RESUMO:

Este artigo apresenta algumas reflexões sobre o Programa Pacto pela Educação, desenvolvido em classes multisseriadas, no município de Valença/BA. O programa que visa “alfabetizar todas as crianças até oito anos de idade” através da Proposta Didática para Alfabetizar Letrando, materializa-se por meio da formação continuada de professores em serviço. Existe um modelo de formação que está sendo trabalhado com os formadores municipais. Destaca-se, contudo, a necessidade de mudar o itinerário da formação presencial, no município de Valença, com base no que se tem observado no acompanhamento pedagógico e nos depoimentos dos professores acerca das dificuldades que estão encontrando na efetivação da Proposta Didática para Alfabetizar Letrando. Defende, nesse interim, a “transgressão do paradigma seriado urbano”, propondo uma organização do ensino em classes multisseriadas na perspectiva da integração. O processo de formação do professor de classes multisseriadas visando a materialização do Programa se redimensiona por meio de contribuições significativas de alguns trabalhos de Nóvoa, Hage, Macedo, Boufleuer, Benincá, Arroyo, Dickel, Souza e Capra.

PALAVRAS-CHAVE: Pacto pela Educação. Classes Multisseriadas. Formação de Professores.

PRIMEIRAS PALAVRAS:

            No desenrolar da Formação de professores alfabetizadores que estão participando do Programa Pacto pela Educação em classes multisseriadas, observamos que o modelo de formação adotado não estava condizente com a realidade desse contexto educacional, o que nos levou a definir novos rumos, a desenhar outro itinerário.

            O programa concebido como ação do programa Todos pela Escola do governo do Estado da Bahia, em parceria com os municípios, visa “alfabetizar todas as crianças até oito anos de idade”, através da Proposta Didática para Alfabetizar Letrando.

            Não iremos fazer aqui uma discussão centrada nos conceitos de alfabetização e letramento, mas trazer algumas reflexões sobre a efetivação da Proposta Didática para Alfabetizar Letrando no contexto das classes multisseriadas na Educação do campo, colocando em destaque a Formação de Professores.

            Iniciamos trazendo algumas informações sobre o Pacto pela Educação, programa do governo do Estado da Bahia, com parceria com municípios. Em seguida discorremos sobre a proposta do pacto no contexto multissérie, e por fim tratamos da forma como no município de Valença a formação dos professores alfabetizadores das classes multisseriadas está sendo pensada/direcionada.

2 PACTO PELA EDUCAÇÃO

            O Pacto pela Educação trata-se de uma ação do Programa Todos pela Escola. Uma ação do governo estadual da Bahia, cujo objetivo é “alfabetizar todas as crianças até oito anos de idade”; para isso conta com a parceria com os municípios.

            O Pacto se materializa por meio da “Proposta Didática para Alfabetizar Letrando”, de autoria da Professora Amália Simonetti.  Essa proposta já foi concretizada no Ceará, através do Programa Alfabetização na Idade Certa (PAIC)[1] .

                       

2.1 Estrutura e Dinâmica do Pacto com os Municípios

            O Pacto possui uma estrutura que visa sustentar a efetivação da Proposta Didática para Alfabetizar Letrando, contando com uma consultoria, a coordenação de formação, formadores estaduais, formadores municipais e professores alfabetizadores.

            Os formadores estaduais fazem encontros mensais com os formadores municipais que por sua vez realizam a formação com os professores alfabetizadores. Além da formação presencial os formadores também são responsáveis pelo acompanhamento pedagógico com o intento de “favorecer o trabalho de formação de professores alfabetizadores, a partir da problematização da ação, com estratégias de escuta, observação, reflexão, avaliação e mediação”. Deve acompanhar o professor alfabetizador em sala de aula por meio de “acompanhamento presencial e à distância - e-mail, telefone e Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA)”. Os formadores ainda produzem relatórios e preenchem os instrumentos solicitados pela secretaria do estado.

            Aos professores alfabetizadores cabe, com base no planejamento elaborado nos encontros presenciais, desenvolver a rotina didática em sala de aula. Nos encontros da formação devem informar o que foi possível e o que por alguma razão não pode ser realizado.

2.2 Proposta Didática para Alfabetizar Letrando

            Como já foi mencionado, o programa Pacto pela Educação se materializa por meio da Proposta Didática para Alfabetizar Letrando.

