PASSEIO A TABOCA - DUELOS DE MUNDOS
Helio Teixeira Leite
Muitas coisas têm sufocado minha alma. Talvez o maior enigma, meu e dos povos em todos os tempos da história do homem, seja saber quem é Deus. É difícil aceitar tantas contradições num mesmo espaço, seja material ou mental. Um Deus de graça e de desgraças. As religiões criam modelos, dogmas, explicando a existência de Deus, conforme a conveniência de uma classe, de um momento histórico. Sacerdotes personificam em seus ritos cerimoniais, em suas palavras a presença de Ser Divino.
Não sou contra as religiões. Precisa é haver a verdadeira busca pelo conhecimento, saber em que consiste o Ser Divino. A origem do universo, do homem, dos demais animais. Há existência de outras dimensões físicas, espirituais e mentais poderão, talvez, nos conduzir para cenários onde poderemos formatar esse Ser Superior, de uma forma diferente.
Por que tenho que me conformar com certas situações que me parecem ilógicas? Agradecer a Deus as desgraças do dia-a-dia, por que essas poderiam ser piores? Conheci uma pessoa que sofreu um acidente de carro, perdendo parte de um dedo, entretanto, acho que por medo, disse-me:
-Agradeço a Deus porque poderia ser pior, poderia perder a mão, ou ter morrido...
Sim, medo, somente esse poderia justificar tal declaração. Temos medo de Deus, não o amamos. Sua ira, seu poder poderá gerar maiores dissabores. Ao repetimos; amo a Deus, ele é meu senhor, Deus é fiel, Deus é meu Rei... Estamos, na verdade, é tentando agradar um ser que acreditamos que exista, porque ele é poderoso e violento, sua piedade é para alguns (que nem sabemos quem sejam).
Um acontecimento, recente, marcou-me profundamente, levando-me a refletir sobre a relação existente entre o mundo físico e o espiritual, o nível de interação, de cumplicidade.
Fui convidado para conhecer uma comunidade do município de Barreirinhas (Taboca), no Maranhão, localizado aproximadamente cinco horas da Capital do Estado.
Num ônibus de aluguel, familiares e amigos organizaram-se e partimos, nos relógios dos celulares eram quase vinte e uma horas. Dormir logo em seguida, não percebendo por onde o veiculo corria; de repente a luz vinda de fora do veiculo, fez-me despertar e não sei por que motivo eu achei que estávamos indo pelo caminho errado, já que nunca havia ido aquele local, pura intuição.
Alguns múrmuros de pessoas que estavam mais próximas do motorista, também, contribuíram para aumentar as minhas duvidas em relação ao trajeto da excursão; começamos a ficar inquietos, e pouco a pouco os passageiros acordavam e logo sussurravam. Depois de algum tempo, o transporte parou e pessoas desceram. Após poucos minutos (que para mim foram longos como os fios de cabelos da noite) chegou a noticia, no interior do ônibus, que o condutor não prosseguiria a viagem, uma vez que, não tinha certeza do caminho a seguir. Restou a todos a única opção, ficamos dormindo no local, sentados em nossas poltronas, até o amanhecer de um dia que prometia ser de grandes emoções e dissabores.
O cansaço me fez cair num sono pesado que não me deixou conhecer o nascer do sábado. O sol já preenchia os espaços, fazendo brilhar o verde das folhagens de árvores e arvoredos; a grama estava, ainda, orvalhada, e o cheiro de mato invadia o veiculo. Os reflexos da luz nas folhas molhadas realçavam o frescor do novo dia. Pude sentir um prazer em poder ver tanta beleza, os vários tons de verdes, o azul claro do céu, o branco e o dourado, quase rosado, das nuvens.
Tomamos uma nova rota, depois de chegarem à conclusão que o primeiro caminho não era o correto. Partimos do lugar onde havíamos aguardado o nascer da luz e seguiu conosco a alegria expressada nos risos, brincadeiras dos companheiros de viagem. Da janela do ônibus podia admirar os moradores em seus casebres. Crianças com olhos inchados corriam descalços com suas vestes desbotadas. Aqui ou acolá, a fumaça dos fogões de lenha insinuavam que um grosso café estava sendo preparado como primeira refeição do dia. Galinhas, pitinhos e patos ciscavam nos terreiros onde a terra era esbranquiçada, seca, sem verde. Aqueles viventes olhavam-nos com uma doçura singular, enquanto que os bichos ficaram assustados com a nossa passagem.
