FIGUEIRA, Regina Maria Cruz. PALAVRÃO: Uma questão de fala. Itaituba, 2012.

 

PALAVRÃO: uma questão de fala.

REGINA M. C. FIGUEIRA

 

RESUMO: O contexto influencia nossa vida de muitas formas. Uma delas é atribuir novos conceitos e sentidos às palavras de nossa língua. Muitos destes conceitos são considerados pejorativos, grosseiros e chulos. Falar ou não palavrão é cultural e mostra que o ser humano tem o poder de transformar tudo ao seu redor, principalmente, a linguagem.

 

PALAVRAS-CHAVE: contexto, palavrão, linguagem, preconceito, mudança linguística.

 

INTRODUÇÃO

 Muitos recusam-se a conviver com pessoas que pronunciam palavras, consideradas grosseiras, de baixo calão. Mas, quem já não se viu falando um palavrão? Há situações em que muitos não conseguem segurar. Seja para externar uma raiva incontida, uma frustração extrema ou uma alegria. Isso mesmo! Palavrão não foi feito apenas para ser usado na hora das indignações, das raivas, dos extremos.  

BRAGA & RIBEIRA (2010) observam que “palavrões” são considerados por muitas pessoas, como obscenidades: palavras que deixam ruborizadas, escandalizadas ou exaltadas as pessoas que os proferem ou a quem são dirigidos. Obsceno, no dicionário Aurélio (1988, p. 987), significa aquilo que “1. Fere o pudor; impuro; desonesto. 2. Diz-se de quem profere ou escreve obscenidades”; quer dizer, fora de cena, em frente à cena (ob= em frente a; sceno= cena). Proferir uma obscenidade é apresentar em público algo não recomendável. Em situações sociais (ou seja, na frente dos outros, em cena) nem tudo pode ser dito.

Diariamente, ouve-se crianças, jovens e adultos pronunciarem palavras como “caralho”, “porra”, “puta que pariu”, “puta merda”, “filho da puta”, “filho duma égua”, entre outras expressões, que, à primeira vista são chocantes, mas que são apenas interjeições usuais de uma modalidade de linguagem que é ignorada por muitos: a fala

Mas se é de um português inculto, “feio”, por que dar importância a tais expressões? Não seria melhor extirpar tais palavras da língua portuguesa? A questão é que, se isto for feito, serão ignorados os conhecimentos e descobertas da linguística, da sociolinguística e cometer-se-á um dos piores preconceitos: o linguístico.

 

  1. 1.    “Palavras apenas. Palavras pequenas”. Palavrões!

Para muitas pessoas -  por ideologia, dogmas, tradição ou  etiqueta - falar palavrão é atitude de pessoas baixas, vis, sem nível cultural, sem conhecimento algum. Muitos estudos já foram feitos na área e identificou-se que, como postula COLLET (2010),    

 

(...) Falar palavrões é uma forma de verbalizar palavras ofensivas de poder emocional (ex. fuck, shit) ou expressões emocionalmente prejudiciais (ex. kiss my ass, piss off, up yours) que são entendidas como insultos. Palavrões não são sempre usados como insultos, por exemplo: “I didn’t know where the fuck I was going.” Dizer palavrões ajuda nas necessidades emocionais do falante e afeta emocionalmente aqueles que os escutam. Dizer palavrões permite ao falante expressar emoções fortes e/ou produz um impacto emocional na pessoa que os escuta. O impacto pode ser positivo, como numa piada ou numa sedução sexual, ou pode ser negativo, como em xingamentos ou assédio sexual (COLLET apud JAY, 1999, p. 10)

 

Os palavrões podem funcionar como interjeições. Tais palavras interjectivas servem para expressar sentimentos de revolta, raiva, euforia, alegria, tristeza, admiração, dor. Enfim, sensações próprias expressas pelos seres humanos. Como exemplos temos o “puxa”, “ai!”, “ui”, “credo”, entre outros, que usados em contextos diferentes, podem oscilar sua significação.

