(... estavam há alguns minutos paradas, se olhando... nem sempre era assim que começavam as carícias... neste dia sim, fora uma sensação de que nunca mais haveria de se repetir o que por desejo e vontade viria a acontecer inúmeras vezes... e tantas outras...de modo diferente...ou igual,porque o amor era o mesmo,ainda...sem darem por conta de toda a intensidade. Súbito,estava ali,estanque para um observador,vulcânica entre eles,que pensavam nem existir tanto desejo...pra que seguir?...aquilo era já em si tudo, e teria dito quase tudo sobre aquele amor...os olhos convidavam a mais,muito mais,ou menos, à medida que gestos e toques fossem se entrelaçando...quantos amores vivemos num amor...quantas formas de amar vivemos quando amamos?...quantas?quantos?...quantos amores revivemos quando amamos um e somente um amor?...e quantos diferentes amores precisamos viver para conhecer os diferentes amores?...estavam ali...eu sabia que por uma questão de segundos a cena iria mudar,completamente...e tão completa seria a mais inalcançável forma de amar, que se pudesse repetir...Estavam dispostos a isto,eu pensava. Mas o tempo acusava, sorrateiro,implicante,indecente, com toda lucidez sobre a loucura...ela não chegaria. Estavam ali,era isto o que importava. Mais um dia estavam ali, diante de si...até quando alguém de longe gritasse:vai procurar marido!estavam ainda e de novo diante de si e de todos...os outros que já tinham se ido,passado pelas lembranças fugazes, agora .Um presente total acontecia. Um diante do outro e mais nada nem ninguém. Na absoluta intimidade que se possa pensar em ter com alguém que se ama...pensava que fosse assim, sempre,até certo dia em que os vi. Inglórios,sofridos pela razão,os dois povoados de terror e serenidade...a calma de quem sabe não ser possível livrar-se de miradas passadas,de interlocutores desavisados. Mas estavam ali e por isso acreditei que insistiam ainda uma vez mais no encontro dos corpos... Perdido em meus pensamentos,distraí-me do primeiro sinal: um afago com as mãos, talvez...Quando dei por mim, estavam mais próximos e os olhos baixavam e deslizavam como um bolero entre as curvas de cada um...Uma cabeça tombada, um leve roçar de fios sendo ajeitados pelos delicados e suaves toques das pontas dos dedos...escorria pelo ombro nu a curva da tracejada palma da mão...Mais um instante, imenso para mim que os prendia em minhas retinas...Descansadas retinas. De vez, surgia uma luz ofuscando as pálpebras...E com tudo lá fora rodeando aqueles amantes, continuavam suas carícias, recuos e avanços, avanços e mais avanços. Outros recuos, sem avanços. Novamente, carinhos, sem que eu pudesse ter a chance de traduzi-los, surgiam para minha surpresa. Rude, fora eu ao querer descrevê-las. Voltava minha atenção aos curtos e lascivos beijos mordiscados a cada vai e vem. Quantos inimigos de si tiveram de ocultar para que pudessem encontrar um pouco de silêncio?Quantos? Quereria eu inventar? Colocara-os entre minhas mãos e de repente vira-os fugindo de mim como o ar sai de meus pulmões fatigados. Estavam entre si e não dependiam mais de qualquer escolha minha. O encontro acontecera e minha fraca imaginação, por pretensiosa que era, tinha mais uma vez deixado escapar os movimentos mais simples e diretos daqueles amantes. Recuperei-me. Tomei-os de assalto e trouxe-os para mais perto de mim. Resistiram. A tensão aumentava entre elas. E eu ficava inerte, sem saber como conduzi-los. Elas me conduziram até a copa. Rindo-se, combinavam tomar mais uma taça de vinho ou qualquer bebidinha que lhes desse um gosto, algo como se soasse preciso ganhar tempo para me despistar. Sabiam que eu estava ali entre elas. E por isso dançavam o bolero com os pequenos e aquecidos gestos. Queriam driblar minha curiosidade infame. Queriam tirar-me do lugar de voyeur. Queriam expulsar o estranho. Queriam tanto quanto fosse preciso para que o mais puro do idílio se preservasse. Fui estridente com as palavras e os forcei a ficarem em minha companhia. A mim deveriam render as homenagens do amor. Eu os tinha criado. Elas eram somente os amantes de minha imaginação. Enganaram-me com alguns sussurros, enquanto preparava a cena dos corpos molhados por línguas famintas. Línguas sequiosas por outros sentidos. Mais uma traição. Quando dois amantes querem um encontro, não há escritor que possa planejá-lo inteiro, pleno. O descontrole de meus dedos seguia o descontrole dos ventres unidos, fugidios, entrecortados por aromas variados que eu aspirava junto às palavras. O meu silêncio pausado era o silêncio esperado de quem viria a lê-los.Dirigiram-se à sala. Agacharam-se. Primeiro de joelhos. Um confronto começara. Eu e elas. Eu determinava que fossem para mais perto e cúmplices caíam para os lados, afastando os seios, por minutos intumescidos. Incisivo, cliquei o olhar sobre as pernas estendidas e cruzadas. Mais próximos, cobravam o suor dos braços dobrados sobre si num abraço apartado, contínuo, que se desdobrava em sobreposições para um lado e para outro. A alcova desenhada não combinava com elas. Eram mais tranqüilos em suas escolhas. E eu pensara que teria todos os instantes em minhas forças no contar. Desisti. Aceitei que me levassem até os encantos que guardaram para mim. Eu é que deveria escutá-los, lê-los.Eu é que precisava me desprender dos sintagmas, dos meus olhos, dos meus desejos de verdade e de mentiras. Eu. Sempre um eu a querer comandar os amantes. Aquilo não era uma aula de dança de salão. Aquilo era um ato de sexo entre amantes. E eu com minha fingida candura nos verbos tornava-os mais pornográficos do que qualquer foto de calendário. Escrever reserva estas armadilhas e revelações. Elas estavam se amando faz tempo - só eu não tinha percebido a indisposição das palavras dadas. Tomadas delas e que deveriam a elas retornar. Eram delas ?algo me dizia - mas, davam acusando-me de pretensioso e arrogante. Elas e ninguém mais seria capaz de fazer-me parar e enxergar quanto de mim estava em tudo o que faziam. Até quando quereria desfazer-me delas? Os amantes. Eram amantes como quaisquer amantes são. Por que teriam de ser diferentes?Se já em meus sons eram?Larguei-os com os beijos demorados. Dei um tempo para mim. Fui à cozinha comer alguma coisa. Um sanduíche. Mexi em algumas cartas que lhes escrevera. Passado. Não tinham as emoções de antes. Eram outras naquele dia. Eu não tinha mais tempo para revê-las, todas. Então, pus-me a cortar as frases. Deveriam ser simples. Diretas como só aos verdadeiros amantes é digno fazer. E pronto. Estavam novamente ali, juntos, indóceis, ansiosos, porque assim os queria. A música tinha mudado. No aparelho tocava uma canção pouco expressiva e de batida repetitiva, tal como eram os movimentos reproduzidos entre uma e outra unha que arranhava, sem deixar marcas, as costas de cada um. Na recâmara oculta sob uma tradição de busca, criei o encontro dos cantares que jamais soube ouvir. Estavam elas, meus amantes, apedrejados por termos de iniqüidade vã. O incenso do tempo dedicado a elas havia purificado a corrente que me unia àquelas amantes, os de sempre, estranhos. Mal as conhecia em mim e em outros lidos. Os amantes e eu, a forasteira do amor.)