A viagem continuou e a alegria, também. Passamos por vários povoados, roças de mandioca e de milho até chegarmos a um lugar onde o ônibus parou. As maiorias dos homens desceram, algumas mulheres os seguiram. Viva! Chegamos a Taboca gritaram algumas pessoas. Entretanto, não era verdade, o que estava acontecendo é que o motorista se negava a continuar a viagem, alegava que o caminho era um areal e que o seu transporte não teria condições de trafegar. Xingamentos foram verbalizados e, rapidamente, um tumulto se formou.
Permaneci parado, sentado, observando o desenrolar dos acontecimentos. O motorista desapareceu e depois de alguns minutos retornou decretando que teríamos que passar para outro ônibus que estava à espera dos excursionistas depois de uma ponte, se assim, desejássemos continuar com o passeio.
No primeiro momento teríamos que carregar nos ombros as pesadas bagagens, depois, ficou acertado que o segundo transporte viria buscar a parafernália, mas, iríamos a pé até passarmos uma ponte de madeira que era estreita e não oferecia segurança considerando o peso do ônibus com seus tripulantes e seus pertenceis e assim foi feito. Tiramos todo o material do primeiro transporte e os acondicionamos no segundo veiculo.
Ao passarmos pela ponte, algumas pessoas aproveitaram para escovar os dentes, molhar os cabelos e lavar o rosto. Acomodamo-nos no novo veiculo e reiniciamos a viagem, agora por estreitos acessos de areia, demarcados por mato, ora alto, ou baixo, dos dois lados. Víamos, às vezes, algumas casas e moradores em suas janelas com uma expressão de admiração por ver aquele veiculo correndo no areal. O sol já estava quase a pino quando algumas pessoas, principalmente minha sogra, começaram a reclamar da distância. Toboca nunca chegava, começamos a ter fome, vontade de irmos ao banheiro, entretanto, o ônibus não poderia parar, uma vez que, poderia ficar preso na areia.
Durante esse segundo período da viagem, pensei como seria a vida daquelas pessoas que moravam naqueles locais, longe de tudo o que eu considero como facilidades da vida moderna. Algumas casas nem tinham energia elétrica, água encanada, televisão a cabo, Internet. Tudo muito básico, a antena parabólica era sinônimo de modernidade e um diferencial socioeconômico, provavelmente, para aqueles cidadãos. Lembro que estamos a poucas horas da Metrópole: A Capital do Estado do Maranhão.
Aproximadamente, às doze horas e trinta minutos, chegávamos a Taboca. Viva! Viva! Chegamos! Que bom! Foram os gritos que toaram no lugarejo. Fomos recebidos pelo tio da esposa do meu cunhado e sua família. Foguetes explodiram no ar anunciando que tínhamos chegado ? foi uma bela festa de recepção. Na residência da família do anfitrião, foi-nos servido um farto café da manhã, tinha bolo de tapioca, pão Francês, um bolo diferente que eu não sei o nome, café, suco, leite. Fui um dos primeiros a me servir, comendo de tudo um pouco, ou até um pouco o mais do que os outros.
Ficamos alojados num salão localizado ao lado da casa dos anfitriões. O patriarca da família era um dos organizadores da festa em homenagem a São Antonio. A família da minha esposa logo procurou armar as redes e inflar os colchões de ar nos melhores lugares, restou-me um estreito espaço na varanda do prédio. Meus filhos ficaram no salão em colchonetes. Levamos nossas refeições, refrigerantes, carne para churrasco, cerveja, bebida quente, entretanto, o almoço foi oferecido pelos donos da casa, já o jantar foi providenciado por nós.
À noite nos vestimos e fomos para o local da festa, entretanto, a maioria das pessoas preferiu não entrar no espaço delimitado por uma cerca, achamos os ingressos muito caros para as condições do lugar, alem da precariedade da sonolorização do evento, apenas meu cunhado e sua esposa compraram os ingressos e participaram da festa. Resolvemos voltar para o alojamento, passando, ante, por uma espécie de quitanda onde compramos e comemos cachorros quentes (frios). Fomos a alguns bares, entretanto, estes não estavam vendendo bebidas, uma vez que, as mesmas somente poderiam ser comercializadas no local da festa.
Quando estávamos quase desistindo de bebermos uma bebida gelada foi que encontramos um bar em frente do alojamento onde nós estávamos instalados; o proprietário do estabelecimento resolveu nos vender cervejas, assim sendo, fizemos uma grande roda em volta de uma mesa e bebemos até as duas da madrugada.
