PESQUISAS JUNTO ÀS CRIANÇAS: A ETNOGRAFIA COMO POSSIBILIDADE NO TRABALHO[1].

Vânia R. Pascoal Maia[2]

Resumo: O referido trabalho discorre sobre as contribuições e possibilidades do trabalho etnográfico na pesquisa junto às crianças. Para isso, trazemos um panorama da construção dos termos infância e criança ao longo dos tempos, citando importantes estudos e autores/as de diferentes países na consolidação e construção desses campos. O trabalho ainda, ao abordar a possibilidade e as contribuições da abordagem etnográfica na pesquisa junto às crianças, cita as aulas que tivemos no primeiro semestre do ano de 2012, no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental- PPGEA, intitulada “Sociedade, ambiente e territorialização”, ministrada pelo professor Dr. Gianpaolo Knoller Adomilli. Assim, ao trazermos autores que fundamentam a abordagem etnográfica e outros /as da Sociologia da infância, apontamos para a possibilidade de um trabalho junto a esse grupo, a partir da nossa compreensão deles enquanto sujeitos capazes de significar, construir, reproduzir e também modificar cultura e conhecimento.

Palavras-chave: crianças, infâncias, etnografia, pesquisa.

Introdução

            Pesquisadores e pesquisadoras em seus percursos buscam, através de suas inquietações, investigar hipóteses, conceitos e questões entendidas como relevantes e importantes para o cenário vivido. Podemos dizer assim que vários são os motivos que os levam a escolher determinados assuntos, sejam questões pessoais, culturais ou ainda identificação com lutas e espaços pertencentes a demais sujeitos.

            Diante desse contexto, compreendemos que a etnografia pode se apresentar como de grande importância para possíveis investigações, auxiliando-nos com suas ferramentas e possibilidades. Assim, sobre a postura de um etnógrafo no campo, Silva (2009), esclarece:

Sabemos (...) que os procedimentos devem ser definidos, a postura adotada e as atitudes tomadas a partir de alguns valores, como o respeito à comunidade estudada. E devem ainda estar orientados por uma definição mais ou menos clara do que se está fazendo ali, o que implica ter um problema teoricamente constituído e um exercício prévio nos métodos e técnicas da disciplina.

Há, contudo, na relação uma aporia. Nenhum etnógrafo vai ao campo senão movido por incertezas, dúvidas e perguntas. Há algo no campo que ele não sabe e não conhece. Seu movimento até ali é um movimento que busca saciar tal ignorância e desconhecimento. (p.176).

            Esse movimento de busca e desconhecimento poderá proporcionar para o pesquisador aquilo que Paulo Freire (2000), chamava de “curiosidade epistemológica”, ou seja, o que vem a superar a “curiosidade ingênua”, e nos impede de estagnar, pois nos coloca enquanto aprendizes eternos, que conscientes dessa postura, buscam o aprofundamento e desvelamento de dúvidas e questionamentos existentes.

Para o trabalho no campo, além do respeito à comunidade estudada e outras ressalvas, Silva (2009) vai falar sobre um “lugar e uma identidade” que o etnógrafo vai construir com o referido lugar e cita a constante interação existente nesse percurso:

Trata-se de um percurso marcado pela interação. Ora, interagir pela participação nos rituais, nos trabalhos, no lazer e pela interlocução nas entrevistas informais, nas conversas suscitadas pela participação, nos bate-papos que até parecem escapar dos desígnios do trabalho de campo, alimentados apenas pelas amizades ali contraídas.

Essa interação implica mutualidade. Nessa ação, o etnógrafo sofre e exerce influência dos/sobre os outros, afeta e é afetado. Influência e afetação que incidem sobre identidade, condição e desenvolvimentos. (p.178-179).

Entendendo ainda o pesquisador como alguém não neutro, que se posiciona diante do que observa e investiga, podemos através do seu trabalho reconhecer  “o lugar” de onde o mesmo decide falar, isto quer dizer, as suas opções diante de uma sociedade que na nossa compreensão, se apresenta como heterogênea, permeada de contrastes, conflitos e portanto pertencente a sujeitos com propósitos e formas de vida diferentes.

