marido. Clóvis Beviláqua e Lafayette Rodrigues Pereira concordavam que o poder da família deveria estar concentrado nas mãos de um só dos cônjuges, o marido, que lhe conduziria[8].

Pouco a pouco foi sendo abandonada a ideia de superioridade do homem como característica para sua representação da família, reconhecendo-se a necessidade de participação de ambos os cônjuges na administração dos assuntos da sociedade conjugal. Tal afirmação foi positivada na Lei 4.121 de 27.08.1962, o Estatuto da Mulher Casada, alterando o art. 380 do Cód. Civil de 1916, conferindo-lhe a seguinte redação: “Durante o casamento, compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade”. Além disso, outras duas alterações nos artigos 393 e 248 do antigo diploma civil trouxeram expressiva evolução da matéria. A primeira dispôs que a mulher viúva que se casasse não perderia os direitos do pátrio poder em relação aos filhos do casamento anterior e a segunda conferiu à mulher casada a prerrogativa de exercer o direito que lhe competir sobre as pessoas e os bens dos filhos do leito anterior[9].

A verdadeira revolução no direito de família brasileiro veio, contudo, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, consagrado inicialmente a igualdade entre o homem e a mulher em seu art. 5º, I, e, especificamente no plano familiar, igualou-os no exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal em seu art. 226, §5º, dentre outras mudanças significativas, não recepcionando, portanto, leis esparsas e muitos dispositivos do Código Civil[10].

Com o advento da Lei nº 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, foram consagrados os ideais de igualdade entre os cônjuges e após longas décadas, foi finalmente aprovada a Lei nº 10.406/02, conferindo nova redação à legislação civil brasileira em consonância com os dispositivos constitucionais.

A alteração do termo “pátrio poder” para “poder familiar”, contudo, ocorreu posteriormente com a Resolução nº 01/2000, mas a denominação ainda é criticada, na medida em que mantém a ênfase do poder. De qualquer forma, a mudança do termo não trouxe um novo instituto jurídico, mas uma adequação ao já disposto pela Constituição Federal[11].

Sendo assim, tem-se que poder familiar deve ser compreendido como um conjunto de obrigações dos pais, afastando-se mais da ideia de poder e aproximando-se à de dever, a de um encargo legal atribuído aos pais. A autoridade dos genitores visa à proteção e adequada formação dos filhos[12].

A titularidade do poder familiar é dos genitores. O poder familiar decorre da paternidade e da filiação e não do casamento, portanto, ninguém perde hoje o exercício do poder familiar com a separação judicial ou divórcio, competindo, normalmente a um dos genitores a guarda.

1.2.     Natureza Jurídica

Como já dito, dos primórdios até a contemporaneidade o poder sobre a família resumia-se como verdadeiro conjunto de direitos. O deslocamento da centralidade de interesses, que passa da figura do pai (ou dos pais) para a figura dos filhos, encontra respaldo, por um lado, no próprio princípio de justiça: tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais[13]. Por outro lado, a noção de obrigação dos pais de proteger e educar os filhos provém de uma racionalidade lógica que decorre das necessidades e inclinações próprias da pessoa humana[14]. Desta forma, é a fragilidade dos filhos e, portanto, a necessidade de proteção que deve nortear o poder familiar[15].

Suprimida a distinção entre os filhos (art. do CC), tem-se que o exercício do poder familiar resume-se em regular a criação, a educação e inserção dos filhos na sociedade e, no que concerne à natureza jurídica do poder familiar, tem-se que não há de fato um consenso na doutrina, mantidos, contudo, os elementos essenciais, seja definido como múnus, dever ou função.

Se definida a natureza jurídica de função, ou múnus, certo é que será na realidade uma função de ordem pública, ou um múnus público, na medida em que o poder familiar abrange não apenas a proteção, mas na capacitação do filho para seu desenvolvimento em sociedade[16].  Neste sentido, pode-se afirmar que enquanto função o poder familiar é o poder vinculado a uma finalidade específica, tanto que recebe a intervenção do Estado para garantir a prevalência dos melhores interesses dos filhos em detrimento da vontade dos pais[17].

