Introdução

Falar da Epistemologia é tratar essencialmente do estudo crítico dos princípios, hipóteses, dos resultados das diversas ciências; portanto, quando referimo-nos aos problemas epistemológicos temos como referência os problemas que dizem respeito à problemática da produção da ciência e é sobre a ciência moderna onde centraremos as nossas atenções a partir daí, analisarmos a questão da legitimidade dos saberes na época chamada Pós-moderna.

O presente trabalho intitulado, Percurso historiográfico da Epistemologia – a questão da legitimidade dos saberes na pós-modernidade, vai debruçar-se de aspectos epistemológicos que achamos interessantes partilhar com a comunidade académica desta Universidade Pedagógica.

O nosso escopo fundamental é compreender a problemática da legitimidade dos saberes ao nível da história da epistemologia mas para melhor orientação do mesmo, iremo-nos orientar especificamente pelas seguintes linhas:

  1. Traçar uma linha evolutiva da epistemologia;
  2. Identificar elementos que denotem fundamentos, rupturas e desenvolvimentos epocais da Epistemologia;
  3. Identificar alguns pensadores representantes de cada época;
  4. Fundamentar a legitimidade dos saberes em cada nas diferentes fases histórica da evolução  Epistemológica.

O desenvolvimento deste trabalho ira enquadrar-se na evolução das épocas históricas sendo que, na primeira parte trataremos de forma meio simplificada, a questão da epistemologia enquanto problema filosófico na antiguidade e na fase medieval; na segunda e terceira parte, onde faremos maior abordagem, trataremos dos desenvolvimentos epistemológicos dando sempre mais tonalidade nos seus critérios de elementos validativos do saber, respectivamente, a Modernidade e a Pós-modernidade.

 

 

 

 

 

 

Epistemologia como problema filosófico

 

Um dos problemas comummente postos pela tradição filosófica ocidental é o que se refere à possibilidade de conhecermos a realidade. Era problema de que já tinham consciência os grandes pensadores da antiguidade: Heraclito, Parménides, Sócrates, Platão e Aristóteles, para não citar senão alguns. Nestes, encontramos respostas diferentes, que vão desde a atitude extrema dos que pensam não ser possível conhecer nada com certeza e de modo absoluto (cépticos e sofistas) até àqueles que pensam ser possível conhecer a realidade e apreender a sua essência, adquirindo assim um verdadeiro conhecimento científico (Platão e Aristóteles). Pode mesmo dizer-se que no pensamento grego estão antecipadas, ou pelo menos em germe, as principais soluções que ao longo da história do pensamento vieram a ser propostas para o problema do conhecimento.

Mas foi sobretudo a partir do Séc. XVII, com filósofos como Descartes, Leibniz, Locke, Hume e Kant, que o problema do conhecimento passou a ocupar o primeiro plano na reflexão filosófica e se constituiu como questão prévia ao tratamento de qualquer outro problema filosófico, fosse ele de natureza metafísica ou moral. O racionalismo e o empirismo dos séc. XVII e XVIII têm essa característica comum de fazerem depender da solução do problema do conhecimento a solução de qualquer outra questão filosófica do e, em última análise, o próprio estatuto da realidade ou do ser. De facto, na filosofia clássica e medieval, o problema do conhecimento esteve sempre subordinado ao problema do ser e por ele suportado. O ser determinava o estatuto do conhecimento e da verdade. A verdade concebia-se como adequação entre o conhecimento e o ser. Aristóteles dizia: “não é por pensarmos de uma maneira verdadeira que tu és branco; mas é por seres branco e pelo facto de assim o afirmarmos que dizemos a verdade.”

O séc. XIX que em termos epistemológicos pode ser considerado de ponto de partida da agudização de “procedimentos racionais”, a fase considerada por “tempos modernos”, possui, como característica fundamental o estabelecimento de uma diferença radical entre os períodos, pré-científico e o científico e em consequência disso, temos a fixação duque viria a ser considerado por pré-ciência, ciência e posteriormente a pós-ciência.

A modernidade, nos dizer de David Lyon (1998:37), abrange todas as mudanças significativas que aconteceram em muitos níveis desde a metade do séc. XVI em diante; ela questiona todos os modos convencionais de fazer as coisas substituindo autoridades por seu próprio árbitro, baseada na ciência, no crescimento económico, na democracia ou na lei; ela começou a conquistar o mundo em nome da razão.

