Ver o processo de criação como ato comunicativo é seguir as pegadas de um autor e o trajeto dialógico da linguagem que se manifesta durante a feitura de uma obra literária. É a criação como um ato social e histórico que ao ver de Peirce é a cadeia infinita de sentidos.

Considerando essa cadeia de sentidos, buscamos na semiótica o eixo básico para análise do processo comunicativo de uma obra literária, por ser essa ciência, a Semiótica, que tem por objetivo estudar o processo de comunicação e seus meios, ou seja, respectivamente, entender a linguagem e os signos. Como diz Santaella (1990): a Semiótica é a ciência geral de todas as linguagens vemos que ela engloba realmente a linguagem verbal e a não– verbal, isto é, todos os fenômenos lingüísticos, em particular, e todos os culturais, em geral, são por definição semióticos (COUTO, 1983).

O nome semiótica vem da raiz grega semeion que quer dizer signo, qualquer coisa que substitua ou represente outra, em certa medida e para certo efeito (PIGNATARI, 1979). Nessa concepção pode-se notar que as coisas têm um significado em si mesmo.

O processo e os meios de comunicação não são entendidos como deveria; em outras situações são de difícil entendimento. A necessidade da Semiótica aparece neste exato momento, onde a compreensão da leitura (verbal ou não– verbal) é o léxico. Portanto, a Semiótica dá condições, meios e subterfúgios para uma leitura compreensiva. E compreender obras literárias com base na Semiótica peirceana nos garante resgatar toda a caminhada de signos utilizada no processo de criação: ícones, índices e símbolos e os movimentos que nos levam à descoberta, encontro e conhecimento da obra.

O estudo do processo de criação ou a crítica genética de uma obra incorporam uma nova crítica, uma nova análise que vai além dos limites da obra, interrogando o texto literário a partir de sua gênese. O interesse desse novo estudo está no processo criativo e, como diz Salles (1990), parte da intertextualidade, para a dinâmica e razão utilizadas na criação de uma obra literária.

Escolhi a perspectiva da semiótica peirceana para estudar o processo criativo em sua totalidade, buscando investigar os princípios de organização que justificam a criação, tendo como base a tese de doutoramento da professora Edina Panichi, ao analisar a obra de Pedro Nava. O alvo do estudo de Panichi é um dos livros de Pedro Nava, a análise do manuscrito de Beira-Mar/Memórias 4, valorizando o seu tempo e espaço, enfatizando o processo de escritura do autor. A razão disso é porque o manuscrito nos permite penetrar na 3ª dimensão da literatura: o vir - a ser. A essência do trabalho literário parte do estudo da sua feitura, do caminho que se percorreu para se chegar até tal produto. Também Valéry, Maiakóvski, Eisenstein e Marx concebem como obra de arte o estudo da fabricação de algo, o seu processo, e não o seu produto, o seu resultado (Apud, Salles,1990).

Nesse sentido, partilhamos da seguinte idéia: um escritor deixa marcas concretas da sua caminhada durante a confecção de sua obra. As próprias rasuras permitem-nos acompanhar a lenta agregação dos componentes estilísticos que irão mais tarde caracterizar a obra em um estágio final. Elas passam a ter importância como elementos promotores da escritura, instaurando e tornando visível a dimensão prospectiva do fazer literário, ausente na obra publicada. Em termos peirceanos, o processo de criação artística é um processo de busca da verdade (processo de causação final). Na visão de Jakobson (1970), esse é um aspecto intrapessoal da comunicação, objeto da crítica genética em que o autor dialoga com ele mesmo, acerca da sua criação.

A recorrência a teorias da linguagem visual, cinematográfica, musical e verbal e ao mesmo tempo a teoria oferecida pelos criadores através de mapas, fotos, diagramas, roteiros, anotações sobre músicas ouvidas e rascunhos constituem-se em material capaz de dar preenchimento e concretude à abstração dos conceitos semióticos.

Ao tratar do processo de criação, Salles (1990) afirma:

... o estudo do manuscrito valoriza o seu aqui-agora, isto é, o seu tempo e seu momento; provém da mão do escritor e não foi tocado por mãos publicadoras. Estamos diante de uma figura singular, uma aparição única. O centro de estudo passa (ou volta) a ser a obra original.





O estudo do manuscrito fornece um saber diferente, fazendo ver os diversos componentes da escritura: socialidade, individualidade, pensamento inconsciente, língua e forma, numa combinação onde se dá a gênese da obra. Partindo das marcas concretas do processo: índices, podemos chegar às intenções do autor ao criar. Essa pesquisa confere estatuto de objeto de estudo literário ao que, na aparência, demonstra não ter grande importância. Essas marcas revelam o material de um pensamento em atividade: anotações, diários, textos rejeitados, rascunhos e peças que foram utilizadas para confeccionar o recorte final, o texto publicado.