Diante disto, podemos pensar sobre a pesquisa com crianças e as formas possíveis de fazê-la. Como a etnografia pode nos auxiliar na pesquisa com esses sujeitos? O que muda ou precisa ser considerado quando o grupo referido faz parte da camada social desfavorecida economicamente, em suas bases materiais?

2- Crianças: Os “mudos” da história.

           

Os entendimentos e concepções de crianças e infâncias ao longo do tempo e dependendo da sociedade de que se fala, apresentam diferenças e modificações que precisamos levar em conta para construirmos o nosso entendimento no assunto.

Utilizando-nos do importante estudo de Ariès (1981), vemos, por exemplo, que na Idade Média as crianças (ou melhor, o grupo de crianças por ele estudado), eram vistas como seres com menor importância, muitas vezes ignorados em suas especificidades e lembrados apenas enquanto um “adulto em miniatura”. O autor, baseado no contexto europeu, traça um panorama histórico do fim da Idade Média (séc. XVI) até a Idade Moderna (Séc. XIX), desvelando alguns “sentimentos” e formas de se conceber esta fase, inicialmente vista com certa frieza ou desprezo, fruto, entre outras coisas, da alta taxa de mortalidade infantil da época. 

A arte medieval, com suas representações sobre os sujeitos que compunham a sociedade, pode nos dar uma pista da dita invisibilidade dessas crianças, visto a ausência das mesmas em suas obras:

Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo. (ARIÈS, 1981, p.17)

            .

            Contudo, em torno do séc. XVII inicia-se uma diferenciação entre adulto e criança, segundo os estudos de Ariès, perdendo um pouco a ideia de que estes seriam apenas miniaturas dos maiores.

Foi no século XVII que os retratos das crianças sozinhas se tornaram numerosos e comuns. Foi também nesse século que os retratos de família, muito mais antigos, tenderam a se organizar em torno da criança, que se tornou o centro da composição. (p.28)

            Neste período, as igrejas e os moralistas compreendiam as crianças como “seres inocentes”, como “puras criaturas pequeninas de Deus”, que precisavam ter sua inocência preservada e necessitavam ser educadas, vigiadas e corrigidas. Percebe-se agora, também, uma diferenciação com relação aos trajes.

(...) a criança, ou ao menos a criança de boa família, quer fosse nobre ou burguesa, não era mais vestida como os adultos. Ela agora tinha um traje reservado à sua idade, que a distinguia dos adultos (...) (p.32).

            Porém, essa diferenciação era notada em relação aos meninos e sendo estes de classes sociais favorecidas:

Se nos limitarmos ao testemunho oferecido pelo traje, concluiremos que a particularização da infância durante muito tempo se restringiu aos meninos. O que é certo é que isso aconteceu apenas nas famílias burguesas ou nobres. As crianças do povo, os filhos de camponeses e dos artesãos, as crianças que brincavam nas praças das aldeias, nas ruas das cidades ou nas cozinhas das casas, continuaram a usar o mesmo traje dos adultos: jamais são representados usando vestido comprido e mangas falsas. Elas conservavam o antigo modo de vida que não separa as crianças dos adultos, nem através do traje, nem através do trabalho, nem através dos jogos e brincadeiras. (p.41)

           

            Algumas críticas surgiram às teses de Ariès (Gélis, 1991; Cambi &Ulivieri, 1988; Delgado 1998, Kuhlmann Jr. e Fernandes 2004, entre outros e outras), ainda que sejam reconhecidas e respeitadas as contribuições do mesmo, no que se refere aos estudos da criança e da Infância. Mas fala-se em realidade específica para designar o contexto trabalhado por Ariès, que no caso, era o contexto europeu e a realidade burguesa. Critica-se a indiferença relatada pelo autor com relação às crianças, mostrando que em outras realidades, e já na antiguidade, existiam sim casos de sentimentos com relação a essa fase da vida.

