Pode o luxo sustentar o trabalho escravo?

 

Misma Ferreira de Paula Miranda

 

            Há tempos era legitimada a escravidão “clássica”, e existia a exploração do homem e sua força de trabalho como propriedade privada de outro homem. Mas será que essa realidade foi mesmo abolida em 13 de maio de 1888, quando sancionada a Lei Áurea no Brasil?

            Na gênesis do capitalismo, com a desapropriação dos meios de produção do trabalhador e com surgimento das indústrias, nasce o conceito marxista de “mais valia”. Ou seja, a “mais valia” é o valor do trabalho não pago ao trabalhador. Adam Smith, economista do sec. XVIII considerava que se o indivíduo trabalhar além de um determinado número de horas, estará produzindo não apenas o valor correspondente ao à sua força de trabalho (que lhe é pago pelo capitalista na forma de salário), mas também um valor a mais, um valor excedente sem remuneração. Marx, assim como Adam Smith e David Ricardo, considerava que toda mercadoria é determinada pela quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-la.

            Segundo artigo 149 do Código Penal e a Instrução Normativa 91, de 5 de outubro de 2011, da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, além das condições degradantes e insalubres de trabalho, existem outras condutas que podem caracterizar o trabalho escravo, como a restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento da sua liberdade. Conduta frequente nas relações de trabalho com imigrantes ilegais, que buscam melhores condições socioeconômicas que a existente em seu país de origem.

            Contudo, na atual sociedade, o “ter” subestima o “ser”, fomentando o consumo excessivo por parte dos indivíduos e os lucros exorbitantes por parte das empresas. Nessa busca, tem pelo lado do indivíduo, o desejo de pagar sempre menos e, do outro lado, as empresas estimando lucrar cada vez mais. Para existir esse ponto de equilíbrio, não cessa por parte das empresas a procura por fatores de produção de menor custo, como a  mão-de-obra barata. Daí surgem as modalidades de super exploração, similares à da escravidão clássica e que perduram nas  relações de trabalho modernas  a ponto de impor ao trabalhador  a condição de “coisa” e a total desconsideração da dignidade humana. O relatório atual da OIT, “Profits and Poverty: The Economics of Forced Labour” (Lucros e Pobreza: Aspectos Econômicos do Trabalho Forçado), criado em maio desse ano, assinala que o trabalho forçado gera 150 bilhões de dólares de lucro anualmente. O Diretor Geral da Organização Internacional do Trabalho, Guy Ryder declara: “o atual relatório imprime um novo caráter de urgência aos nossos esforços para erradicar o quanto antes esta prática altamente rentável, mas fundamentalmente nefasta”.

            Existe um grupo de pessoas que são caracterizadas mais vulneráveis ao trabalho indigno, que são: as mulheres, indígenas e migrantes, conforme descrito no Manual de Recomendações de Rotinas de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo de Imigrantes, criado para auxiliar a atuação dos agentes públicos responsáveis pelas ações de prevenção e repressão do trabalho escravo de imigrante no Brasil. Os fatores socioeconômicos prevalecem como condição primária àqueles que se submetem ao trabalho escravo no Brasil.

            Os imigrantes, no entanto, somam fatores de vulnerabilidade, haja vista o fator socioeconômico muitas vezes associado à miséria do país de origem e o fato de serem estrangeiros alocados geograficamente mais distantes de sua origem, num país de idioma e cultura diferentes. No Brasil, a maioria de casos no meio urbano, envolve imigrantes ilegais, trabalhando em atividades relacionadas à indústria têxtil. Nessas fábricas encontram-se duas realidades antagônicas, a miséria dos trabalhadores explorados e o luxo das peças fabricadas por eles.

            A maioria das confecções que exploram esse tipo de mão de obra costura para grandes marcas. Os preços de etiqueta são exorbitantes se comparados ao preço pago pelos fatores de produção utilizados no seu processo produtivo. Ainda assim as realidades antagônicas e participantes desse processo, não se excluem, mas uma gera a demanda da outra. Enquanto existem imigrantes fugindo da miserável realidade do seu país de origem, existem afortunados pelo mundo, desejosos de pagar altos preços por peças de roupas. Bianca Pyl e Maurício Hashizume, repórteres do site Reporter Brasil, numa reportagem de agosto de 2011, relatam uma ação das equipes de fiscalização trabalhista em São Paulo nas oficinas que costuravam para a marca Zara. Os preços pagos aos trabalhadores por cada peça era de R$2 e a mesma peça era vendida na loja da marca por R$139. Os salários dos trabalhadores não passavam de R$460, inferior ao mínimo nacional. As vítimas foram aliciadas na Bolívia e no Peru em busca do “sonho brasileiro”.