O domingo amanheceu de forma espetacular, o sol brilhou sobre o meu rosto com intensidade. O café da manhã, menos farto do que o do dia anterior, mas gostoso da mesma maneira, animou as pessoas. Ouviam-se foguetes a todo o momento anunciando que uma nova caravana acabava de chegar. Meu cunhado não poupava palavras para elogiar a festa, numa tentativa de fazer-nos lamentar por não ter comprado os ingressos e participado da festança. Num fogareiro fizemos o almoço do dia e farofa para levarmos para a área de banho.
O prazer estava no ar, às crianças de nossa caravana brincavam alegremente por todos os cantos, a cada momento descobrindo uma coisa nova. Sai a fotografa aquilo que achava interessante como várias galinhas chocando ovos num cofo de palha, pintos, porcos no aprisco, flores de urucuzeiro, margaridas, onze ? horas, galinhas comendo grãos de milho, pessoas da nossa caravana conversando, passeando no vasto quintal da estalagem.
Foi-nos informado que Taboca tem três lugares de banho coletivo, um espaço utilizado apenas pelos homens, outro pelas mulheres e um terceiro por ambos os gêneros. Fomos, como se fosse uma passeata, ao ultimo local de banho onde deparamos com uma bela paisagem típica da beira de rios de água doce, com muitas palmáceas, água corrente e transparente. A turma bebeu muito cerveja e refrigerante, alem de comer muito churrasco e farofa. Era uma confraternização de amigos e familiares, um forte apelo emotivo, este importante como cimento que liga e solidifica os laços de parentesco e amizade. Minha esposa era só alegria, Marly ? minha cunhada- queria dançar num barracão localizado na parte alta do local ? é claro que não consentimos.
Já eram duas horas da tarde e resolvi voltar para o alojamento acompanhado do meu filho Gustavo. Gorette e Thiago continuaram na folia que tinha hora para acabar, já que, teríamos que voltar para São Luis ante do anoitecer. No caminho de volta, eu e meu filho fomos ao banho dos homens. Era um local luminoso, maravilhoso, nunca estive em um ambiente de singular paisagem. O rio era profundo, entretanto, com águas cristalinas que permitiam observarmos o fundo colorido com vários tipos de plantas aquáticas em constante movimento como se estivessem bailando para nos impressionar. Palmeiras gigante emoldurava o quadro natural, a água ao se movimentar emitia um som suave e vivo ? acho que a mesma estava a conversar com os seres invisíveis que ali habitam, era um paraíso de mães-d?água, não banhei nu com vergonhas das senhoras donas do local. Pensei: por que será que achamos que estes locais são governados por mulheres? Será que não existem os pais de águas? Respeitei a paragem ate porque a considerei num espaço sagrado. Se existe Deus, talvez tenha sido ele que teceu aquilo tudo ou foi um dos seus mais competentes engenheiros.
O banho dos homens sem duvida me proporcionou um sentimento de harmonia; fiquei a imaginar que forças estariam controlando, governando, harmonizando, protegendo o lugar, há quantos anos aquelas palmeiras estão ali? Estranho é o sentimento diante de tanta beleza, logo queremos possui, deter o patrimônio. Não basta pertencer, admirar, estar ali. Ao sair do banho olhei mais uma vez pra trás para ter a certeza que não era uma miragem provocada pelo sol causticante. Gustavo estava ao meu lado; então era uma verdade verde, translúcida, murmurante, ofegante.
Aproximadamente, às quatro horas da tarde a excursão se despedia dos anfitriões e era visível a alegria de todas aquelas pessoas. Em certo local trocamos de veiculo para aquele primeiro transporte que não pode seguir no areal. Em certo momento minha cunhada, Eliane, me disse: - ainda bem que tudo deu certo. Não sei porque eu disse: - o pior ainda está por vim. E estava mesmo. Pouco depois, acredito que depois de uns vinte minutos, o ônibus ficou preso num areal e ai começou o inferno zodiacal do passeio.