No seu Discurso filosófico da modernidade, Habermas (2000:57) refere-se a Hegel e o acusa de ser o mentor do discurso em torno da modernidade; segundo ele, Hegel estabeleceu as regras da dialéctica do iluminismo, tendo elevado a história contemporânea a um nível filosófico e desta forma, transformou radicalmente o carácter da filosofia. N’O discurso filosófico da modernidade, Habermas identifica Hegel com a questão polémica, da paternidade da modernidade pelo facto de ser este, quem trouxe claramente, discursos da modernidade como época normativa e de racionalidade.

Quando falamos da modernidade, referimo-nos ao espírito revolucionário de carácter epistemológico desenvolvido na Europa do Séc. XVI; um espírito claramente, pretensioso, de se constituir numa referência do saber, em tos os seus aspectos, desde o moral, espiritual, cultural, civilizacional e até, filosófico, que teve inicio no período do Renascimento.

O espírito moderno atingiu apogeu no século das luzes com o racionalismo, exacerbado nas teorias científico - metodológicas cartesianas e começou a mostrar sinais de fracasso com a Segunda Guerra Mundial, nas suas nefastas consequências, que permitiram ao Homem descobrir e perceber que, ao lado das azáfamas do progresso científico havia perigos que punham em causa a sobrevivência do próprio Homem; É que, o saber científico retirou à natureza o seu mistério, esforçou-se em apropriar-se das qualidades dos deuses e do passado tradicional. Todo este percurso, concorria ao único objectivo orgulhoso e ambicioso de tornar planetária o saber e as culturas europeias; o saber Moderno se afigurava ao meta discurso que determinava a legitimidade de qualquer saber.

Severino Ngoenha, na sua obra, Estatuto e axiologia da educação, refere-se ao espírito moderno e diz que, pode-se definir a modernidade a partir dos fenómenos que o caracterizam, enquanto consciência epocal, através de alguns sinais em si implícitos: a compreensão da liberdade como emancipação, o mito do progresso necessário e sem fim, o domínio progressivo da natureza, o objectivismo, a homogeneização da experiência, a hipotetização e o universalismo naturalista; segundo Ngoenha, a marca patente da modernidade, àquilo a que ele designa por proprium da modernidade, equivale ao saber científico, particularmente no seu aspecto de cientismo; Este facto faz com que a legitimação científica passasse a ser o critério normativo para avaliar todo o tipo de conhecimento.

Outra característica da modernidade tem a ver com a situação de se querer que ela, tenha tido inicio no histórico ano de 1492, data dos descobrimentos; trata-se do momento em que a Europa pode confrontar-se com o outro tomado numa característica de “fracasso”; esse outro, o descoberto, deve ser controlado, violentado; a Europa é um continente descobridor e conquistador; neste sentido, a emancipação racional, do outro, é um projecto moderno, isto é, o outro deve ser emancipado pela razão egocêntrica europeia; por outro lado, o domínio da cultura europeia em relação as culturas dos descobertos, legitimava a violência e a destruição das culturas que se opusessem à cultura europeia;

Neste sentido, são considerados pilares da modernidade, os seguintes elementos:

- a ideia do progresso que via a história como um progresso dinâmico do homem de um estado de inferioridade à superioridade, do macaco ao homem;

- a ideia da racionalidade científica que vê na ciência como instrumento libertador do homem dos condicionalismos da natureza;

- a ideia das religiões universais (cristianismo) e da democracia como garantia para a liberdade e representatividade.

As incredibilidades do projecto moderno

No centro de qualquer projecto científico, esta em causa, antes de todo o discurso pró ou contra, a condição humana entra em jogo; trata-se de fundamentar e dar sentido as relação existenciais do homem relativamente a si próprio e, fundamentalmente, com o mundo.

A ciência moderna, que concretiza e tematiza toda a epistemologia moderna, desenvolveu-se ao lado da técnica; vale dizer que, entre a ciência e a técnica modernas, desenvolve-se um grande paralelismo lógico e complementar sendo a única distinção, o facto de que a ciência actua mais no campo teórico, isto é, satisfazendo as necessidades de compreensão, investigação e esclarecimento de princípios basilares ao passo que, à técnica, cabe-lhe, a preocupação da acção, satisfazer as necessidades de produção e utilização.