Kuhlmann Jr. e Fernandes (2004), por exemplo, chamam a atenção para o fato de que as representações feitas por Ariès diferem, em muitos casos, das realidades constatadas nas infâncias ao longo dos tempos e em distintos contextos e criticam os que sugerem que determinados grupos de crianças, por estarem em situação de vulnerabilidade social, seriam “sem infância”, entendendo que o que há são infâncias diversas, a partir de um lugar, de uma compreensão específica.

Assim sendo, nem todas as crianças partilham das mesmas oportunidades, como também, vale ressaltar, as sociedades não se comportam da mesma maneira. Dessa forma é preciso que entendamos cada trabalho/pesquisa com crianças, a partir de seus contextos, levando em consideração a sociedade onde as mesmas estão inseridas, pois trabalhamos com infâncias, não um único e exclusivo modelo dessa referida fase.            Nesse sentido e para colaborar com a compreensão dos termos (criança, infância) citamos alguns estudos de autores e autoras que se dedicam a esta temática.

Pesquisando a cultura norte-americana, William Corsaro (2002), vai se deter a dois grupos distintos de crianças (um, brancas, de classe média; e outro, negras, de classe baixa), onde ele constata a relevância da “cultura de pares”, isto quer dizer, muito embora as crianças reproduzam seus meios sociais, elas recriam e reconstroem cultura, através das interações com os seus iguais:

As crianças apropriam-se criativamente da informação do mundo adulto para produzir a sua própria cultura de pares. Tal apropriação é criativa na medida em que tanto expande a cultura de pares (transforma a informação do mundo adulto de acordo com as preocupações do mundo dos pares) como simultaneamente contribui para a reprodução da cultura adulta. (p.114).

 Sirota (2001), uma pesquisadora francesa, traz dados e discussões desencadeadas nos anos 90, principalmente no seu país, sobre a “emergência de uma sociologia da infância”, ela discorre, entre outras questões, sobre a necessidade de se levar a sério e se reconhecer a criança enquanto um ator social, numa inversão do que têm feito os estudos tradicionais na área.

As crianças devem ser consideradas como atores em sentido pleno e não simplesmente como seres em devir. As crianças são ao mesmo tempo produtos e atores dos processos sociais. Trata-se de inverter a proposição clássica, não de discutir sobre o que produzem a escola, a família ou o Estado,  mas de indagar sobre o que a criança cria na intersecção de suas instâncias de socialização.” (p.19)

Em Portugal, Sarmento (2005) argumenta que as crianças constituem uma categoria social do tipo “geracional”, que atuam em diferentes espaços, culturas, contextos, ou seja, têm certas especificidades que as diferenciam.

 Sobre o termo infância ele coloca:

A infância é historicamente construída, a partir de um processo de longa duração que lhe atribuiu um estatuto social e que elaborou as bases ideológicas, normativas e referenciais do seu lugar na sociedade. Esse processo, para além de tenso e internamente contraditório, não se esgotou. É continuamente actualizado na prática social, nas interacções entre crianças e nas interacções entre crianças e adultos. Fazem parte do processo as variações demográficas, as relações económicas e os seus impactos diferenciados nos diferentes grupos etários e as políticas públicas. (p. 365).

 Catarina Tomás (2009), autora também portuguesa, vai defender a importância da participação das crianças nas decisões sociais e se dedicará a estudar esses sujeitos no contexto atual globalizado, levando em conta as implicações e interferências dos modos atuais de vida para os diversos grupos de crianças.

No Brasil, Redin e Didonet ((2007) ao estudarem e problematizarem a forma como se organizam e se configuram as cidades, vão trazer dados que demonstram a pouca preocupação dos gestores públicos com as especificidades e particularidades das crianças, bem como com as estruturas desses lugares, que abrigam os sujeitos da infância, mas que raramente as ouvem e as consideram em suas decisões e construções[3].