Apresentamos aqui uma proposta didática para alfabetizar na perspectiva do letramento. Optamos por utilizar os dois termos, alfabetizar e letrar, para não deixar dúvidas sobre nosso propósito didático. No entanto, não temos dúvida de que devemos conceber a alfabetização e o letramento como dois processos de ensino e aprendizagem diferentes, porém simultâneos e inseparáveis. (MANUAL DO PROFESSOR, p.11)

 

            A proposta está dividida em quatro etapas, uma etapa por bimestre[2], e cada etapa é dividida em dois meses. Cada etapa tem objetivos didáticos e conteúdos distintos. O manual do professor apresenta as orientações para realização das atividades e uso do material didático.

            O material didático é constituído por: Livro de Leitura Parece mas... não é..., Caderno de Atividades, Conjunto de Fichas, Conjunto de Cartelas.

  • Livro de leitura Parece... mas não é: os textos em diferentes gêneros expõem  como temática “os animais, em especial os animais selvagens, em que o lobo está em destaque”.
  • Caderno de atividades: contém as atividades de aquisição da escrita, organizadas didaticamente em três ícones: lendo e compreendendo, aquisição da escrita e escrevendo do seu jeito. As atividades do primeiro ícone têm “como objetivo principal a leitura com compreensão”; as atividades do segundo são estruturantes[3] tendo como objetivo levar o aluno a “compreender o que e como a escrita representa”; em relação ao terceiro ícone “as atividades têm por objetivo a escrita espontânea do aluno para que o professor possa compreender suas hipóteses de escrita, avaliar e intervir de modo didático para que o aluno avance na apropriação da escrita”.
  • Cartelas e fichas: que auxiliam o desenvolvimento dos tempos didáticos.
  • Cartazes: para exposição na sala de acordo com as etapas estudadas.

           

            Na primeira etapa é realizado um trabalho com o nome (primeiro mês: nome dos alunos, nomes de gente; segundo mês: nome de animais); na segunda etapa: brincadeiras de roda, parlendas e brincadeiras populares; na terceira: lendas, contos e na quarta etapa: fábulas e textos informativos, quadrinhos e carta.

            A proposta para Alfabetizar Letrando sugere uma Rotina Didática Semanal organizada em quatro tempos. O primeiro se refere ao tempo de alfabetizar; o segundo contempla matemática, ciências sociais e ciências naturais; o terceiro: jogos matemáticos, experiência de Ciências e Artes, e o quarto tempo contempla: atendimento individual, tempo lúdico e a psicomotricidade. Entretanto, a proposta didática para alfabetizar letrando se ocupa de tratar do tempo de alfabetizar.

             A rotina didática referente ao Tempo de Alfabetizar está organizada em tem três momentos: Tempo para gostar de ler(15minutos), Aquisição de leitura(45minutos) e Aquisição da escrita(30minutos). O Tempo para gostar de ler trata-se de um tempo para o aluno ler o que quiser, é o momento de ler por prazer, aprender a gostar de ler. Espera-se que nesses 15 minutos inicias, os alunos tenham disponível na sala: livros, revistinhas, jornais, ou qualquer portador de texto significativo para as crianças. O tempo “Aquisição de leitura” compreende práticas de leitura e oralidade, por meio de Atividades de leitura e da Compreensão do que lê. E o tempo Aquisição da escrita tem como objetivo didático: A sistematização da escrita(ler/escrever = agregar letra/som; ler = compreender-refletir-criticar....).

             Fizemos uma análise da Proposta para Alfabetizar letrando pensando no contexto da Educação do Campo e consideramos que se trata de uma proposta adequada ao trabalho com as crianças no processo de alfabetização nesse contexto, entretanto, quando tratamos da especificidade da classe multisseriada concluímos que seria necessário uma organização didática para sua materialização nesse contexto, o das classes multisseriadas.

            Essa conclusão se deu mediante exercício da formação dos professores alfabetizadores cuja docência se dá em classes multisseriadas, com isso temos buscado criar possibilidades para que seja possível o trabalho com a “proposta didática para alfabetizar letrando”.

           

3 PACTO PELA EDUCAÇÃO NAS CLASSES MULTISSERIADAS NO MUNICÍPIO DE VALENÇA/BA.

            Nas últimas décadas assistimos a um movimento em prol da Educação do Campo, tendo como protagonista principal os movimentos sociais. Como resultado desse movimento temos algumas conquistas, a exemplo das “Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo”, da criação do Pronacampo[4], da criação de linhas de pesquisa versando sobre a Educação do campo nos programas de Pós Graduação.