Não são os momentos cristalizados da obra que constituem o ato criador e sim um movimento provisório da criação, no seu momento hipotético. Os índices obtidos na observação do material de algum escritor e as informações obtidas podem orientar para a montagem de um mapa das pegadas do escritor em direção a sua obra.

Desse modo, o processo de criação como processo de causação final nos oferece um quadro télico que nos revela as características gerais do processo de criação. Assim, temos um caminhar em direção à meta, a procura dos meios concretos: é o processo como ato comunicativo, a própria manifestação, ao longo do processo criativo. A percepção e as linguagens (visual, musical, cinematográfica, jornalística e verbal) revelam a matéria-prima da criação que o autor utilizou na gestação de sua obra. Em seguida, dá-se o processo de criação como processo de criação literária, a gênese da obra, o nascimento das personagens, tempo, espaço e foco narrativo.

Com base na teoria peirceana, a Semiótica oferece um mapa para localizar e compreender o fenômeno do processo criativo. Basta pensar a criação como um signo em termos peirceanos: o signo como processo que se desdobra e entra na cadeia infinita da criação, o modo como entramos em contato com a realidade e como ocorre o crescimento das idéias.

A esse respeito Santaella (1983:45) argumenta:



Considerando experiência tudo aquilo que se força sobre nós, impondo-se ao nosso reconhecimento, e não confundindo pensamento com pensamento racional (deliberado e autocontrolado) pois este é apenas um dentre os casos possíveis de pensamento, Peirce conclui que tudo que aparece à consciência, assim o faz numa gradação de três propriedades que correspondem aos três elementos formais de toda e qualquer experiência.



Essas três propriedades são as categorias do conhecimento ou modos de operação de pensamento: primeiridade, secundidade e terceiridade. Peirce chama de pensamentos-signo que se processam na mente, na consciência, onde se produz a apreensão dos fenômenos tanto externamente quanto internamente; um brilho, um olhar, um som, uma cor, um vento, uma lembrança, etc. Peirce considera essas categorias como universais que interagem dialeticamente e são concebidas simultaneamente. Por isso, não se pode delimitar ou demarcar fronteiras, segundo ele, entre esses estados da mente. Mas, sim, conceber a dominância de um modo de consciência sobre os outros.

Essas categorias de operação do pensamento são assim descritas por Peirce: Primeiridade: sentimento, estado complexo de presença real; é um estágio da consciência - o acaso. Secundidade: vontade, confronto ou deparação com o fato; passa da possibilidade de ser ao ser. Terceiridade: conhecimento, relação de interpretação; processo de causação final de busca da verdade - inteligência investigadora de revelação da verdade.

Quanto a essas categorias peirceanas, Coelho Neto (1985) nos apresenta uma divisão dos signos em três dimensões: o signo em relação a si mesmo, o signo em relação ao objeto e o signo em relação ao interpretante, a seguir:

Categorias: 1ª - signo em relação a si mesmo: primeiridade –qualisigno - ícone/rema(sensações); 2ª - em relação ao objeto: secundidade – sinsigno/índice/dissigno (diagramas); 3ª - em relação ao interpretante: terceiridade-legissigno símbolo/argumento (frase - bandeira).

Na visão de Salles (1990) é a coexistência dinâmica das três categorias que marcam de modo enfático o processo criativo.

... A verdade não é uma virtude do artista transferida previamente. Assim, as marcas deixadas pelos escritores (anotações, rascunhos, roteiros, mapas, bonecos, etc.) levam-nos à verdade acerca dos caminhos que eles percorrem para construir suas obras, ao desejo operativo do autor em atingir o seu objetivo.





Para entender esse desejo operativo é importante rever o processo de semiose como processo de causação final que, segundo Peirce, é ciência, uma busca pela verdade criticamente consciente. No caso da gênese da literatura, é do conflito da ordem que se quer e desordem que se tem que ela surge. Por isso é que o caminho do processo criativo se revela perigoso, pois implica futuro determinando passado, propósito governando ação particular, e essa determinação do passado depende de um julgamento.

Penetrando na investigação, em qualquer ponto do processo, encontra-se um signo: algo a ser interpretado. O ponto seguinte é interpretante do signo e o anterior é o resultado das interpretações (o objeto imediato do signo). Há o objeto dinâmico (real) quando pensado de modo geral, sem particularidades, sem relação com interpretações, é o que não agarramos (percepção). Há o objeto imediato; é o acesso que temos ao real, é o que supomos conhecer sobre o objeto do signo a um certo momento de sua interpretação – aparece em qualquer ponto da investigação (processo semiótico). Para Peirce, nesse estágio, o objeto está em sua forma disponível – é representado pelo signo num de seus aspectos. Assim, conforme Peirce, temos três interpretantes: imediato, dinâmico e final.