Abramowicz (2011), pesquisadora também brasileira, tem se dedicado a construir e fortalecer o campo da Sociologia da infância no Brasil. Ela argumenta, entre outras coisas, sobre a importância e o grande salto que se dá, quando o/a pesquisador/a busca ouvir e considerar a criança em suas pesquisas, invertendo a posição tradicional impositiva e acostumada a falar sobre, não com.

Podemos dizer, portanto, que compreender as crianças enquanto um grupo de sujeitos atuantes, que além de fazerem parte da sociedade, são também capazes de significá-la, é partir de uma concepção diferente da Sociologia tradicional, que tem em um de seus principais representantes, Durkheim e seu modelo coercitivo. Neste, palavras-chaves como: Adaptar, moldar, aceitar, absorver, reproduzir e preparar para, propagariam e anunciariam uma forma de pensar a sociedade de modo estático, onde as crianças teriam que se enquadrar no que já existe, porque estariam em “formação” e seriam “preparadas” para o futuro. Um futuro dado vale salientar, “harmônico” e com fins para o consenso, a “paz”, a “ordem” e o “progresso”.

Entendendo que, enquanto seres humanos, estamos todos em formação. Estado que não diz respeito só ao grupo de crianças, podemos reconstruir, modificar e repensar o que está posto como um dado. Ainda mais, fazemos parte de um mundo que não pode ser harmônico, nem consensual, pois abarca desigualdades, disparidades e diferenças de pensamentos, posições e oportunidades, que constitui privilégios para um grupo e marginaliza outros, buscando acima de tudo o controle e a manutenção do status quo.

É nesse contexto que compreendemos a importância de dar voz e oportunidade de expressão aos sujeitos tradicionalmente excluídos, como é o caso das crianças, e em especial, as crianças das classes populares.

3- A etnografia e a pesquisa com crianças: Que possibilidades?

            Florestan Fernandes (1940) construiu um trabalho etnográfico percursor, ao considerar os modos de vida e as culturas de crianças moradoras de bairros operários da cidade de São Paulo. Assim, de maneira inovadora, observava o encontro das crianças quando estas se reuniam para suas brincadeiras de rua, registrando vivências e o cotidiano deste grupo[4]. O autor sinalizou também para a compreensão das crianças enquanto agentes ativos, que negociavam entre si e com os adultos e constituíam cultura, apropriando-se e reinventando dos diversos tipos de brincadeiras e folclores infantis da época.

Depois deste, outros estudos foram surgindo, preocupados em retratar e abordar formas de socialização e de vida, suscitando uma visão heterogênea de infância, para além de fases fixas e pré-determinadas.

            Dessa forma podemos dizer que os estudos antropológicos têm ajudado na construção e desenvolvimento de pesquisa com os grupos infantis, como cita Cohn (2000) em seu estudo com crianças indígenas no Pará:

Reconhecendo a criança como um agente que constrói suas relações e atribui sentidos, a antropologia revê a análise do processo de socialização, deixando de pensar a criança como tendo incutido valores e comportamentos e se constituindo em pessoa plena rumo a um produto social já conhecido de antemão (Schildkrout, 1978), ou como mera reprodutora de um mundo adulto, mas sim como um ator social ativo e produtor de cultura (Caputo, 1995; Pelissier, 1991). Possibilita-se assim que o estudo da infância nessas sociedades enfoque um mundo relativamente autônomo, que tem validade por si, nas experiências e na vivência das crianças, e em suas formulações sobre o mundo em que vive, vendo-a como um agente, e não como um sujeito incompleto, ou um adulto em miniatura que treina a vida adulta, ou, como sugere Schaden (1945: 271), aprendendo por imitação, definida como um "'instinto social' que faz com que a criança, antes de chegar à puberdade, 'aprenda brincando' todas essas habilidades", tornando-se gradativamente um "ser social pleno". (p.1).

            É nesse sentido também que a etnografia aparece como uma abordagem importante e eficaz nas pesquisas junto às crianças, onde o pesquisador atento, ao fazer a inserção nos mundos infantis, poderá buscar através da observação, participação e negociação, formas de tentar compreender diferentes vivências e distintas culturas infantis.