            Essas conquistas ainda não produziram efeitos significativos em muitas regiões, o que pode ser observado na região do Baixo Sul[5]. Muitos professores sequer conhecem as Diretrizes Operacionais, muito menos participam de formações que se inclinam a tratar da Educação do Campo. Existem, contudo, ações pontuais sendo desenvolvidas: a inclusão do componente “educação do campo” no currículo do curso de Pedagogia, projetos de extensão com enfoque na Educação do campo. Cabe ressaltar também a adesão do Programa Escola Ativa. No entanto, trata-se de um problema a escassez de cursos de formação inicial/continuada que tratem das especificidades da Educação do campo na região do Baixo Sul. Nos municípios do baixo Sul existem muitas escolas na zona rural, e muitas delas são unidocentes, possuindo apenas classes multisseriadas.

            Sabemos que

apesar de sua importância, as classes multisseriadas parecem relegadas a um patamar inferior (um ensino com pouca importância ou reflexos na formação dos estudantes) ou quase inexistente nas discussões sobre a prática pedagógica, na formação dos docentes que atuam neste tipo de ensino ou das políticas públicas, o que pode ser comprovado pela escassez de literatura sobre o assunto, pelas estatísticas que compõem o censo escolar oficial.

            Inseridas quase sempre num contexto de precarização, as classes multisseriadas são vistas como “anomalia”, como algo que deve ser eliminado. Nosso entendimento reflete a necessidade de uma proposta pedagógica que “tenha uma consistente base teórica para sustentar o trabalho pedagógico nas escolas do campo”; o que a nosso ver deve partir de um conhecimento aprofundado da multisseriação em seu contexto histórico-cultural-econômico-pedagógico, e que reflita a participação dos docentes, discentes, comunidade.

Sempre ouvimos que, nas organizações, as pessoas resistem à mudança. Na realidade, porém, não é à mudança que elas resistem; resistem, isto sim, a uma mudança que lhes é imposta. Na medida em que estão vivos, os indivíduos e as comunidades são ao mesmo tempo estáveis e sujeitos à mudança e ao desenvolvimento; mas seus processos naturais de mudança são muito diferentes das mudanças organizativas projetadas por especialistas em “reengenharia” e determinadas pelo chefe supremo. (CAPRA, 2005, p. 111)

             

            Ao refletir acerca dessas questões entendemos a necessidade de mudarmos, por meio da tomada de consciência, o destino da multisseriação.  Compreendemos que a contemporaneidade experiencia novas lógicas, o que nos leva a acreditar que dada a necessidade de agregar numa única sala alunos com níveis de aprendizagem, séries/anos distintos devido, principalmente, à questão da baixa densidade demográfica, no contexto atual é possível pensar numa nova organização pedagógica da multisseriação.

            Acreditamos, portanto, que a Multisseriação (penso que por causa do ensino de 9 anos esta nomenclatura mude) necessita se afirmar como projeto educacional com filosofia e pedagogia próprias, transpassando a lógica da seriação, provocando assim a “transgressão do ‘paradigma seriado urbano’” nas escolas do campo. A

Transgressão do “Paradigma seriado urbano” de ensino se materializa quando, no cotidiano da sala de aula, se procura valorizar a intermulticulturalidade configuradora das identidades/subjetividades e dos modos de vida próprios das populações do campo, ou seja, quando se reconhece a pluralidade de sujeitos e a configuração territorial que se constitui a partir da diversidade cultural que caracteriza esses territórios. (HAGE, 2010, pp. 407-408)

            A escola multisseriada é uma realidade na educação do/no campo que não pode ser ignorada, devido a sua relevância para diversas localidades que tem nesta, a única possibilidade de ter acesso a Educação.  Na zona rural do município de Valença essas escolas funcionam com duas(1º e 2º), três(1º, 2º e 3º), cinco (1º,2º, 3º, 4º e 5º ) séries/anos, sendo que em muitas escolas as classes multisseriadas são formadas incluindo nessas turmas a Educação Infantil(crianças com 4 e 5 anos de idade), todas num mesmo espaço, ou seja, contrariando assim o que reza o art. 3, §2 da Resolução CNE/CEB, no 2, de 28 de Abril de 2008: “Em nenhuma hipótese serão agrupadas em uma mesma turma crianças de Educação Infantil com crianças do Ensino Fundamental”. Além de classes multisseriadas temos, portanto, a chamada turma multietapa[6].