O interpretante imediato está associado à idéia de interpretabilidade; é a possibilidade de produzir diferentes interpretações – é uma abstração. O interpretante dinâmico é ligado à idéia de manifestação, é o signo como é, como está sendo interpretado, tudo que ele pode ser. E o interpretante final está ligado à idéia de resultado, produto, signo interpretado – consagrado (primeiridade).

No processo de criação, o objeto dinâmico é revelado porque vai-se dinamizando e apresentando um objeto, ao invés de representando. Tanto nós quanto os escritores temos acesso aos interpretantes dinâmicos, ao que o signo produziu na mente do escritor – os modos como ele consegue representar a realidade em diversos momentos. Ao mesmo tempo, o criador acredita que a realidade seja sempre possível de se conhecer – nesse momento o objeto imediato é o objeto dinâmico - o signo é, por algum tempo, adequado ao objeto. Esse é o momento em que o objeto imediato é o objeto dinâmico – os signos se tornam acessíveis a nós, dando-nos base para a interpretação. Há o retorno ao caminho em direção à verdade – há a possibilidade de errar, mas o processo é auto-corretivo e retoma-se o caminho em direção à verdade. Esse falibilismo (possibilidade de erro), a atividade autocorretora e suas interrelações implícitas nos parecem ser características essenciais para entendermos o processo de causação final rumando para um estado final. Os passos concretos de um criador que tornam possível sua meta podem ser mapas, fotos, anotações, diários, outros, tudo que o auxilie. Para Peirce, isso é autocontrole. Ele nos fala da existência de três elementos ativos no mundo: lei - aquisição de hábito e acaso. Essas leis são resultados de evolução – processos de causação final. Esses três elementos que Peirce diz estarem ativos no mundo determinam os três modos de evolução do pensamento que são Tichismo (acaso), Ananquismo (hábito) e Agapismo (lei).Peirce esclarece-nos que a linha demarcatória entre esses três modos de evolução não é muito clara. E para efeitos de esclarecimentos apresentamos algumas explicações sobre cada um deles.

O Tichismo é a evolução do pensamento por variação fortuita, circunstancial, espontânea, casual, indeterminada. Nesse estágio o desenvolvimento do pensamento consiste em partidas de idéias habituais em diferentes direções, sem propósitos e sem limitações.

O Ananquismo é a evolução do pensamento por necessidade mecânica - força bruta. O desenvolvimento do pensamento consiste na adoção de novas idéias sem prever para onde elas tendem, mas tendo um caráter determinado por causas internas ou externas à mente.

O Agapismo é a fase do amor evolutivo, amor criativo – a lei do amor. Nem sem propósito como no Tichismo nem por força da lógica como no Ananquismo, mas por atração imediata, por empatia.

Para Peirce, esse propósito é o desenvolvimento de uma idéia. A evolução acontece por conta do amor que atrai essa idéia – a mente sendo seduzida por uma idéia. Assim, podemos relacionar Tichismo (acaso) e primeiridade; Ananquismo (força bruta) e secundidade: e Agapismo (lei) e terceiridade; três modos de evolução do pensamento correspondentes aos passos que constituem a criação literária. É um processo onde os três modos de evolução estão onipresentes como Peirce prevê.

Salles, para explicar os processos de criação como processo de causação final, procura em Loyola o movimento télico (mapeamento do final, anotações, caminhos sensações, pontos de partida e estímulos) que o escritor acaba deixando como pegadas, sem inventar explicações, apenas descrevendo-o.

Esses processos são constituídos de momentos ou movimentos. O primeiro movimento é a busca da escritura em si, estruturas, gênese, através de manuscritos, diários, anotações, materiais utilizados na criação em processo. O segundo é o da descoberta da matéria – prima da criação , suas metamorfoses – seus estágios de evolução. O terceiro é o do objeto em criação, considerado através dos modos de evolução do pensamento: o inesperado tem um papel de grande importância no caminhar do processo criativo (tichismo = acaso) o imprevisto, o acaso tem poder criador.

Há a dificuldade de determinar os limites entre os modos de evolução de idéias. É a onipresença dos modos de evolução do pensamento na criação. Em termos peirceanos, o agapismo – evolução com o propósito de alcançar a meta não é mais por puro acaso que a idéia evolui e sim com propósito definido: as idéias vão-se avolumando, as anotações aumentando e o amor vai evoluindo.