E, para a surpresa de todos, com os palavrões isto não é diferente. Imagine num jogo de futebol, assistido em um estádio ou em frente à TV, por  torcedores fanáticos. De repente, o atacante fica frente a frente com o goleiro e erra o gol. A maioria dos torcedores soltará em alto e bom tom expressões como “Porra!”, “Bicho burro!”, “Errou sozinho o gol!”. A expressão em destaque foi utilizada em tom de raiva, indignação.

Neste mesmo contexto, se o atacante faz o gol, para alívio da torcida, e alguém solta um “Porra! Foi gol!”. Agora, a expressão “Porra!” foi usada com sentido de alegria, exaltação.

Nesta mesma perspectiva, temos duas palavras usuais pelos moradores de Itaituba, município do Pará: “puta” e “rapariga”. Se ambas forem utilizadas em contextos diferentes, seus sentidos também variam. A palavra “puta”, ao ser proferida em uma briga, entre duas pessoas e uma delas for do sexo feminino, pode tem caráter pejorativo. Como em “Cala a boca, sua puta!”, a palavra sai da perspectiva da interjeição, tendo valor de substantivo, com a acepção de vadia, vagabunda, “mulher da vida”, prostituta.

Mas, se de repente duas pessoas estão conversando, e ao se encontrarem com um amigo que é muito bom em alguma área, por exemplo, “informática” ou “futebol”, um deles pode dizer, num ato de fala informal que “Tá vendo este cara aqui? É um puta do cara em informática!”. A tal palavra já não traz a carga pejorativa e nem o conceito anterior de substantivo, porque ela age como adjetivo, dando o sentido de “bom”, “eficiente”, “competente”.

A palavra rapariga, que até hoje em Língua Portuguesa falada em Portugal é usada no sentido de moça, donzela; também configura novos sentidos. Na Região Norte ou Nordeste, se você chamar uma mulher de rapariga causa uma revolução. É capaz de você parar na delegacia, ou de ser alvo de um tiro, uma facada ou, no mínimo, levar uma surra.

 

A palavra “fodido”, do verbo “foder” (significando coito) carrega acepções diversas quando usada em contextos diferentes. Imagine numa mesa de bar, onde os amigos estão conversando, bebendo, e aparece uma pessoa que alguém do grupo ainda não conhece, pode ocorrer o seguinte ato de fala: “A:  - Olha Zé, este é meu amigo Antônio! Ele é fodido em Matemática. Vai dar aulas pra nós, no concurso da PM.” Neste mesmo contexto, alguém percebe que a mulher do Zé, se aproxima, com cara de poucos amigos, e fala: “B: Se cuida, Zé! Agora tu tá fodido!”

 Nessas duas situações hipotéticas surgiu a palavra “fodido” e, em nem um momento, ela carregou o sentido de ato sexual. Em A e B temos um adjetivo. Só que em A, “fodido” tem acepção de “bom”, “competente” e em “B” tem sentido, na gíria popular de “lascado”, “ferrado”, “com problemas sérios com a mulher”

Outro caso interessante é o da expressão “Puta merda!”. No Pará, usa-se muito para externar uma frustração, um desagrado, algo que chateia o emissor. Se numa dada circunstância o interlocutor está na frente do computador escrevendo algo importante e falta energia,  ele pode externar a sua revolta e indignação com um “Puta merda! Não salvei meu trabalho!”. E mais uma vez vemos o poder interjectivo de um palavrão.

[...] os palavrões são únicos porque eles fornecem uma intensidade para a fala que as palavras comuns não conseguem alcançar. Palavrões têm tanto poder que eles se tornam palavras que, uma vez aprendidas, devem ser reprimidas nos contextos formais. ( COLLET apud JAY, 1999:11)

 

Pode-se concluir que o palavrão só não é aceitável a em nível social, porque alguém rotulou tais expressões e termos como indignos de serem pronunciados e propagados na sociedade. Como se vê, os palavrões detêm uma carga semântica muito elevada, reconhecida intuitivamente, pelos interlocutores num dado ato de fala.