            O luxo é definido no dicionário Aurélio da seguinte forma: “sm.1. Vida que se leva com grandes despesas supérfluas e o gosto do conforto excessivo e do prazer; fausto.” Dado esse conceito, o bel-prazer de exibir o luxo, limitado ao simples “ter”, cria uma dialética na atual era em que vivemos, a Era do Conhecimento. As economistas Helena Lastres,Cristina Lemos, Liz-rejane Legey e a socióloga Sarita Albagli, da Universidade Federal do Rio de Janeiro em seu artigo “Desafios e Oportunidades da Era do Conhecimento” afirmam: “A sustentabilidade dos modelos de desenvolvimento coloca-se hoje como um dos mais sérios desafios da humanidade, o que requer novas orientações para esforços de crescimento econômico e de avanço do conhecimento científico-tecnológico, subordinando-as a princípios de inclusão, eqüidade e coesão social, de sustentabilidade ambiental e de caráter ético.”

            Nessa sociedade do “ter” soberano e do súdito “ser”, o luxo é a coroa da glória. Não nos importamos em conhecer os meios utilizados nos processos que conduziram o jeans, a bolsa, o sapato, o smartphone, até chegar às nossas mãos. Às vezes nem mesmo importa saber o preço. A tirania de informações publicitárias nos oprime, e ao mesmo tempo nos cega para realidades miseráveis que estão por detrás dos altos preços cobrados. Mas seria transgredir, usar artigos de luxo e/ou qualidade? Entendo que sim, se, para ter esse luxo e qualidade, tais artigos dependem da exploração do homem e sua força de trabalho como propriedade privada de outro homem.

            Portanto, devemos nos preocupar com a procedência daquilo que levamos para nossos lares, ambiente de trabalho, ou presenteamos alguém. Pois podemos estar gerando felicidade e ostentando luxo, à custa de esforços de pessoas tratadas como coisas, porque  simplesmente acreditaram em falsas oportunidades. Se soubermos a pertinência da informação na Era do Conhecimento, estaremos cientes de que ainda existe trabalho escravo, e que nós muitas vezes estamos fomentando essa exploração.  No entanto, a informação que gera conhecimento pode nos conscientizar que podemos fomentar também a inclusão, equidade e coesão social através de nossas decisões.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Aluna do 2º período do Curso de Ciências Econômicas da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

 

REFERÊNCIAS

 ALBAGLI, Sarita.  Desafios e Oportunidades na era do Conhecimento. In: São Paulo Perspec. vol.16 no.3 São Paulo  2002 Disponível em:        <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010288392002000300009&script=sci_arttext >.Acesso em 25 maio 2014.

Brasil. Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos. Manual de Recomendações de Rotinas de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo de Imigrantes: Secretaria de Direitos Humanos – SDH - Brasília, 2013. 48 p. Disponível em < http://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2013/10/Manual-Trabalho-Escravo-Imigrantes.pdf >. Acesso em 25 maio 2014.

FERREIRA,Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa.7 ed. Curitiba: Ed. Positivo, 2008. 896 p.

Organização Internacional do Trabalho. Ganancias y Pobreza: Aspectos económicos del Trabajo Forzoso. Genebra: Organização Internacional do Trabalho, 2014. Disponível em : http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/gender/doc/trabalhoescravoespanhol_1135.pdf >. Acesso em 25 maio 2014.

Pyl,Bianca; Hashizume, Maurício. Roupas da Zara são fabricadas com mão-de-obra escrava. Reportagens. Reporter Briasil, São Paulo, 18 ago. 2011. Disponível em: Acesso em: 25 maio 2014.

SANDRONI, Paulo. Novíssimo dicionário de economia. 1. ed. São Paulo: Best Seller, 1999, p. 362-3.