Descemos do veiculo e fomos empurrá-lo, homens e mulheres, e nada; começamos a cortar mato, troncos e colocamos nas rodas do transporte e tentamos e tentamos sem sucesso. A noite começou a cair de forma ameaçadora, no horizonte pesada nuvens anunciavam a tempestade que corria pelo céu como se fossem cavalos em fuga. Meu cunhado resolveu buscar socorro num lugar que ficará pra trás a um os dois quilômetros. O ocaso já reinava plenamente quando um trator chegou e em meio à tempestade foi feito varias tentativas de retirar o ônibus do areal. Tempo, depois, fizemos uma arrecadação entre os chefes de famílias que ali se encontravam para pagarmos o dono do trator e este foi embora, deixando-nos na escuridão onde os súditos da noite passeavam livremente, principalmente, os pernilongos e vaga-lumes. Algumas mulheres resolveram ir à procura de um lugarejo para pedirem água e fazer mingau para as crianças pequenas, uma vez que, estávamos sentenciados a dormir dentro do veiculo. Os celulares tornaram-se lanternas; algumas pessoas que tinham lanches guardados começaram a comê-los de forma circunspecta, quase escondido, evitando compartilhar com os demais famintos e sequiosos.
A chuva caiu de forma intensa, tivemos que fechar as janelas do veiculo e, consequentemente, o calor aumentou, ficando difícil respirar. Uma nuvem de pernilongos começou a se alimentar do nosso sangue; crianças chorando; minha sogra - alem de tossi fortemente - reclamava tanto. Desespero, acusações e os conflitos aumentaram geometricamente. Com muita sede somente tive uma opção: abrir a janela do ônibus e coloquei um copo descartável do lado de fora e pouco a pouco fui bebendo a água da chuva. Tive a preocupação de desligar o meu celular, poupando a bateria, até porque nenhuns dos celulares dos passageiros tinham sinal de qualquer operadora.
Quando as mulheres voltaram do lugarejo longínquo trouxeram pão, água em litros de peti e o mingau das crianças ? foi um alento para nossos corpos, acalmando, temporariamente ? nossas mentes. Tudo foi racionalizado para que todas as pessoas tivessem uma ração de pão e água. Neste momento, é que sabemos quem é solidário, ou não. Simone, esposa do meu cunhado, ia dividindo o pão como se estivesse aprendida esta arte com o Senhor do Sermão da Montanha. Outras pessoas, inclusive parentes próximos, tiveram uma postura completamente diferente e pude ver a pequenez de suas almas, o quanto precisam ainda perceber o valor do compartilhar, da solidariedade, da irmandade. Pobres criaturas, antes de serem atingidos pelo desprezo, pela repugnância, deveremos orar pelas suas almas.
Acredito que já era, aproximadamente, 22 horas quando se ouviu sons de um veiculo ? era um ônibus. Este ao tentar passar no areal, também, ficou atolado. Era uma excursão de uma igreja evangélica. Formou-se um tumulto ao lado dos dois veículos, homens conversavam e gesticulavam. Os músculos masculinos somaram esforços e logo o veiculo dos religiosos saiu do lameiro e ouviram-se gritos de: gloria a Deus, fiquem ai pecadores, vocês não têm fé, Deus é maior, Deus é fiel... Eram fechas desfechadas da boca e do coração dos que estão salvos. Fiquei paralisado com aquela atitude mesquinha dos evangélicos. Serão eles diferente dos incrédulos? Dos mercadores de indigências? "Teu coração é pedra num deserto com o sol a pino, poderás entrar no reino dos céus? Irmãos eu vou digo: muitas e muitas outras excussões terão que fazer; vestir a alma com muitas mudas, até que sejam considerados aptos a entrarem em uma das moradas gloriosas".
A pouco mais de 50 metros o ônibus dos virtuosos religiosos voltou a ficar atolado. Meu coração transbordou de regozijo e sentimentos de pequenez, de falta de iluminação superior se apoderam da minha alma. Neste momento, fiquei nivelado, igual àquela massa de homens de camisas mangas comprida, com as suas bíblias em baixo dos braços como se essas fossem a chave do paraíso. Entretanto, em minutos o ônibus daqueles partiu, deixando-nos para trás na nossa agonia e desolação. Contudo, logo após a partida do ônibus, sentimos a falta de um dos elementos do nosso grupo (vou-o denominar de Jeribá). Jeribá havia partido com a caravana evangélica, como se fosse um deles. Aparecem algumas oportunidades nos caminhos que não devem ser desperdiçadas. Ele foi esperto e libertou-se daquele cativeiro, deixando para trás a esposa (minha cunhada), os três filhos e os amigos, provavelmente teve motivos relevantes para agir desta maneira.
