Pequeno ensaio a respeito da Iconicidade pierciana e exotopia de Bakhtin na música

A percepção, um dos principais meios de obtenção de conhecimentos para a criação segundo Salles (2009: 126), e é para Langer é uma atividade física da criação, do desenvolvimento de uma ilusão, de um tempo que flui em sua passagem – sendo esta audível, preenchida com movimento que é tão ilusória quanto o tempo que se está medindo. Para o criador, os eventos são um oceano de múltiplas possibilidades: uma inesgotável fonte para o devir de sua arte. Salles (2009) aponta que é na percepção de um determinado evento, que o artista se perturba, se inquieta com o que se apresenta e o (re)significa segundo sua própria estética. Faraco nos lembra que:

[…] a atividade estética isola (recorta) elementos da realidade, ou seja, do mundo da vida e da cognição, e os transpõe para um plano externo a este mundo, dando a eles um acabamento (uma unidade intuitiva e concreta) que se corporifica numa forma composicional (Faraco, 2009: 104).

Sendo assim, a realidade é que impulsiona a criação artística e é o olhar minucioso do artista que transforma tudo para o seu próprio interesse (Salles, 2009: 38).  Sendo que a poética de cada artista está diretamente ligada aos seus princípios éticos, seus valores e sua forma de representar o mundo (Salles, 2009: 41). De acordo com Bakhtin – citado por Salles – “a criação de uma obra de arte não surge do nada, do acaso, mas esta pressupõe a realidade do conhecimento, que a liberdade do artista apenas transfigura e formaliza (Salles, 2009: 99)”.

Transmutado então o evento em arte, esta obra nada mais é, senão um diálogo do artista consigo mesmo. Para Salles (2009: 46) o artista é o primeiro receptor dessa obra de arte. Segundo Petrilli e Ponzio (2011: 57) “a comunicação-produção comunica o mundo como ele é hoje, [...] comunicação e realidade, comunicação e ser, coincidem”.

ICONICIDADE MUSICAL

[...] as formas de criação na arte e as descobertas na ciência têm a ver com ícones (Santaella, 1983, p.65).

         

 “A música é uma linguagem e como toda linguagem, ela está inserida no mundo e nós na música” (Santaella, 1983: 13). Assim sendo, é capaz de estabelecer comunicação entre os sujeitos que nela se inserem mesmo que de forma indireta. Langer (1989) explica que se a música tem qualquer significação, esta é semântica, e não sintomática. Deduz-se então que não é função da música transmitir sentimentos. Pelo menos não diretamente, outrossim, pode sugeri-los. Santaella (2005: 24) salienta que o primeiro efeito que um signo está apto a provocar em um intérprete é uma simples qualidade de sentimento. Sendo que a música é um dos ícones citados pela autora como capaz de produzir este tipo de interpretante.

 Tomamos como exemplo alguns efeitos ou técnicas instrumentais da flauta, onde o som emitido lembra o canto dos pássaros. Este recurso utilizado em uma música leva o ouvinte que tenha experienciado a audição do canto de uma ave qualquer, a rapidamente relacionar o som do instrumento com o do gorjeio ornitóptero. Santaella exemplifica muito bem:

A mera cor azul não é o céu, não é a roupa do bebê, mas lembra, sugere isso. Esse poder de sugestão que a mera qualidade apresenta lhe dá capacidade para funcionar como signo, pois, quando o azul lembra o céu, essa qualidade da cor passa a funcionar como quase-signo do céu. O mesmo tipo de situação também se cria com quaisquer outras qualidades, como o cheiro, o som, os volumes, as texturas etc (Santaella, 2005: 12).

Se toda e qualquer qualidade sendo uma propriedade formal, faz do som, dos volumes, das texturas signos, logo: o faz também a música. Não seria ela um amálgama destes? Quando se identifica em um contexto musical o “canto do pássaro” não é a ave ali a cantar, senão um instrumento a emitir frequências sonoras que por similaridade nos permite reportar a ela, sendo, portanto, o “parece mas não é”. Esta característica está presente na obra Jardins dos caminhos que se bifurcam n.º 01, de 2010, de minha autoria, quando utilizo na mesma o recurso da imitação do canto de pássaro.

Na relação com o objeto que o quali-signo pode porventura sugerir, evocar, o quali-signo é icônico, quer dizer, é icônico  porque o quali-signo só pode sugerir seu objeto por similaridade. Ícones são quali-signos que se reportam a seus objetos por similaridade [...] o ícone só pode sugerir ou evocar algo porque a qualidade que ele exibe se semelha a uma outra qualidade (Santaella, 2005, p.17).

