Após muitos anos dedicando-me a esta maravilhosa profissão, colecionei em minha memória muitas histórias, “causos” da profissão. Enumerá-los  demandará muito tempo, por isso reservarei  para o futuro um livro com esse título, mas não é sobre pérolas da minha profissão que pretendo discorrer neste artigo e sim dar uma contribuição para a sociedade brasileira de qual é o verdadeiro papel do médico veterinário, principalmente àqueles que se dedicam a clínica de pequenos animais. A grande evolução, diria até mesmo revolução da medicina veterinária se deu nos últimos 20 anos. Acompanhando a medicina humana,  nós médicos veterinários que atuamos em clínica médica e cirúrgica de pequenos não deixamos nada a desejar em termos de conhecimentos técnicos.

              Apesar disso, alguma coisa está errada na relação sociedade e este profissional, principalmente clientes versus veterinário. Penso que é muito mais pela forma como o brasileiro encara a vida, muito mais com emoção do que com a razão, muito também pelo aspecto das relações mais pessoal que profissional, que nós veterinários somos mal compreendidos, ah! Isso somos. Diria também que há muita ignorância das pessoas, que não veem o veterinário como outros profissionais, como ele vê o médico, o professor, o engenheiro, o dentista, o piloto de avião, o dono de um comércio. Não importa a atividade.  Nos EUA, dentre todas as profissões liberais da área médica o maior número de suicídio está entre os veterinários. Nos últimos vinte anos, só eu conheci quatro suicidas isso, sem falar nos milhares de jovens que nutrem um sonho de ser veterinário, mas quando chegam à profissão constatam que não é nada daquilo, ficam frustrados. Conheci muitos “desempresários” desta área, bem como muitos que se transformaram de graduados em desempregados, ou eternos estudantes de concurso, e nos milhares que trocaram de profissão. Virou até moda. — O que você faz? Estudo para concurso. São eternos estudantes bancados com dinheiro dos pais.

       O médico veterinário é um ser igualzinho aos outros, estuda, se forma, abre seu consultório ou sua clinica e quer exercê-la como qualquer outro profissional. Quer ter seu salário, ganhar dinheiro, quer ter lucro com o fruto do seu investimento, pagar seus funcionários, sustentar sua família, criar seus filhos, viajar, estudar, frequentar congressos e se atualizar. Ele tem fome, sede, cansaço, sono, vontade de ir ao banheiro, privacidade nos momentos que não tem clientes para atender, adoece,  enfim é um ser igual a todos os outros, mas parece que uma parcela do nosso povo não compreende nada isso.

      Uma  pergunta sempre me intrigou! O que faz a imensa maioria das pessoas pensar que todos os veterinários têm obrigação de abrigar e tratar de todos os cãezinhos abandonados que são encontrados nas ruas?  É uma prática comum das pessoas quando encontram um cão abandonado, machucado, pegá-lo e colocar no portão da primeira clínica ou consultório que encontram. Se o portão estiver fechado, jogam por cima do muro, conforme flagrei por câmeras em minha clínica inúmera vezes. Nunca tive conhecimento que algum pediatra que ao chegar ao seu consultório tenha se deparado com uma criança abandonada em sua porta. Tão pouco vi velhos maltrapilhos abandonados e jogados à porta de asilos. Muito menos algum PNE (portador de necessidades especiais) deixado à porta de uma clínica de fisioterapia, tão pouco um desdentado abandonado à porta de um consultório ou clínica dentária. Assim como nunca vi uma pessoa queimada, com o rosto desfigurado, abandonado à porta de uma clínica de cirurgia plástica. Como também nunca tive conhecimento que alguém querendo se livrar de um carro muito velho o abandonasse na porta de oficina mecânica e de lanternagem. —Porque só esse comportamento com os coitados dos veterinários? Eles têm suas clínicas e ou consultórios, pagam aluguel, empregados, impostos: municipais, estaduais, e federais, luz, água, telefones, todo material médico hospitalar é comprado e custam caro, mais mil e uma despesas, como manutenção e compra de equipamentos, e ainda têm que arcar com esse peso? Penso que não é justo.

 Excetuando-se os clientes normais que nos procuram para a compra dos nossos serviços, nunca vi ninguém entrar num consultório ou clínica veterinária para oferecer nada, ajuda gratuita etc, somente para pedir e “sugar” o pobre coitado do veterinário com seus serviços, empenho e dedicação incondicional aos animais abandonados. Conheci muitos que faliram, fecharam seus consultórios, outros mudaram de profissão por não suportar o assédio de inúmeras pessoas querendo gratuidade dos serviços. E a famosa olhadinha?  —Só quero uma olhadinha. Só vim pedir uma informação, aproveita dá uma olhadinha nele. Nossa!