No ananquismo, a evolução de idéias ao longo do processo criativo, determinada por força bruta, é o desenvolvimento sem propósito, determinado por causas externas e internas à mente (problemas particulares paralelos à criação – anotadas em diários que impedem o escritor de escrever por algum tempo). É o quarto, movimento interno ao criador. É o momento do processo criativo em que o objeto se manifesta como obra do espírito ou da mente. Obras como resultado de trabalho e não somente objeto de inspiração – processo de causação final rumo à meta do criador = obra. É a textura de sucessivas semioses: relações de primeiridade, momento do sensível; secundidade, montagem da obra; terceiridade, caminho para a satisfação.

Esse processo corresponde, na semiótica peirceana, ao conjunto de interpretações de ícones (qualidades) índices (associações) e símbolo (lei) ou os processos de descoberta, encontro e obra.

O estudo do processo criativo é constantemente utilizado por críticos de arte e escritores quando apresentam ou comentam obras de contemporâneos. Mário de Andrade diz a Pedro Nava em uma de suas cartas: ... e já pus reparo depois de publicado que pela impressão produzida está complexo demais. Afinal isso quer dizer que ele (o livro) sou bem eu que sou complicado por demais puxa!. Para Peirce, esse sentido que independe do que atribuem à obra é real e é fictício quando depende do que dizem dela.



Olhemos para o processo de criação agora sob a luz destes conceitos peirceanos que acabamos de apresentar. A lei semiótica básica da interpretação sígnica é exposta a olho nu ao lermos as anotações feitas pelo escritor ao longo do processo: é o mundo sendo observado por aqueles olhos e não por outros – é o homem diante da irremediável mediação.



Salles (1990) descreve em seu trabalho o sinequismo (princípio de continuidade do signo) e o falibilismo (contínuo de erros, incerteza e indeterminação) como elementos propulsores da criação porque o signo possui poder criativo, se reproduz e dá vida a outro signo, a outra idéia. E a criação artística, sendo um momento especial de reprodução de signos, visa interpretar e ser interpretada simultaneamente. Ela afirma que há, ao mesmo tempo, uma cadeia de cognições em que todas as partes têm a mesma importância. Assim, os diários, anotações, mapas, esquemas, listas, desenhos, diagramas e registros mostram idéias isoladas só aparentemente. Todas as anotações, objetos citados, cenas observadas, lembranças e outras cognições têm o mesmo valor, tudo é matéria-prima aguardando manipulação, manuseio, composição, elaboração.



A teoria peirceana vista como teoria da comunicação é descrita por Ransdell (1977): Pensamento e discurso são a mesma coisa exceto aquilo que chamamos de pensamento - um diálogo interior conduzido pela própria mente sem sons emitidos. Segundo Peirce, uma pessoa não é absolutamente individual; todo pensamento é um signo e esses pensamentos – signos são simbólicos como os ícones (figuras, diagramas e imagens); os índices (signos análogos aos sintomas, associações de idéias). É nessa recepção criativa do pensamento que está o significado, o diálogo entre diferentes fases do ego, como afirma Peirce é o locutor interno, o próprio indivíduo. Todos os pensamentos são signos e podem ser: ícones (figuras), índices (sintomas) e símbolos (palavras).





Com base nessa teoria é possível entender o conhecimento como fundamentado em fatos observados classificados em três tipos de raciocínio: abdução, indução e dedução, que, ao ver de Peirce, são as ferramentas desse processo de desenvolvimento do pensamento.

Para uma demonstração, através da semiótica peirceana, é possível fazer a análise de obras literárias para detectar os processos que os autores utilizam para criar suas obras. Elementos como a imagem, o som, as composições visuais, representações verbais e mesclas de linguagens diversas declaradas nos originais ou rascunhos guardados ou doados pela família a museus ou pesquisadores são hoje matéria – prima para estudos das pegadas de um escritor, de seus sentimentos, de seus métodos e condições criadoras. No entanto, isso não quer dizer que tal análise só ocorra através da Semiótica de Peirce. Também a Semiótica greimasiana tem trazido grandes contribuições aos estudos de textos, terminologias e metalinguagens técnico–científicas, produção do conhecimento e ensino do léxico, principalmente quanto à análise de textos de nível superior.

A análise semiótica de A. J. Greimas trabalha com o texto enquanto conjunto significante ou objeto construído e serve desta teoria na busca de uma leitura única, considerando que a significação do texto na visão de Greimas está no próprio texto. Como tal análise explora a construção gradativa do sentido do texto, alcança fases intermediárias mediante os referentes internos do próprio texto, nunca buscando referentes externos. Portanto, essa análise explora o produto pronto e não o processo.

Essa fundamentação metodológica e as experiências relatadas revelam os desafios que os profissionais do ensino da língua, especialmente os de ensino de redação enfrentam, quando se deparam com turmas heterogêneas e com a necessidade de explorar argumentos e estudo diversificado de textos, além de buscar estratégias para saber lidar com a ideologia dos alunos.