PARA ESCREVER UMA CRÔNICA                                                                                          Edevaldo Leal                                                                  (À maneira de Vinicius de Moraes – 19.10.1913 -9.07.1980) 

                                          Uma vez (há quanto tempo, mesmo?) fui pedir conselhos ao poeta e cronista Isnard Lima Filho. Queria saber se havia alguma fórmula, algum delicado  sacrifício, alguma porta mágica que me permitisse encontrar, digamos assim, a chave de ouro da crônica. O poeta me olhou com um olhar que era , ao mesmo tempo, de ironia e compaixão e me disse, alongando minha curiosidade: “ A chave existe, meu caro, mas longos e íngremes são os caminhos que tens que percorrer para encontra-la”. E daí pra frente  foi uma extensa exposição sobre a preparação do caminho.

                                          Para escrever uma crônica, preciso é muita concentração e habituar-se a ler no silêncio das horas. Ler e ler, e ler muito, porque não se escreve uma boa crônica sem sentir de perto o cheiro das palavras e  é preciso também muita seriedade para  não deixar escapar da concentração o murmúrio  das vozes verbais.

                                         Para escrever uma  crônica, é mister sentir o suor da construção verbal escorrendo da fruição estética do texto.

                                         Sem cheiro, sem som e sem suor, a escrita será apenas um mero relatório e, sem leitura habitual e atenta – ensinou-me o poeta –, eu não chegaria sequer à metade do caminho.

                                         Para escrever uma  crônica, não  basta simplesmente escrever. Para escrever uma boa crônica, é preciso injetar doses homeopáticas  de emoção nas palavras e somente  após reescrevê-la várias vezes é que a crônica estará pronta para ser levada à sala de leitura do mundo. Para a crônica sair perfeita, é preciso olhá-la várias vezes , como quem olha, pela primeira vez,  a  mulher amada.

                                         Para escrever uma  crônica, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que é preciso  viver a aventura da vida com  sabedoria e nunca esquecer de que viver e escrever são aventuras arriscadas. Arrisca-se a crônica, por exemplo, a perder o sabor, se o cronista não souber usar o tempero das palavras.

                                          Conta ponto saber que um cronista não é um ficcional. Às vezes, pode ser um híbrido. É quando mistura ficção e realidade, mas estará sempre preso ao real, ainda que parte de sua escrita decorra de sua visão imagética ou de uma experiência onírica. A crônica, porém, está quase sempre presente na ficção, mas aí já é outro papo. O cronista reinventa a realidade, amplia-a aos olhos do leitor. Diferentemente do ficcionista, ao cronista não se permite  a ousadia, para poucos, de reinventar a linguagem.

                                         O cronista é um pescador de assuntos em retalhos do cotidiano. A crônica pode derivar de uma conversa de rua, de uma recordação, de um retrato na parede, de uma noticia de jornal , da repercussão de um  fato, de um perfume de mulher, da dor de uma paixão, da vida ou da morte e, até mesmo, do nada.

                                        Para escrever bem uma crônica, importa seguir o conselho de Graciliano Ramos: ”Deve-se escrever  da mesma maneira  como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a  água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de  feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”

                                         Aquela conversa com  Isnard Lima não me poupou a frustração de saber-me incapaz de um dia vir a ser cronista, tão difícil é a arte da crônica.

                                          Saí da casa do poeta, na Rua Mário Cruz,  devidamente intimado a ler, com urgência, Rubem Braga e Vinícius de Moraes.  Desde esse tempo guardo as palavras de Vinícius sobre o exercício da crônica, reproduzidas de seu livro PARA VIVER UM GRANDE AMOR ( uma coletânea de crônicas e poemas, publicado,  pela primeira vez ,em  1962): ”...A crônica deve injetar um sangue novo em um fato qualquer do cotidiano, trabalhando com um conceito de verossimilhança que liga coerência do texto com a coerência do fato acontecido. A partir do real a crônica usa suas artimanhas para alcançar uma dimensão mais profunda chegando à crítica social.

                                          O familiar e gasto deve ser rompido através do insólito e estranho a fim de que uma nova experiência nos atinja intensamente e se torne nova experiência nossa, verdadeira  informação estética. De modo geral a crônica amplia e enriquece  a visão da realidade. Permite ao leitor a vivência intensa e ao mesmo tempo a contemplação crítica das condições e possibilidades da existência humana.

                                      A crônica é o lugar privilegiado  em que a experiência vivida e a contemplação crítica coincidem num conhecimento singular, cujo critério não é exatamente a verdade e sim a validade de uma interpretação profunda da realidade tornada experiência...”.

              

                                      Metido a escrever desde cedo, dessa conversa com o Isnard para cá já se vão longos anos e as minhas crônicas ainda não passaram de exercícios que me torturam. Quase sempre, ajo como as lavadeiras relapsas. Não consigo observar o conselho de Graciliano Ramos.  esqueço de ensaboar direito a crônica e , quando bem ensaboada, ou a espremo mal e a sujeira permanece, ou, se ensaboada e espremida corretamente, não consigo secá-la bem ao sol da revisão textual. Esta crônica, por exemplo,  por falta de cuidado  permanente, saiu assim, com o final “baixo”, você sente – e esfriou um pouco a atenção do leitor. A bênção, Vinicius.

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