As transformações no saber científico provem de vários factores entre os quais, a falta de credibilidade pela inadequação dos princípios de legitimidade desse saber diante das novas tecnologias. Ao mesmo tempo que a tecnologia surgiu criando dispositivos que ampliam a capacidade de percepção sensorial humana, como por exemplo aumentando a precisão das mensurações, também está provocando o crescimento da incerteza perante revelações inesperadas. Fronteiras entre disciplinas começaram a desaparecer; surgem novos territórios, desabam as hierarquias, aparecem redes planas e imanentes de conhecimento, nas quais, todos passaram a ser permeados por um novo elemento, a tecnologia digital.

David Lyon, refere, em torno da problemática da modernidade, na sua obra, Pós-modernidade, que embora se possa ver a modernidade em conquistas como a ciência, a tecnologia e a democracia, ela também afectou profundamente as rotinas da vida diária; a modernidade ao proclamar a autonomia do homem e ao admitir a razão como regra de vida, ela deu uma mudança que determinaria seu fim: as dúvidas relativamente ao progresso do saber científico muito cedo apareceram. A crise da Modernidade tem a ver com a crise dos considerados seus pilares: já se nota, por exemplo, que já não há representatividade nos interesses do povo, não há interesse pelo cultural, decai a ciência como único saber e em consequência surgem outros métodos para a validação e legitimação dos saberes. Pela primeira vez, a ciência é vista como produção individual e por isso, relativo aos pesquisadores.

- A legitimidade do saber na Modernidade

 

Se é certo que a Modernidade constitui-se em projecto que identifica toda a desejada, pujança eurocêntrica, é lógico que a tradição ocidental, formulasse o problema do conhecimento de uma forma elitista e excludente e discriminatória em relação as culturas consideradas emergentes, as descobertas.

O ocidente torna-se árbitro de todo o saber, como quem tinha o direito de decidir pela sociedade global; considerava-se que todos os homens eram iguais, mas o mesmo não era aplicável quando se tratasse de culturas, isto é, as culturas não são iguais, sendo que, a ocidental era superiora que as restantes. A Modernidade representada pelo ocidente, definiu as condições para a legitimidade de um discurso. A problemática do saber na Modernidade é concomitante à emancipação das burguesias em relação as autoridades tradicionais.

Durante a modernidade, a ciência utilizou jogos de linguagem próprios que a legitimavam procurando excluir os outros tipos de saber. Esta legitimação do saber científico foi a posteriori; a ciência lutava para excluir as outras formas de saber que, em princípio, com ela não tinha relação, como por exemplo, o saber narrativo, saber que se relaciona à tradição.

A modernidade pretendia legitimar só o saber resultante de processos de investigação observável e de experimentação, passível de ser repetido com êxito por outros pesquisadores em outros lugares, de forma que os seus resultados possam ser compartilhados e sejam exactos ou dificilmente questionáveis.

A ciência moderna pretender que fosse considerada a única forma de conhecer verdadeiro com relação a toda a natureza e a todo o domínio a que se estendem as actividades humanas.

A Pós-modernidade e a legitimidade do saber

Já nos finais do séc. XX, o debate sobre Modernidade e Pós-modernidade cristalizou-se entre aqueles que ainda querem chegar a um entendimento com a modernidade e aqueles que vêem a modernidade como algo terminado; isto quer dizer que não se estabelece consenso relativamente a ideia da existência de uma nova época chamada Pós-modernidade.

Aqui, enquanto pensadores como Jurgen Habermas, Antony Giddens, Ulrich Beck, entre tantos, defendem que ainda estamos na modernidade porque os seus princípios orientadores ainda são válidos, a razão continua sendo o principio organizacional da sociedade, os defensores duma nova ideia, a da Pós-modernidade, Jean-François Lyotard, Boaventura de Sousa Santos, Gianni Vattimo, Jean Baudrillard, David Harvey justificam-se pela necessidade de não mais apoiarmo-nos na razão pelo facto de ela ser a base não apenas de construção, mas sobretudo de destruição: a própria racionalidade destrói e a um só tempo constrói (Peixoto, 1998:26).

