Se na formulação marxista o trabalho é o ponto de partida do processo de humanização do ser social, também é verdade que, tal como se objetiva na sociedade capitalista, o trabalho degradado e aviltado, torna-se estranhado. O que deveria se constituir na finalidade básica do ser social_ a sua realização no e pelo trabalho é pervertido e depauperado.”

                                 

                               (Lukács apud Ricardo Antunes, 1953, p. 126).

 

A êxtase no absorvimento do breve instante interrompido de ações suspensas num intervalo marcado, para o embevecimento de um tempo ocioso, demorado consigo mesmo é vivenciado de modo transbordante pelo personagem Samuel do texto Pausa de Moacir Scliar.

O fetichismo do descanso, do parar, da recorrente e reiterada porque falseada pausa, encarna um momento ritualístico cujos atos objetivos, rápidos e precisos traduzem a expressão de uma fuga acelerada do personagem cujo momento preparatório de iminente evasão desse mundo real, para um pseudo- mundo: o da tranqüilidade, da paz, do silêncio, do não sofrimento, encerra a amplitude deste cenário antecipatório de emoções, sentimentos e experiências paradoxais. O que pode ser exemplificado no seguinte trecho: “Ás sete horas... Samuel saltou da cama, correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído” [1].

Preliminarmente, Samuel ao levantar é apresentado numa seqüência de atividades intercaladas realizadas de forma ascendente e ininterrupta, referência vital da almejada velocidade futurista, presentificadas no texto a partir de expressões encurtadas pela ação simples e contundente. Dono de uma “fronte calva” apesar de “jovem”, possuia “espessas sombracelhas, a barba... uma sombra azulada” formando em sua face um retrato sombrio de sua própria alma cindida no tempo e no espaço moderno. No 2° momento ocorre uma economia do tempo, Samuel usufrui deliberadamente de sua suposta liberdade, comumente subjugada pela tecnicidade da realidade objetiva.

 

As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente; ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas. Estacionou o carro numa travessa quieta[2].

 

No terceiro momento entra em cena a subjetividade de Samuel, materializada na versão do personagem Isidoro. Dois nomes, dois homens convivendo em único ser dilacerado por essa dualidade, e nessa luta de duas instâncias deflagradoras da existência humana, observamos, analogamente a subjetividade Isidoriana subserviente e regulada face à tecnicidade e objetividade do Samuel.

No texto O que é a Modernidade se percebe a clara oposição entre tecnicidade-subjetividade, no seio de uma relação desigual travada por ambas, caracterizada pela predominância da primeira, em detrimento da ausência e dissimulação desta última. Neste entrecruzamento de idéias e opiniões a subjetividade luta em favor de si mesma, de sua afirmação contra toda forma de sublimação, convergindo então para um processo de revolução identitária: “Não podendo mudar o mundo, ela se faz mundo e mundo infinito: microcosmo ilusório.”[3] A ilusão ontológica moderna nivela ser e representação  equiparando-as habilmente em circunstâncias correspondentes da ação representativa do ser.

A Sociologia do tédio assume espaços diversos na atual configuração moderna do ponto de vista do trabalho. O tédio intimida expressões, enfraquece anseios e reduz potencialidades. Ricardo Antunes cita Lukács ao discorrer em seu livro sobre as metamorfoses do trabalho (LUKÁCS apud ANTUNES, 1953, p. 49.) afirma sobre a ocorrência de um estranhamento originado no interior da atividade laborativa, visto que nessa relação, trabalho e homem não se reconhecem mais, estão estranhados, pois a enormidade das deformações degradadas ocasionadas em função de um labor como processo auto-destrutivo acabam por definhar o homem e sua relação com o trabalho (ANTUNES, 1953, p.166). Samuel, nesta via, identifica-se com a representação onlotológica da tecnicização e, portanto como máquina destruidora de sua própria liberdade, e realização plena.

O pós - modernismo impregna o ideal niilista de uma expressão ausente, inexistente, de valores, convicções, e significado para a vida. Constroem-se então, configurações comportamentais de um homem: andróide -melancólico, multiplicado, indiferente, destituído de história, programado, controlado tal como um instrumento téncnicizado, na visão de Jair Ferreira dos Santos,(SANTOS, 1995, p. 18).  Conforme, este autor, o vocábulo pós guarda em seu bojo uma negação, um esvaziamento e esfacelamento de situações práticas de alto alcance significativo: “A des-referencialização do real e a des- substancialização do sujeito, motivadas pela saturação do cotidiano pelos signos.”[4]

Dado o exposto, estabelece-se nesse sentido a realidade totalizante, a via duplificada, que não deve ser suprimida em uma de suas feições__, pois o homem anula-se distanciado da tecnicidade__ bem como segregada, uma vez que isolar elementos complementares do desenvolvimento humano é enterrar a existência da subjetividade Isidoriana que viceja dentro de nós, e em função da qual ainda não fomos arrastados para um lamaçal de humanos meramente mecânicos.



[1] SCLIAR, Moacir. O Carnaval dos Animais. Porto Alegre: Ed. Movimento, 1963, p. 275.

[2] Idem, ibidem, p. 275.

[3] O que é a Modernidade, p. 249.

[4] SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-modernidade. 14°ed. São Paulo: brasiliense, 1995, p. 18.