 Quanto a isso, Corsaro (2005), citando também Tom Rizzo e Jack Bates, vai falar do cuidado e da delicadeza que se apresentam a entrada em campo:

(...) a entrada no campo é crucial na etnografia, uma vez que um de seus objetivos centrais como método interpretativo é estabelecer o status de membro e uma perspectiva ou ponto de vista de dentro (Rizzo et al., 1992).

A aceitação no mundo das crianças é particularmente desafiadora por causa das diferenças óbvias entre adultos e crianças em termos de maturidade comunicativa e cognitiva, poder (tanto real como percebido) e tamanho físico (Corsaro, 1985). Ao passo que alguns etnógrafos de crianças (Mandell, 1988) afirmam que uma aceitação completa (dos pesquisadores pelas crianças) é possível e uma participação plena (dos pesquisadores nos universos das crianças) é desejável, outros sustentam, que certas diferenças entre adultos e crianças (especialmente o tamanho físico) podem não ser plenamente superadas e, portanto, aconselham alguma forma de participação limitada ou periférica (Corsaro, 1985; Fine & Sandstorm, 1988). (p.444).

               

                Compreendemos como fundamental na pesquisa com crianças o respeito e o diálogo no momento também da entrada em campo. É preciso que elas estejam conscientes do trabalho que pretendemos desenvolver, bem como que possam optar pela participação ou não no mesmo. Assim, como precisamos de seus consentimentos para fotografias, respostas, desenhos, ou ainda que elas possam optar por permitirem ou não, a nossa presença em seus universos, mesmo que, obviamente, tenhamos também o consentimento e apoio das famílias para o trabalho.

            Essa relação que podemos estabelecer vai de encontro ao que alguns pesquisadores da Sociologia da Infância vão tecer suas críticas que é o chamado “adultocentrismo” [5], isto quer dizer, o fato de que em nossa sociedade a maioria das relações se dá com foco nas decisões dos adultos, ficando as crianças a mercê das escolhas que os outros (os mais velhos) têm para elas e seus pares, seja nas escolas, nas famílias, nos bairros, nas cidades, enfim, na maioria dos espaços onde se exigem decisão e participação, ainda que alguns educadores e educadoras já se atentem para outras formas de negociação, como é o caso defendido e explicitado aqui.

            As crianças nas suas constituições ao longo dos tempos estiveram (e muitas vezes ainda estão), no grupo dos considerados “sem vozes” (“enfants”), projetos de futuro, os que ainda serão algo algum dia, dependentes... Assim como muitos outros grupos tradicionalmente excluídos. E em se tratando, por exemplo, de crianças das classes populares, ou quilombolas, indígenas e quaisquer outros grupos, que podemos definir como duplamente excluídos, têm suas situações agravadas no que se referem à participação e poder de decisão nos espaços públicos e coletivos. Daí também a importância de um trabalho que privilegie suas vozes, posicionamentos e compreensões de mundo.

            Abramowicz (2011) defenderá essa participação, muito embora esclareça que não é uma questão de entender as crianças enquanto “especiais” ou mais importantes que outros grupos, mas como forma de respeito às suas capacidades e potencialidades e ainda, uma atitude de transgressão ao que costumamos a ver na maioria das sociedades:

É importante destacar que não há algo na fala das crianças que seja excepcional ou diferente (apesar de que pode casualmente haver), mas a criança ao falar, faz uma inversão hierárquica discursiva que faz falar aquelas cujas falas não são levadas em conta, não são consideradas. Isso significa que não precisamos quando pesquisamos com crianças fazer esforços imensos de interpretação, buscando os sentidos ocultos ou desvelamentos surpreendentes, o que vale é a inversão e o esforço de ir ao encontro de uma certa “lei da raridade”. Foucalt fala em “efeito de raridade” e que a interpretação é uma maneira de compensar a realidade, já que na realidade, poucas coisas são ditas (ORLANDI,1987). A criança falar, não é pouca coisa. (p.24).