Não há consenso na formulação do conceito de Pós-modernidade bem como na determinação da sua proveniência; trata-se de período histórico ou de um estilo actual? De um conceito literário ou filosófico? De uma noção arquitectónica, variação estética ou resposta às tendências sociais? Todas estas questões consideram-se legítimas, uma vez que se trata de um termo que representa uma era de ambiguidade e ironia.

Uma das características deste novo paradigma epocal é o enfraquecimento do saber, que já não é homogéneo em todos os países.

Bauman citado por Ebert (2008:5), afirma que de entre as várias definições para a época actual, utiliza-se o termo “modernidade líquida” para caracterizar a fluidez da realidade com que em contrapartida à solidez do período anterior.

Baudrillard, também citado por Ebert diz, na obra que fizemos menção, anteriormente, diz que a pós-modernidade é sinónimo da sociedade de consumo, onde a própria crítica acaba por ser absorvida e transformada em um bem de consumo; É a sociedade da imagem e do espectáculo que tenta esconder sua superficialidade e de já não corresponder a uma realidade nem distinguir o que é real do que é fictício. Tudo é simulacro; a própria política não passa de cenas de simulacro no qual já não há como distinguir o que é real.

Boaventura Santos, concorda com a maioria das críticas à sociedade actual feita pelos seus antecessores aqui referenciados; ele afirma que o modelo da economia do mercado tem aumentado as desigualdades sociais e isto é verificável tanto nos países centrais como periféricos.

Com Lyotard n’O pós-moderno explicado as crianças, a condição pós-moderna tem como marca distintiva fundamental o fim das metanarrativas, grandes esquemas explicativos que, na actualidade, caíram no descrédito pois, já não há outras garantias, a ciência já não pode ser considerada como única fonte da verdade.

Na pós-modernidade, podemos assumir várias verdades segundo o contexto em que se inserem e se justifica.

Um dos factores caracterizantes da nova época determinante para o surgimento da era chamada de Pós-moderno foi a crise do saber científico; os pilares que norteavam a Modernidade exibiram a sua insustentabilidade e, com isso, a legitimidade do saber científico também ficou derrotada dando espaço a novos critérios de legitimação dos chamados, saberes contextuais.

Conclusão

Depois deste pequeno percurso histórico do desenvolvimento epistemológico, podemos extrair algumas conclusões lógicas.

 O conhecimento constitui-se em problema filosófico desde os iniciais momentos de desenvolvimento dos gregos e vai até aos nossos dias; ele desenvolve-se nem sempre, de forma linear mas sim, acompanhado por vários nuances que em muito determinam o espírito das épocas.

Na antiguidade, a natureza é divinizada e por isso a atitude do homem manifesta-se em fundamentar os processos inicias, surpreendentes desta Natureza;

Já na idade Média, o homem animado pelo espírito religioso com pretensão unificadora da humanidade, guia-se pela contemplação mercê da admiração do projecto divina da criação do universo;

Na modernidade, constituída por movimentos revolucionários, o homem determina-se activo, provocador e tecnocrata; o fundamento da legitimação de todo saber, que se pretende unificado, é a condição racional; pela razão, o homem justifica e consegue tudo;

Já na pós-modernidade, período polémico em termos distintivos, a razão humana é sobreposta por um inconsciente social que determina a “desordem” em todos os aspectos; as promessas modernas não funcionam e como consequência as práticas culturais contextuais justificam a condição humana.

Referências Bibliográficas

  1. EBERT,  Maristela Rempel. A sociedade e a democracia na pós-modernidade; in Revista Espaço Académico; número 87, Agosto de 2008.
  2. HABERMAS, Jurgen. O discurso filosófico da modernidade, 3ª ed. Publicações Dom Quiote, Lisboa, 2000.
  3. LYON, David. Pós-modernidade, Paulus, S. Paulo, 1988.
  4. LYOTARD, Jean- François. O pós-moderno explicado às crianças, 3ª ed., Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999.
  5. NGOENHA, Severino Elias. Estatuto e axiologia da educação: o paradigmatico questionamento da missao suiça. Livraria Universitária, Maputo, 2000.
  6. PEIXOTO, Madalena Guasco. A condição política na pós-modernidade: a questão da democracia. EDUC, S. Paulo, 1998.