Perdi você para o mundo

 

            Ela veio a mim tão doída, triste, precisando falar com alguém que não a conhecesse, que não soubesse como tinha sido a sua vida e como havia se transformado. Precisava falar a quem não a julgasse e não julgasse seu filho. Que tão somente a ouvisse e entendesse seu sofrimento, que compactuasse com ela a sua dor e que a deixasse ir embora como chegou... Só para aliviar sua dor. E foi a mim que ela escolheu...

 

“Sofri ao vê-lo deixar-se dominar por um mundo que não era o seu, não era o nosso... E não deveria ser o de ninguém. O mundo das drogas. Tão menino o meu menino... Não percebi, não fui capaz de ver. Onde estavam meus olhos, senão que só centrados no filho por mim idealizado? Acreditei no determinismo que a mim dizia que ele seria bom... Muito bom. O filho que sonhei para mim. E foi. Por pouco tempo, mas foi. Só eu não percebi quando esse tempo acabou para nós. Só eu, que fiquei sem o meu menino.

Como foi difícil aquela tarde... Naquela tarde em que atendi ao telefone e do outro lado, a voz de um policial me perguntava se “fulano” era meu filho e eu disse que sim... Venha então ao distrito, precisamos conversar. Ele está aqui. Meu coração bateu tão forte, que quase saiu antes de mim para encontrá-lo. É... Ele estava lá e me olhou tão indefeso, querendo colo, aconchego... Mas só eu pude vê-lo e senti-lo como ele realmente era, ou como já fora um dia. Tão criança o meu menino. Imberbe ainda. Seus olhos lacrimejantes denotavam o medo que sentia. Doeu tanto. E ainda dói. Muito.

Levei-o para casa pensando que... Ledo engano de mãe que acredita, que precisa acreditar que seu filho não mente. Como não crer na sinceridade de suas lágrimas? Eu, que sempre o acalentei quando ele as derramava. Fosse lá por que motivo fosse. Ele é puro. Os outros... Os outros é que são ruins. Ele não.

Muitos falares, muitos tem quê, soluções encontradas por tanta gente, que até perdi a conta de tanto contar os que se julgavam no direito de nos apontar.

Mais uma vez e mais outra e mais outra fiz o mesmo caminho. O caminho da dor sem volta.

Aos poucos ele se transformou em alguém que eu não mais sabia quem era. Ora teimoso, ora agressivo, ora querendo colo, ora o meu menino. Tão novinho... Nem as espinhas estavam ainda em seu rosto. Nem sua voz marcava a mudança de idade. Minha criança que já não era mais.

Tempos difíceis, de difícil solução. Muitos pensares. Muitos pesares. Melhor que ele se trate, diziam. Que fique perto de quem realmente possa ajudá-lo a livrar-se dessa situação. Como se possível fosse, como se bastasse o outro querer e pronto. Ele tudo acataria. Acataria? O meu filho sim. Aquele outro... Não sei. Eu não o conhecia. Mas foi. Durante certo tempo foi para ser cuidado, para ser tratado. Que graça. Menino bom. Nem parece, diziam. Recuperou-se, voltou então para casa. Fiquei tão feliz. Fiz tudo que ele gostava. Preparei um almoço gostoso, fiz sua sobremesa preferida... Mas almocei sozinha... Ele voltou para casa, mas não para a nossa, para a dele, que era o mundo... “Os amigos” vieram buscá-lo. Que o levem, que ele se deixe levar... Mas de mim nunca o levarão, pois tal como ostra me recusarei a abrir para deixar minha pérola sair, a pérola simbolizada por aquele que ele já foi um dia. Eu o congelarei no tempo, que naquele espaço de tempo certamente estará a meu favor. Conspirará comigo, far-se-á mãe como eu.

No início foi tão difícil entender o porquê de tudo. O confronto com a dor fez de mim um ser sem perspectiva de um futuro a ser esperado. Os dias se apresentavam como noites escuras, nas quais as estrelas e a lua se recusavam a aparecer. Era um chorar sem lagrimas. Todas já tinham ido embora. Meu choro era seco como um deserto era cheio de amargura. Vivia meu momento de vida de dor e solidão. Sentia-me só.  Pensava em justiça, mas não me rebelava. Sofria a dor dos justos. Em silêncio brigava com a vida à qual me permiti conduzir e que me fazia transcender meus limites de aquiescência. Pensava-me como antes fora e o fora por tanto tempo... Tanto?Mas também o tempo se foi, levando tudo que tinha sido bom em minha vida e vinha agora ameaçador, trazendo com ele a dor que eu pensava não merecer, que não devia ser para mim. Mas para quem então?  

Escrava, levante e faça comida para mim... Tenho fome”. Quantas vezes estou dormindo e acordo assustada, com ele gritando ao pé de minha cama... .É aquele estranho que aparece em minha casa sempre que precisa de alguma coisa. Onde está você meu menino, pergunto baixinho. Esse que aí está eu não conheço. Ele me dá medo, tenho que obedecê-lo. Senão... Quem é esse que se parece tanto com ele? Quem é esse que se marginalizou da vida, mas não de mim? Que vive à deriva no mundo?  “Entre nós e nós mesmos há mais diferença que entre nós e os outros”. Montaigne. “... Como faço para trazê-lo de volta para mim, para a sua vida, que tem tanto para ser vivida... “E agora... “Que faço eu da vida sem você...” Nele projetei meus sonhos, mas não percebi que sonhei sozinha. O tempo em sua inflexibilidade nos engoliu e não permitiu que eu sonhasse. Tornou-se pequeno para o meu pequeno e tão grande para mim. Talvez para ajudar no resgate.

Errei eu, errou você, erramos nós ou errou quem o levou para o “mundo”...  É tão difícil saber.

Pai olha para mim, por mim, por nós... Ouve meus pensamentos Pai, porque minhas palavras, minhas palavras doem em mim, por tanto ouvi-las. Muitas vezes imagino se errei por omissão. Ao suprir o material, tão necessário à nossa sobrevivência, pensei nele estar presente todo meu amor de mãe. Mas só eu pensei. Será que deixei uma fresta para que abduzissem de mim o meu menino?

Como dói ouvir que se ele voltar para “aquele lugar”, que eu me cuide. Melhor não levá-lo, porque se eu o fizer... Não é meu filho que assim fala. É o outro...  É. O mal só é mau quando bate à nossa porta.

Quando ele me pede dinheiro e não dou porque não devo, porque não posso, porque não tenho ou não quero, ele se enfurece e vai embora. Depois de... Que será que faz para conseguí-lo? Tantas coisas me vêm ao pensamento... Tantas. Tento afastá-las mas não consigo. Como se possível fosse não pensar que muitas vezes seria melhor que eu tivesse dado. Pai olhe por ele que não sabe o que faz.

Cuida de mim Pai, para que eu não me vá antes dele, para que eu esteja sempre pronta para ser o seu porto seguro, para que eu esteja sempre em casa a esperá-lo... “Quando ele voltar...”

 

 Mãos unidas, olhos em lágrimas, palavras em falta, corações unidos na dor... Mas nosso pensamento... Nosso pensamento se dirigia ao Pai, “que só submete o ser humano a um limite ao qual ele é capaz de resistir.”

 

Heloisa Pereira de Paula dos Reis

2009