Neste sentido, no nosso projeto de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental- PPGEA da Universidade Federal do Rio Grande- FURG[6], pretendemos localizar as crianças nos trabalhos e pesquisas cujos temas dizem respeito à Educação Ambiental e também, ao estudar alguns autores da chamada perspectiva crítica, localizar o lugar (ou a ausência) das crianças em seus escritos.  

  Como estes sujeitos aparecem nos trabalhos sobre Educação Ambiental que se propõem a trabalhar com o universo infantil? Que perspectiva estes pesquisadores usam para identificá-las? Há um esclarecimento sobre as diferentes condições sociais ou as crianças são tratadas como um grupo homogêneo? E quanto aos trabalhos em EA: Os autores fazem referência às crianças em seus escritos ou restringem-se a outros grupos geracionais? Quando elas aparecem, eles levam em conta à importância da participação desses sujeitos ou estão sempre se referindo às decisões e constatações dos grupos de adultos com os quais as crianças convivem? (professores, pais, comunidade...).

Não podemos esquecer que as crianças fazem parte da sociedade em que vivemos, assim como os adultos, e interagem, agem e vivenciam experiências que precisam ser levadas em conta quando pretendemos discutir o meio em que vivemos de maneira mais ampla. O que frequentemente acontece é que alguns grupos, como já mencionamos, ficam excluídos dessas discussões ou ainda são tratados como inferiores. E salientamos ainda a situação das crianças filhas de trabalhadores e trabalhadoras, ou seja, as crianças das classes populares. Para estas, são disponibilizados, na maioria das vezes, os piores serviços, inclusive os que deveriam atender às suas necessidades básicas e fundamentais, necessárias para a construção e usufruto de uma vida digna e dotada de humanidade.

Ao encontro disto, Acselrad (2009) ao falar sobre as injustiças ambientais, vai dizer que há uma injustiça sobre a forma como a apropriação das riquezas acontece e como a produção dos recursos naturais é distribuída socialmente. Assim, ele argumenta que os danos ambientais não afetam, nem afetarão de forma igualitária os diferentes grupos existentes, embora haja um discurso de que é preciso “união” e preservação do que seria o futuro de todos e todas.

Neste sentido o autor fala da importância das pesquisas que buscam levar em consideração as desigualdades ambientais e faz uma crítica ao pensamento ecológico hegemônico, que fragmenta as questões ambientais e sociais, ao invés de entendê-las enquanto interligadas, visto que o ambiente não é só o meio natural de um lado e o social, de outro, pelo contrário, através do que se produz na natureza e como consequência da ação humana, as disputas por essa produção e a forma como ela chega aos diferentes grupos, vêm a diferenciar e reforçar classes sociais, meios de vida e condições sociais e econômicas dos distintos sujeitos nas cidades, bairros, países, continentes... Ele coloca :

 São recentes no Brasil as pesquisas que buscam examinar, na forma de indicadores, a coincidência entre áreas de degradação ambiental e locais de moradia de populações despossuídas. Decerto não poderia ser diferente, considerando-se que o pensamento ecológico hegemônico assim como parte importante da pesquisa realizada no campo acadêmico não tem operado com a articulação entre condições ambientais e condições sociais. De qualquer forma, como expressão da própria visibilidade crescente das lutas contra a injustiça ambiental, pode-se observar um progressivo engajamento, seja em universidades, seja em órgãos de pesquisas governamentais- em investigações que procuram evidenciar a desigualdade ambiental realmente existe. (p.47).

Dessa forma, a etnografia com crianças, e aqui podemos dizer, com crianças das classes sociais que vivenciam as injustiças ambientais apontadas pelo referido autor, poderia ser uma forma de evidenciar as diferentes maneiras como os sujeitos usufruem e têm acesso à cidade.