1.3.     Conteúdo do Poder Familiar

O conteúdo do poder familiar vem disposto de forma abrangente no art. 229 da Constituição Federal que dispõe que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e regulado no art. 1.634 do Código Civil que define a função dos pais quanto aos filhos menores da seguinte forma:

Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:

I - dirigir-lhes a criação e educação;

II - tê-los em sua companhia e guarda;

III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;

IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;

V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;

VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;

VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

 

Tal função também vem disposta no Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 22 que dispõe: aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.

No que concerne à esfera patrimonial do exercício do poder familiar, Maria Helena Diniz elenca as seguintes incumbências aos pais: a administração dos bens dos filhos menores sob sua autoridade ou não emancipados (art. 1.689, II do CC), impedidos, porém, do recebimento de qualquer remuneração e o usufruto sobre os bens dos filhos menores que se acham sob o seu poder (art. 1.689, I do CC), irrenunciável e dependente de registro se recair sobre imóvel[18].

1.3.1. Dirigir-lhes a criação e educação

O dever de criar constitui dever legal e moral de prover os filhos dos meios para sua subsistência e instrução de acordo com seus recursos e posição social, preparando-os para a vida, tornando-os úteis à sociedade, assegurando0lhes todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.

Maria Helena Diniz complementa afirmando que cabe aos pais dirigir espiritual e moralmente os filhos, formando seu espírito e caráter, aconselhando-os e dando-lhes uma formação religiosa[19].

O dever de educar abrange não apenas o dever de prover a educação formal de escolarização em estabelecimento de ensino, mas também a educação informal que consiste na atuação direta e permanente dos pais na vida do filho, pois é desta forma que serão passados os valores com um ideário filosófico e religioso à criança[20].

Há divergências, no entanto, acerca do direito de correção dos filhos como correlato do dever de educar, materializado por meio de castigo moderado que implica a reprimenda comedida, prudente, razoável, sem exageros ou excessos, e sempre com caráter educativo, que não coloca em risco a integridade física ou psíquica do filho[21]. Ressalte-se, no entanto, que tal tratamento como forma de correção, é objeto do Projeto de Lei nº 7.672/10 que aguarda aprovação pelo Senado que ficou conhecida pelo nome “Lei da Palmada”, amplamente discutida na comunidade jurídica e na sociedade, proibindo a aplicação de castigos físicos.

O castigo imoderado pode gerar a destituição do poder familiar e responsabilidade criminal do art. 136 do CP.

1.3.2. Tê-los em sua companhia e guarda

 

Maria Helena Diniz afirma que manter o filho em sua companhia e guarda é na realidade um poder-dever, na medida em que podem os pais conservar os filhos no lar, afastando-os das situações e pessoas que entendem prejudiciais, bem como é um dever mantê-los sob sua guarda, porque também possuem o dever de criar. Ressalta ainda que, se os pais confiarem a guarda de seus filhos à pessoa que sabem que os prejudicará material ou moralmente cometem o delito previsto no art. 245 do CP[22].

Se os pais estiverem separados de fato, o direito de tê-los em sua companhia e guarda é de ambos os genitores, se a guarda for confiada a um deles não haverá ofensa ao poder familiar, pois o direito de guarda é da natureza, e não essência do poder familiar[23].

1.3.3. Conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem

 

O imperativo legal decorre do próprio dever de proteger, cuidar e dirigir a educação dos filhos menores, determinando expressamente o art. 1.517 do Código Civil que os menores de dezesseis anos somente podem casar com autorização de ambos os pais. Na negativa injustificada de um dos genitores, suprir-lhe-á o consentimento a autorização judicial.

 

1.3.4. Nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar

 

Trata-se da tutela testamentária, subsidiária da sobrevivência do outro genitor, pois um não pode privar o outro do seu poder familiar.

 

1.3.5. Representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento

 

De acordo com o art. 3º do Código Civil, os menores de 16 anos são absolutamente incapazes para os atos da vida civil, e, portanto, devem ser representados por seus genitores na prática de tais atos. Já aqueles maiores de 16 e menores de 18 anos, consoante o disposto no art. 4º do diploma civil, são relativamente incapazes a certos atos ou à maneira de exercê-los, devendo, desta forma, ser assistidos por seus genitores.

1.3.6. Reclamá-los de quem ilegalmente os detenha

 

Este ato é materializado por meio da ação de busca e apreensão de menores[24].

1.3.7. Exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição

 

Para a harmonia do lar, os pais podem exigir obediência, mas também devem o mesmo respeitos aos filhos, sem o qual poderão ser destituídos do poder familiar.