O gorjeio da ave não é música tão pouco a música é o canto de um bípede, no entanto, ambos se sugerem.  A semelhança que se pode estabelecer neste caso é através da metáfora, um dos três níveis em que Pierce dividiu os signos icônicos, ou nas palavras da autora “signos que agem como função de uma relação de semelhança com seus objetos” sendo os níveis os seguintes: imagem, diagrama e metrafóra (Santaella, 2005, p.18). Ou seja, poderíamos nos referir aos sons emitidos pelo instrumento, como sendo o “canto de uma ave”. Segundo a autora, a metáfora representa seu objeto por similaridade no significado do representante (música) e do representado (canto do pássaro).

Remeter-nos-ia então ao que Thomas Sebeok chama de “signos no máximo grau de plurivocidade” (Petrilli e Ponzio, 2011: 25). A música em sua materialização é permeada quase que exclusivamente, por signos deste tipo. São sinais que provocam uma reação no intérprete, e este por sua vez, atribui-lhe significado de acordo com suas vivências musicais, que podem ser diferentes das proposições do idealizador da obra.

EXOTOPIA EM MÚSICA

Nas discussões sobre Ética  e Estética, Bakhtin desenvolve o conceito de “exotopia e extralocalidade”, principalmente, nas suas considerações sobre as relações entre autor e herói, o que possibilita o desenvolvimento da ideia de “excedente de visão” – possibilidade que o sujeito tem de ver mais de outro do que a si mesmo.  Bakhtin entende que “em todas as formas estéticas, a força organizadora é a categoria axiológica do outro, é a relação com o outro enriquecida pelo excedente axiológico de visão para o acabamento transgrediente” (GEGe, 2009: 46). A extralocalidade pode se manifestar pela unicidade do meu olhar sobre a vida, sobre o mundo. Ou seja,

Se o outro vivesse a minha vida, se pudesse ver o mundo como apenas eu vejo, se tivesse os mesmos pontos de vista que eu, então eu não precisaria pensar, e não haveria a necessidade de expressar meu olhar único sobre as coisas e a vida (GEGe, 2009: 46)

A minha possibilidade de responder a um determinado evento, sendo o meu pensar único, responsável as consequências de minha extra-localização é um ato exotópico. Tais características estão sim presentes na música. Na obra Pachïvà – Microsséries para flauta doce e piano, de 2010, tal característica aparece no segundo movimento, intitulado II – Ladainha, onde direciono meu olhar de autor para uma obra de meu orientador intitulada Quatro visões, de 1991, em que o quarto movimento da obra é iniciado com uma escala de seis tons.

Utilizo no segundo movimento de minha obra (já identificada acima) a mesma escala acrescida de mais duas notas, com um motivo gerador geométrico parecido, mas, o meu discurso musical nesta obra é totalmente diferente do contido no quarto movimento de Quatro visões, o que denota também um caráter de alteridade. Já a exotopia fica por conta do olhar para uma obra composta 9 anos antes, buscar elementos de uma realidade passada para constituir seu presente, com um pensamento inteligente, único e responsável, pois a obra não é uma copia de Quatro visões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar, vale ressaltar que a semiótica da música é um tanto complexa e ainda pouco aceita no meio acadêmico brasileiro especializado. No entanto, as leituras pelo viés da semiótica, orientadas pelos pesquisadores Santaella, Baitello Júnior, Petrilli e Ponzio e, principalmente, de Bakhtin, tem nos mostrado que o texto musical pode ser lido, relido e (re)relido, sendo que a cada leitura o objeto pode  adquirir novas significações.

Neste momento, foi realizada apenas uma aproximação destes conceitos, na tentativa de explicitar que a aplicação de tais conceitos na criação musical – em especial no meu processo de concepção musical, em especial na minha poética – objeto de minha atual pesquisa, que posteriormente será aprofundada.

REFERÊNCIAS

BAITELLO JUNIOR, N. O animal que parou os relógios: ensaios sobre comunicação, cultura e mídia. São Paulo: Annablume, 1999.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins fontes, 1992.

BENASSI, C. Pachïvà. Microsséries para flauta doce e piano. In. Projeto Duo-Brasil: música erudita para flauta doce e piano. Álbum de partituras. Daniela Carrijo, Betiza Landim (org.). Uberlândia: 2011.

_____. Jardins dos caminhos que se bifurcam n.º 012010. Flauta doce alto solo. Partitura. Acervo particular.

DORFLES, G. O devir das artes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FARACO, C. A.  O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal. In: Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009.

LANGER, S. Filosofia em nova chave. São Paulo: Perspectiva. 1989.

LANGER, S. Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva. 1980.

PETRILLI, S. PONZIO, A. Thomas Sebeok e os signos da vida. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011.

SALLES, C. A. O gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: FAPESP: Annablume, 2009

SANTAELLA, L. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.

SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.

VICTORIO, R. P. Quatro Visões 1991. Quarteto de cordas. Partitura. Acervo particular.