Neste sentido o nosso trabalho realizado em 2012, junto a crianças estudantes da escola CAIC- Rio Grande e moradores de bairros periféricos da cidade como Castelo Branco, Vila Maria e outros, nos possibilitou compreender como as mesmas entendiam os lugares em que vivem e seus apontamentos e questionamentos também das situações cotidianas enfrentadas por elas e suas famílias[7]. O trabalho resultou em uma exposição intitulada “A Educação ambiental a partir das crianças: Imagens, lugares e proposições”, que foi exposto no V Colóquio de Pesquisadores em Educação Ambiental da Região Sul (V CPEASul) e do IV Encontro e Diálogos com a Educação Ambiental (IV EDEA), evento ocorrido em Rio Grande, de 25 a 28 de outubro de 2012.

A referida mostra contou com mais de 60 registros fotográficos feitos por crianças com idade entre dois anos e meio e doze anos de idade e foi resultado de um processo de diálogos com esse grupo, tanto na escola, como no bairro em que sedia a instituição escolar (bairro onde vive a maioria das crianças pesquisadas).

Durante as nossas conversas, procuramos saber como eram os momentos em que elas não estavam na escola, o que viam no trajeto para a instituição e o que mudariam se fossem consultadas, nos seus espaços.

Gravamos as conversas (com o consentimento das crianças) e levamos as fotos para que elas as identificassem e as nomeassem para a exposição. No dia do evento elas também estiveram presentes e puderam ver suas fotos, as frases, os desenhos que construíram expostos, além de interagirem com o Colóquio que estava havendo, visitando outros trabalhos e conhecendo parte do que fazem os pesquisadores e pesquisadoras da universidade, cuja escola que estudam fica ao lado.

Trazemos algumas citações do trabalho em questão. São frases ditas pelas crianças com as quais desenvolvemos o nosso trabalho:

Quanto ao que eles veem no caminho bairro- escola:

“Tem lixo, tem valetão, tem árvore. Tem as coisas pra vender, placas, tem um monte de sujeira”. (Gabriel, 7 anos)

 

“Tem as casas, tem as vendas, tem boi, tem cachorro na rua, morto”. (Vitor, 10 anos).

 

“Tem muito lixo... não pode! Tem que cuidar a natureza!” (João, 3 anos).

 

“Tem valeta imunda, tem pessoas, tem ônibus, caminhão, máquina...” (Matheus, 8 anos).

Se pudessem mudar, como seria esse lugar:

 

“Podia ter menos movimento, menos acidente.” (Matheus, 8 anos).

 

“Menos acidente e que todo mundo ficasse bem! Tivesse mais saúde.” (Gabriel, 7 anos).

 

“Teria menos lixo na rua. Ia ser mais limpa!” (Júlia, 8 anos).

 

“Seria limpa e sem rato.” (Loyzyane, 7 anos).

 

“Eu queria mudar algumas coisa: Eu queria que eles parassem com aquelas máquinas! Aquilo ao invés de arrumar a rua, não! Fica bem pior do que já ‘tá’.” (Luíza Educarda, 6 anos).

Podemos dizer que o trabalho reforçou a ideia que trazíamos sobre a capacidade crítica desses sujeitos, que a partir dos seus lugares, posicionaram-se e mostraram que não estão à parte na sociedade. Pelo contrário: fazem parte, compreendem, interagem, agem e precisam ser respeitados e indagados sobre os rumos da mesma, pois a integram, necessitando, por isto também, fazerem efetivamente parte. Na nossa compreensão, este “fazer parte” só se dará concretamente na participação e no poder de decisão e colaboração junto aos adultos nas questões que se apresentam no cotidiano das sociedades.

 

Conclusão

Iniciamos o nosso trabalho falando um pouco sobre os motivos que podiam levam pesquisadores e pesquisadoras a optarem por determinadas pesquisas, entendendo-os enquanto sujeitos políticos, que fazem escolhas e posicionam-se à medida em que escolhem o que querem se deter e os caminhos que irão seguir em seus trabalhos. Dessa forma, propomos discorrer sobre a possibilidade de pesquisa com crianças a partir de uma abordagem etnográfica.