Os pais podem, outrossim, exigir o trabalho desde que não interfira na formação do filho, como em sua frequência à escola, ou prejudique-lhe física ou moralmente. Desta forma, a legislação trabalhista (art. 403 e 404 da CLT) proíbe o trabalho noturno, insalubre, perigoso ou penoso aos menores de 18 anos, e a Constituição Federal em seu art. 7º, XXXIII veda expressamente o trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir de 14 anos.

1.4.     Suspensão e Extinção

Suspensão e extinção do poder familiar constituem sanções aos pais que não exercem seu dever conforme a lei. Uma vez entendido que o poder familiar é um múnus público ou função pública dos genitores sob a fiscalização do Estado, este interfere na relação atribuindo tais sanções temporária (suspensão) ou definitivamente (extinção).

A suspensão do poder familiar decorre de causas genericamente arroladas no Código Civil como abuso do poder, falta aos deveres paternos e dilapidação dos bens do filho (art. 1.637), com relação a um ou alguns filhos. É, pois, uma sanção que visa a preservar os interesses do filho, afastando-o da má influência do pai que viola o dever de exercer o poder familiar conforme a lei[25]. O pedido pode ser formulado por algum parente, pelo Ministério Público, ou pode ainda ser decretada de ofício. Dessa forma, o magistrado afasta o genitor e determina o tempo necessário que durará o afastamento. Desaparecendo a causa que deu origem à suspensão, restitui-se o exercício do poder familiar ao genitor respectivo.

Silvio de Salvo Venosa menciona ainda que o Código apresenta genericamente as causas de suspensão, dando margem ampla de decisão ao magistrado. E assevera que a suspensão não exonera o genitor da prestação dos alimentos[26].

A condenação dos pais também poderá culminar na suspensão ou extinção do poder familiar, de acordo com a gravidade do crime[27].

Decretada a perda do poder familiar a um dos genitores, o outro exercê-lo-á integralmente, salvo se não tiver condições de fazê-lo, caso em que será nomeado um tutor ao menor.

A extinção ou destituição do poder familiar pode ocorrer de forma natural na forma do artigo 1.635 do Código Civil, que são: a morte dos pais ou do filho, a emancipação, a maioridade, a adoção, ou como própria forma de sanção ainda mais severa do que a suspensão, operando-se por sentença judicial e abrangendo todos os filhos quando o genitor: castigar imoderadamente o filho, deixar o filho em abandono material e/ou moral, praticar atos contrários à moral e aos bons costumes ou ainda incidir, reiteradamente, nas causas de suspensão do poder familiar.


[1] AKEL, pág. 3.

[2] CHINELLATO, pág. 572

[3] VENOSA, pág. 366.

[4] VENOSA, pág. 367.

[5] CHINELLATO, pág. 572

[6] AKEL, pág. 5.

[7] AKEL, pág. 5.

[8] COMEL, pág. 26.

[9] COMEL, pág. 27/35.

[10] COMEL, pág. 39/40.

[11] AKEL, pág. 8/9.

[12] AKEL, pág. 11.

[13] CHINELLATO, pág. 573/574

[14] COMEL, pág. 60.

[15] CHINELLATO, pág. 573/574.

[16] AKEL, pág. 19 e COMEL, pág. 63/64.

[17] CHINELLATO, pág. 575.

[18] DINIZ, pág. 545/548.

[19] DINIZ, pág. 542.

[20] COMEL, pág. 102/103.

[21] COMEL, pág. 105.

[22] DINIZ, pág. 543.

[23] DINIZ, pág. 544.

[24] DINIZ, pág. 544/545.

[25] DINIZ, pág. 549.

[26] VENOSA, pág. 381/383.

[27] VENOSA, pág. 380/381.

BIBILIOGRAFIA

AKEL, Ana Carolina Silveira. Guarda compartilhada: um avanço para a família. – 2. ed. – São Paulo: Atlas, 2009.

CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu; SIMÃO, José Fernando e outros. Direito de família no novo milênio: estudos em homenagem ao Professor Álvaro Vilaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2010.

COMEL, Denise Damo. Do poder familiar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, 5º volume: direito de família. 23 ed. rev., atual e ampl. de acordo com a reforma do CPC e com o Projeto de Lei n. 276/2007 – São Paulo: Saraiva, 2008.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2011.