Vou passando pela vida

                                                                                  Vou passando pela vida... Pela minha vida... Sem olhar para os lados, sem olhar aquele a quem chamam de irmão. E assim em não o vendo, não preciso ver a mim. Ignoro aquele ser que me estende as mãos a pedir e que eu finjo não ver. Que me olha com olhos tristes, a pedir que eu o ouça, que olhe um pouco por ele e para ele, e eu passo como se ninguém houvesse...E ninguém há que eu me sinta no dever de... Melhor mesmo que eu não o olhe, para que nele não me veja.

Ouço o estalar dos chicotes que açoitam o animal chamado homem. Que se deixa açoitar... Que tem fome... Que tem frio... A quem falta amor... Que tem solidão de si mesmo e que está tão impregnada em suas entranhas, que mesmo no meio da multidão ele é só. Precisa dos meios de comunicação para que possa interagir, não importa com quem...Mas interagir, mesmo que unilateralmente... Que abaixa a cabeça, que se submete e que permite que aos poucos nele se acenda a chama de um sentimento que ele ainda não sabe nomear.É a revolta. É a revolta do oprimido. É o grito contido que nele cresce e que deve ser estravasado, seja lá de que maneira for.Até em uma pseudo-humildade .

Ouço o roncar do estomago vazio da humanidade e o som prazeroso do saciado. Mas só estou atenta ao meu. É o que a mim interessa.

Minha roupa limpa em contraste com a sua tão suja, rota...Faz-me mal...Tenho ânsias...Ânsias dessa falta de empatia que há em mim, que tal qual erva daninha, se espalha cada vez mais e dela não me livro, nem que eu queira. Será que quero?

Quando me permito olhar para os lados, não sinto, mas vejo, que cruzes de vários tamanhos estão nos ombros daqueles que ao meu lado passam. De pequenas a grandes... Imensas.

E a minha...Onde está?... Eu que estou tão centrada em mim, bastando-me a mim mesma, não a percebo. Só vejo e analiso a dos que por mim passam, a gemer, a clamar e a não aceitar o seu peso.E deles não me compadeço.Que procurem ajeitá-la em seu ombro. Devem ter feito para merecê-la.

E lá vou eu, percebendo sorrisos e ouvindo soluços de dor...Que não são meus... Então...Ignoro.

Aborto?Que interesse posso ter se quem deveria não o tem? Sequer se importa com o ser que nela cresce e que foi fruto de uma união de amor ou ódio, mas foi um fruto concebido com ou sem pecado.Não é problema meu.

Drogados...Crianças, jovens e adultos em busca de algo que pensam tornar melhor a sua maldita vida. Pensam? Vã esperança de tornarem seus caminhos no que pensam ser melhor.  E o outro? Porque se arvora de Bom Samaritano? Quer se mostrar? Idiota. Não sabe que de nada adianta? Faça como eu. Cuide de sua vida. Se você mesmo não cuidar, quem há de? Quem quer se drogar é que devia pensar...E quem sabe já não o fez para tomar tal decisão? E você quer tirar dele a liberdade de ser o que quer?Ora bolas...

E você desgraçado, a dormir no chão ou no banco da praça, do que se queixa?Da falta de solidariedade humana ou da sua falta de iniciativa em procurar o que fazer para se livrar desta maldita ou bendita situação. Tudo depende de como você a vê...De como a sente... Está bom para você? Ou serve para julgar quem de você não se compadece? Passo longe

para não ser impregnada pelo odor que de você exala.

Ouço a sirene da ambulância e a Deus agradeço. É você que está lá dentro a sofrer, irmão sei lá de quem. Eu estou aqui.Bem, muito bem.

Bancos assaltados, pessoas feridas, pânico entre os presentes, sofrimento da família dos policiais, dos bandidos, dos clientes do banco.E eu...A assistir tudo, confortavelmente pela televisão. Sã e salva.Azar o seu.

Cresce a minha indiferença. Cresce a sua revolta.

Você se sente oprimido, porque é fraco, não sabe lutar, não sabe se impr. É e será sempre o “zero à esquerda”, aquele que não sabe a que veio,para onde e porque vai...Deixa-se levar como uma folha ao vento.É o excluído da vida, o que se permite não ser nada.

Eu não me sinto opressor. Eu vivo a minha vida... A minha.E não compactuo com sua vida miserável que a mim não interessa e pela qual não faço nada e que para mim, em não fazendo, já é muito.

Aquela criança pele e ossos que vi nos jornais, a mostrar o abandono em si, aquele olhar vazio de vida, aconchegado a uma coisa que parece ser sua mãe e que nem dela consegue tirar seu alimento, a mim não diz nada. Elas se merecem e estão muito longe da minha realidade. A minha está perto de mim, saudável, tendo sua fome saciada, de alimento físico, emocional, espiritual. Pelo menos eu penso que sim e em o pensando, o é. 
Quero que tudo a meu redor seja feito para que eu possa usufruir da melhor maneira possível, que atenda a todos os meus desejos, que me coloque como objeto central,a quem tudo deve ser oferecido...Tudo de melhor.Que de mim as pedras sejam afastadas e que eu seja atendida, em primeiro lugar, preferencialmente, pois sou melhor que você, “zé ninguém”.

Mas, através do redemoinho da vida, vi-me jogada para o outro lado. Não percebi, não senti, visto que sou assim, meio que centrada em mim. Só me dei conta, quando passei a suplicar com meu olhar, o seu...A pedir que em mim se visse e da minha dor fizesse a sua. Quando passei a me sentir o outro que antes era você.

Quando comecei a mendigar pelo pão de cada dia que a mim não mais pertencia e que eu tinha que estender a mão, para que alguém nela o pusesse. Assim como Jesus,já crucificado, na terceira hora, tenho vontade de gritar: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34).

Será que é meu esse odor insuportável que eu já senti no outro?Como isso aconteceu comigo?Que sempre cuidei tão bem de mim.Que vivi minha vida plenamente?

Insensível...Indiferente...Egoísta...Ensimesmada...Desalmada...Como não percebi meu irmão, senão agora que como ele me sinto, que como ele sou? Porque não percebi que me desviava do caminho, quando tudo fazia para não ver o outro? Desviei-me tanto, que na primeira curva da estrada o encontrei e nos fundimos na desgraça. Eu não o salvei, mas mesmo fugindo de mim, para não ver o que talvez não quisesse ser , nos tornamos um só, seguindo a trilha do oprimido, do cabisbaixo, do sem coragem, daquele que tudo aceita sem querer saber por quê. Sem ninguém a nos olhar e mostrar se há a possibilidade de uma Luz para nós. Então saímos os dois a procurar...

“Filho meu, tu sempre estás comigo e todas as minhas coisas são tuas: mas convinha celebrar esse banquete e alegrar-nos porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado.” Lucas, 15,11-30.

 

Heloisa