Para pensarmos essa possibilidade, nos detivemos em trazer um breve histórico de estudos que buscavam conceituar temas como crianças e infâncias, citando autores e autoras que se dedicaram a esta temática em vários países e ao longo do tempo. (Inglaterra, França, Portugal, Brasil, estudos pioneiros, campos em construções e outros também já consolidados).

Nesta caminhada, fomos trazendo a importância dos estudos etnográficos, demonstrando agora as possibilidades dos mesmos nos trabalhos com as crianças. Estes, na nossa compreensão, ganham força quando entendemos o grupo infantil como capazes de construir cultura, posicionarem-se a partir de seus lugares e construírem proposições e argumentos sobre os seus modos de vida e de seus lugares.

Embasamo-nos assim, em alguns autores que estudam a etnografia e a antropologia e que conhecemos ou aprofundamos o nosso conhecimento sobre, a partir da disciplina feita no primeiro semestre de 2012, no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental- PPGEA, intitulada: “Sociedade, ambiente e territorialização”, ministrada pelo professor Dr. Gianpaolo Knoller Adomilli. Nesta, tivemos a oportunidade de discutir sobre a abordagem etnográfica, alguns conceitos antropológicos, conhecermos importantes autores na área e problematizarmos também a questão dos conflitos socioambientais existentes na nossa sociedade.

Assim, finalizamos trazendo o exemplo de um trabalho realizado este ano, junto às crianças de um bairro periférico da cidade de Rio Grande, onde a partir de suas constatações e registros fotográficos, tivemos a oportunidade de evidenciar uma mostra com suas proposições e achados.

Ressaltamos a importância do referido trabalho que, além de ter partido de uma concepção de crianças enquanto atores sociais, capazes de dialogar e opinar sobre as questões que envolvem a cidade em que vivem, seus registros puderam dialogar com outros de pesquisadoras e pesquisadores adultos, que participavam de um Colóquio de Educadores ambientais, proporcionando assim também um fértil local para discussões e compartilhamento de ideias e ações.

Concluímos, portanto, acreditando na possibilidade de pesquisar junto aos sujeitos da infância, em um processo que exige respeito mútuo, cuidado e uma escuta atenta. Que defina também o ponto em que se está localizado, ou seja, que se situe quanto ao grupo de crianças pesquisadas, pois infinitas são as formas e possibilidades de se viver esta fase e que possa, por fim, contribuir socialmente para os sujeitos com os quais dialogamos.

Assim, entendemos e defendemos a função social da pesquisa e nos colocamos como seres políticos, atuantes e capazes de ação. Uma ação que não é isolada e se dá sempre na construção com o outro, a partir de compartilhamento de experiências e lutas coletivas.

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[1] Artigo construído e apresentado para a disciplina “Sociedade, ambiente e territorialização”, ministrada pelo professor Dr. Gianpaolo Knoller Adomilli, no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental- PPGEA (primeiro semestre de 2012).

[2] Mestranda em Educação Ambiental no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental- PPGEA- [email protected].

[3] Os autores vão citar também três iniciativas que estão na contramão do modelo da maioria das cidades, pois estas se baseiam no respeito à infância e primam pela participação das crianças, são elas: “Cidades amigas da criança”, “Habitat” e “Cidades educadoras”. No site www.edcities.bcn.es, podem-se encontrar nomes e informações de outras cidades que compartilham da mesma proposta.

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[4] Trabalho intitulado “As Trocinhas do Bom Retiro: contribuições ao estudo folclórico e sociológico da cultura e dos grupos infantis”, onde o termo “Trocinhas” representa uma expressão usada pelas próprias crianças, conforme o autor (1947).

[5] Termo cunhado pela autora Fúlvia Rosemberg (1976) e bastante utilizado pelos autores da Sociologia da Infância.

[6] Projeto orientado pelo professor Dr. Carlos Machado. Ano 2012-2013.

[7] Esse trabalho foi realizado por mim, com o auxílio da também mestranda Raquel Ávila e da estudante de Graduação em Geografia da FURG, Cíntia Lemos.