De todo o pesadelo o que me marcou foi àquela atitude dos escolhidos de Deus, a falta de solidariedade, de respeito pelo próximo, entretanto, quem poderá cobrar postura? Eu? Você? Cada criatura tem suas escolhas, valores, modos de se sentir protegido por Deus, convicções, preconceitos, duvidas, sofre o peso de sua própria existência. Muitos buscam sua salvação acusando outros, batem nas portas das residências lendo passagens da bíblia como se estivessem sentenciando as almas dos não crentes ao fogo do purgatório; como se os caminhos para uma das moradas fossem único, reto, sem desafios, sem dor. A casa do meu pai tem muitas moradas ? alguém já falou isso há pelo menos dois milênios passados. Para chegar a uma dessas moradas temos caminhos curvos, retilíneos, longos e curtos, espinhos espalhados no ar, brisas de favos de mel amargo. Quero aprender a ler as tabuletas que indicam qual a estrada a tomar, aprender a vestir o meu corpo com vestias de dromedários, protegendo-o dos desejos indesejados, da luxurias ? como é difícil negar a própria carne que punge, rompendo os laços da coerência. Aspiro lavar minha alma nas águas claras, purificando-a, deixando-a branca, translucida, pálida, sem pecado, sem rugas, sem ferimentos.
Não sei exatamente a que hora um micro ônibus se aproximou do nosso pesadelo. Depois de acertos com alguns passageiros desse transporte, prosseguiram viagem: os idosos e as crianças da nossa caravana. Minha sogra com sua tosse e seus netos pequenos se foram, voltando a São Luis para a segurança de sua residência. Na madrugada uma pequena vã levou mais quatro pessoas que pagaram uma gorda gorjeta ao motorista.
Minha esposa me propôs que fossemos na vã, durante a madrugada, e ao amanhecer estaríamos longe dali, entretanto, dois aspectos me detiveram. O primeiro era a incerteza da escolha, uma vez que, o veiculo iria, somente, até Barreirinhas e como conseguiria dinheiro para volta a São Luis, todas as minhas economias tinham sido destinadas a pagar o trator que tinha tentado desatolar o ônibus. O segundo aspecto, tão importante como o primeiro, foi o fato de não deixar meu cunhado que é também meu compadre sozinho naquela situação, já que, todos os homens estavam indo embora. Ao amanhecer, os que ficaram no presídio estavam com fome, sede, deformados pelas picadas dos insetos noturnos, não mais esboçavam sorriso, olhos fundos e os desodorantes já vencidos denunciavam a falta de banho, do escovar dos dentes e língua.
De repente, lembrei que o meu celular estava carregado e então sugerir que alguém pedisse socorro. A cunhada de minha esposa saiu e depois de pouco tempo voltou avisando-nos que havia conseguindo contato com o seu tio ? aquele que tinha organizado a festa em Taboca. Alguém comentou, depois, que ao caminhar poucos metros do local onde nos encontrávamos o telefone deu sinal possibilitando o pedido de SOS. Simone chorou, desesperadamente, ao falar com o seu tio.
Trinta minutos se passaram quando surgiram três Toyotas com muitos homens, cestas de alimentos (café, água gelada, pão, sanduiches, leite, chocolate). O sol já um pouco acima da linha do horizonte moldurou aquela cena e meus olhos jorravam lágrimas fartas com se cachoeiras fossem. Comia aqueles alimentos como se fosse um animal que esquivará do cativeiro, uma loucura, um furto colossal.
Durante estes 12 meses que já se passaram várias vezes vem a minha mente aquelas cenas e uma tristeza me assombra. Durante aqueles momentos terríveis quando aguardávamos algum tipo de socorro orei, rezei, pedia a Deus que me ajudasse - clamei aos senhores das matas, aos mestres dos caminhos, mas, nada aconteceu que favorecesse a mudança daquela situação. Travaram-se dantescas batalhas entre dois mundos. O mundo dos insetos nocivos, dos homens de camisas de manga comprida com o mundo das safiras etéreas, dos nobres mestres espirituais. O primeiro mundo fez agonizar o segundo que foi se distanciando da concretude, abrindo-se um abismo gigantesco, uma profundeza abissal entre os mundos. Continuei vagando entre aquele primeiro mundo e o abismo, entretanto, dentro dos campos áridos da alma, permaneceu o ressentimento por ter sido esquecido, mas, também, o desejo de volta a pátria amada.
Terrível é a vida do homem partido, dividido, subtraído, amputado parte de si, pedaços que não se colam, que não se reconstituem. A vida passa como as águas de um rio, que não sabe que caminha em direção ao mar. Quero ser rio de água doce que recomeça sua caminhada quando se mistura com as águas salgadas do oceano. A foz de um rio é o berço de uma nova jornada, ainda maior do que aquela que até então foi empreendida. Talvez a morte seja a foz de um rio, quem saberá?
São Luis, 28 de agosto de 2011.