— O veterinário que ainda não ouviu essa expressão que atire a primeira pedra. É a típica expressão de quem não quer pagar pelos serviços do profissional. O brasileiro é muito sofístico.

 Quero acreditar que esse comportamento em relação aos veterinários seja por pura ignorância, não acredito que seja por sacanagem ou mau-caratismo, mas devo acrescentar que é da natureza do brasileiro, criar problemas, arranjar problemas, mas nunca assumi-los, e sim transferi-los a alguém.  Quando alguém precisa se desfazer de um cão ou gato o primeiro a ser consultado para adoção é o veterinário. Há muita gente boa fazendo um trabalho bem intencionado, os chamado protetores, que se agregam em grupos para dar destinos aos animais abandonados, promovem feiras de adoção e outras atividades com esse objetivo, mas é uma causa inglória, interminável, um poço sem fundo. Respeito muito essas pessoas. 

Muitos veterinários na rotina do dia a dia, às vezes não conseguem nem almoçar, pois muitos clientes adoram chegar às clínicas entre 12 e 14 horas. Muitos pensam que nós não sentimos fome. Chegam às clinicas e o veterinário não se encontra, a recepcionista sofre. Paciência é tudo que dono de animal não tem. Ou se há uma pequena demora no atendimento, aí pronto!  Na cabeça de muitas pessoas, o veterinário é seu escravo, tem que largar tudo que está fazendo para lhe atender ao telefone, às vezes nem cliente é; muitos divagam pelo assunto que muitas vezes não tem nenhuma relação com o animal em questão, ou, antes de entrar na questão principal, expõe todas as desgraças pessoais. Não são objetivos. Claro que há exceção! Há casos que um rápido telefonema realmente resolve o problema, mas em geral não é a regra. Há muitos anos atendi uma cliente pela manhã, e até que o dia findasse, ela me ligou sete vezes. Na última ela exclamou: — Dr. Eu já estou ficando muito chata não? Suspirei fundo e devolvi: — Ainda bem que você reconheceu, já passou dos limites, já até me arrependi de tê-la atendido. Frequento muitos consultórios e clínicas médicas humanas e não vejo os médicos pararem para atender telefones de seus clientes, muito menos de quem não é. Tudo é resolvido através de suas secretárias e recepcionistas. Ainda temos as pragas dos celulares, que ensurdecem nossos ouvidos dentro do nosso local de trabalho, e muitos clientes não os desligam antes de entrarem para a consulta.     

Outro problema interessante também que é importante ser lembrado, é que uma clínica, consultório ou mesmo um centro radiológico para animais é um local de trabalho que exige silêncio, concentração por parte do profissional e muitos proprietários não educam seus cães. Permitem que eles latam à vontade, acham bonitinho e engraçadinho, às vezes dentro de uma recepção cheia. O dedicado veterinário está lá, bem ao lado, no consultório tentando fazer uma ausculta pulmonar ou mesmo um procedimento delicado, mas não consegue, pois há um mal educado na sala de espera com seu cão a latir. O cão é irracional, cabe ao proprietário contê-lo para ficar em silêncio.  Muitos clientes não exercem nenhum controle sobre seu animal. Considero isso uma verdadeira falta de civilidade. Sem contar os que chegam com animal ao colo e soltam dentro da recepção ou no interior da clinica ou portam animais com potencial de agressividade em guias frágeis sem nenhuma preocupação com a segurança de outros animais e das pessoas. Nestes casos considero uma insanidade. Há inúmeros registros de acidentes envolvendo cães em clínicas e consultórios.

O problema dos cães abandonados é um problema social que deve ser enfrentado com políticas públicas pelos poderes constituídos, discutido e enfrentado com a sociedade, já nossos vícios de falta de educação e compreensão do papel de um profissional, podem ser enfrentados a cada dia, a cada instante, e estou dando minha contribuição com este artigo. Afinal já somos um país de classe média, precisamos nos refinar um pouco, pensar no outro, se posicionar do outro lado da moeda.

Qualquer veterinário possui sensibilidade, e muita! Muitos inclusive ajudam animais carentes ou mesmo abandonados, e sem falsa modéstia, me incluo, reservando meus limites, mas daí transformar isso numa regra, numa obrigação, é outra história. Ele não pode nem deve ter este comportamento a despeito de não conduzir seu trabalho com profissionalismo. O peso e a responsabilidade de todas as desgraças dos cães e gatos abandonados nas ruas das nossas cidades não devem ser somente seu, e sim compartilhado com toda sociedade. Sua função inclusive é de educador. Mostrar às pessoas que a posse responsável contribui para minimizar esta grande mazela que nos afeta diariamente. 

Dr. Pedro Nunes Caldas,
 médico veterinário e diretor do hospital veterinário Niterói, escritor e jornalista.

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