Assim como os palavrões detêm uma forte carga elevada, temos palavras comuns em nossa língua, que adquiriram  caráter “vulgar”, ao serem pronunciadas em alguns contextos. Palavras como “pica” (do verbo picar) nomeia o órgão genital masculino. O contexto atribuiu a este verbo um sentido pornográfico, grosseiro e chulo. 

Isso ocorre com palavras como “Cobra” e “Aranha”, quando o saudoso Raul Seixas escreveu na canção “Rock das Aranhas”, “A minha cobra vai comer a sua aranha!”. Ao compor esta canção, poderia nem ter tido a intenção, mas as pessoas deram o sentido “sexual” aos termos. Também pode-se citar a música “Barata”, do extinto grupo musical SPC (Só Pra Contrariar), de muito sucesso na década de 90.  A parte da música “Toda vez que chego em casa, a barata da vizinha tá na minha cama...” pode ser cantada sem nenhuma intenção para algumas pessoas, mas ganhou o sentido pejorativo já que à palavra “barata” também refere-se ao “órgão sexual feminino”. Mais uma vez percebe-se o poder semântico que as palavras adquirem por causa do contexto.

Na mesma concepção figuram palavras como: periquita, perereca, pirulito, pinto, pistola, pau, passarinho, pomba, peru, mandioca, saco, macaxeira, vara, minhoca, florzinha, rosa, borboleta, tracajá, capô de fusca, alavanca, bolacha, entre outras.

“Vaca”, “Galinha”, “Piranha” e “Cachorra” foram outras palavras que adquiriram o caráter de palavrão. Substantivos femininos simples foram transformados em adjetivos que, quando se referem às mulheres, têm caráter pejorativo. E tornaram-se palavrões!

Numa pesquisa em duas escolas públicas, de ensino fundamental, de Itaituba, no Estado do Pará, constatou-se que a maioria dos alunos fala (e muito!), palavrões. Muitos são punidos por professores ao usarem tais expressões. Das mais corriqueiras e usuais, estão as palavras “caralho”, “porra”, “filho da puta”, “filho duma égua”, “filho de uma rapariga” e “puta merda”. São alunos de todas as idades, (dos 06 aos 18 anos), oriundos de todas as classes sociais. Fazem uso de tais expressões sem nenhum pudor, usando o nível de linguagem mais latente e presente em sua vida.

Em Capanema, também no Pará, em 2007, uma professora de ensino fundamental, nas aulas de Língua Portuguesa, ao tentar trabalhar com os alunos o significado de palavrões que eles utilizavam no cotidiano, fez uma atividade extraclasse, na qual pedia que os mesmos pesquisassem os significados de alguns palavrões. Passou a atividade no quadro e pediu que os mesmos a copiassem. Foi surpreendida com um chamado da diretora da escola, para se reunir com os pais de seus alunos, que, por não entenderem a intenção da docente, processaram-na, como se a mesma tivesse ensinando os seus filhos a escrever e falar tais expressões.

O Professor Eloésio Paulo, em seu artigo “Jesus também falava palavrão”, destaca que o palavrão dá uma dimensão exata e inteligível sobre o que se fala:

“Uma crônica de Luís Fernando Veríssimo lembra como o palavrão é insubstituível em alguns casos. Por exemplo, como explicar para uma pessoa simples o tamanho do universo, medido em bilhões de anos-luz? Será que mesmo a maioria de nossos estudantes universitários é capaz de conceber tais dimensões? Mas quando se diz que o universo é “grande pra caralho”, o que se perde em precisão se ganha em concretude.” (2010)

 

As crônicas de Luís Fernando Veríssimo são bons exemplos de gêneros textuais que utilizam expressões corriqueiras do brasileiro. Há uma crônica na internet, intitulada “Um dia de Merda”, cuja autoria foi atribuída a este escritor de renome. Nela, ele usa palavras como “cagado”, “mijado”, “peido”, “merda”, “puto”, “partes rabiais”, “cocô”, “fiofó” são utilizadas sem  qualquer preconceito, porque elas dão o caráter humorístico ao texto, estampando a verdadeira reação de uma pessoa que, faz necessidades fisiológicas nas calças, em pleno ônibus. Veja parte do trecho abaixo:

“Foi merda para tudo que é lado, borrando, esquentando e melando a bunda, cueca, barra da camisa, pernas, panturrilha, calças, meias e pés . E mais uma cólica anunciando mais merda, agora líquida, das que queimam o fiofó do freguês ao sair rumo a liberdade . E depois um peido tipo bufa, que eu nem tentei segurar, afinal de contas o que era um peidinho para quem já estava todo cagado . Já o peido seguinte, foi do tipo que pesa . E me caguei pela quarta vez.” (Extraído da internet, disponível na URL http://cronicasdeluisfernandoverissimo.blogspot.com.br/ 04/01/2012)

 

Maior (1980), no  Dicionário do palavrão e termos afins, postula que as pessoas usam os palavrões, mesmo que esporadicamente, pois faz parte de suas vidas e não assumir é hipocrisia pura!

 

Uns são contra o palavrão, admitindo o seu uso por outros somente em determinadas ocasiões. Cacilda Becker defende-o no teatro: ‘Quando o palavrão vem dentro de um espetáculo de cultura e atende as necessidades indiscutíveis de esclarecimento do público – em todo o Brasil normalmente culto – faz parte da obra de arte e é absolutamente justificado’. Condená-lo é uma atitude se não hipócrita, ao menos ignorante. (p.7)

 

Percebe-se que além das acepções sexuais, pejorativas, deve-se olhar o uso do palavrão como um fator linguístico próprio da fala informal, espontânea, sem dogmas, estereótipos e padrões estipulados. Uma palavra dita em certo contexto social pode se transformar, a critério dos usuários, numa arma perigosa ou numa brincadeira.

Hoje é comum ver na TV, em programas de auditório ou reality shows, pessoas falando palavrão corriqueiramente. De forma entusiasta ou não, as palavras saem naturalmente. Isto porque o tom pejorativo e condenável é dado pelos rigorosos padrões sociais. Se alguém fala uma palavra grosseira, esta é substituída por um bip, censurando. Se o programa é legendado, o asterisco substitui tal grosseria!

 É normal o brasileiro discriminar o cinema nacional por causa dos palavrões. Diz que tais filmes são grotescos, usam a linguagem chula, vulgar do Brasil e retratam o país da pior maneira. Mas quem disse que o país utiliza um padrão culto de linguagem cotidianamente? E quem  garante que um padre ou um pastor, um literato ou linguista, em sua intimidade, ao levarem uma topada, ou estarem em uma situação de extrema euforia não falam um palavrão ?

Num mundo em que as redes sociais disseminam uma linguagem cada vez mais informal, é difícil conceber preconceito com os palavrões. É preconceito linguístico discriminar alguém por optar usar o nível informal da linguagem. E ter vergonha do baixo nível do nosso português é ter vergonha da nossa própria origem.

Não se quer através deste artigo fazer apologia ao uso de termos como os palavrões no cotidiano. Mas as pessoas podem observar mais ao redor e perceber que tais expressões são muito peculiares, muito próprias de nossa cultura. Assim torna-se demagogia ou hipocrisia criticar alguém por usá-las. Dependendo do estado de espírito, do contexto,  estas palavras tornam-se “simpáticas”, “agradáveis” e até mesmo “engraçadas”.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

COLLET, Thaís. A Tradução De Palavrões Constantes Das Legendas Do Filme Americano Gran Torino. Anais Do SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.

JAY, Timothy. Why We Curse: A Neuro-Psyco-Social Theory Of Speech. Philadelphia: John Benjamins, 1999.

MAIOR, Mário Souto. Dicionário Do Palavrão E Termos Afins. 2 Ed. Recife: Guararapes, 1980.

PAULO, Eloésio. Jesus também falava palavrão. REVISTA ESPAÇO ACADÊMICO, 06/05/2010. Disponível na URL http://espacoacademico.wordpress.com/2010/06/05/jesus-falava-palavrao/ acessado em 21/01/2011