            Cabe ainda ressaltar que as escolas do/no campo de Valença somam 112 escolas[7], segundo dados apresentados pela Secretaria Municipal de Educação, do total de 148 escolas, ou seja, o maior número das escolas no Município de Valença está na zona rural e são em sua grande maioria “escolas multisseriadas”.

            A Secretaria de Educação do Município de Valença tem buscado ampliar as ações para o desenvolvimento da Educação do Campo. Em 2011 firmou parceria com um projeto de extensão na UNEB – Departamento de Educação Campus XV, garantindo, em média, a 40 profissionais da Educação que atuam na Educação Infantil no Campo um curso de formação de 60 horas. O Programa Escola Ativa tem garantido desde 2009 um espaço de formação docente para uma parcela de professores que atuam em classes multisseriadas. Agora em 2012 ficou definido que uma das formadoras municipais do PACTO ficaria com um grupo de professores das escolas do campo.

            Acreditamos que seria relevante inserir as escolas do campo com classes multisseriadas, pois consideramos que os alunos do campo tinham o direito de participar dessa Ação e que seria bom para os professores do campo participar de uma formação continuada que além dos encontros presenciais garantiria um acompanhamento pedagógico. Como o projeto tem como objetivo “alfabetizar todas as crianças até oito anos de idade” logo consideramos que estavam incluídas também todas as crianças do campo com essa faixa etária.

Alfabetizar todos os alunos do 1º ano não pode se configurar como uma “proposta milagreira”, precisamos compreender que algumas crianças estão indo para a escola aos 6 anos[8],
num contexto da unidocência que contracena com um contexto para além da “multissérie”, pois precisa também saber ser professor da Educação Infantil e encontrar tempo para sê-lo, em salas que recebem crianças com 4, 5, 6, 7,.... 13(ou até mais)anos. Mas a junção Educação infantil + anos iniciais do Ensino Fundamental não se trata do único obstáculo; a falta de material, as condições de transporte e estrada, a própria estrutura física da escola, como ressalta alguns professores, interferem no processo de alfabetização das crianças no contexto do campo no município de Valença. (SOUSA, p.9, 2012)

            Existem crianças que estão no 4º ou 5º ano, mas não estão alfabetizadas, apesar de já ter compreendido o “segredo” do sistema alfabético. A Proposta Didática para Alfabetizar Letrando possibilita uma compreensão mais ampla sobre a alfabetização, fazendo com que o professor aprenda na prática a entender as hipóteses da escrita anterior à escrita alfabética como caminhos e não como produções descartáveis, entendendo que “há lógica no erro”(Piaget). Outro ponto de relevância é a ênfase que se coloca na necessidade da “compreensão do sistema escrito em/no uso das práticas sociais, culturais de leitura, oralidade e escrita e dos procedimentos nelas envolvidos: os procedimentos do falante, do ouvinte, do leitor e do escritor.”

            Como vimos no tópico anterior, a Proposta para Alfabetizar Letrando tem uma metodologia própria que se concretiza por meio da rotina didática, demandando diariamente cerca de uma hora e meia, ou mais, como afirmam alguns professores.

            Nos encontros da formação presencial os professores alfabetizadores têm apresentado as dificuldades e angústias acerca da execução da proposta nas classes multisseriadas. Essas angústias têm sido levadas para a formação presencial com os formadores estaduais, entretanto não há espaço para a discussão sobre essas dificuldades, havendo apenas a informação de que alguns municípios também estão trabalhando com a proposta em classes multisseriadas, já que a maioria, no caso dos grupos referentes a direc IV e direc V, só está trabalhando com  turmas formadas exclusivamente por alunos de 1º ano ou de 2º ano.

            Apesar de estarmos sempre tentando construir a discussão em torno do Pacto em  classes multisseriadas na formação presencial com o formador estadual, infelizmente, percebemos que ainda não há ressonância, que não há espaço. Isso preocupa e provoca algumas indagações: como é possível uma proposta de formação de professores alfabetizadores ignorar a existência das classes multisseriadas? Por que estamos resistindo a trabalhar com os professores alfabetizadores que trabalham em classes multisseriadas? Como a proposta didática para alfabetizar letrando pode ser desenvolvida em classes multisseriadas? Essa última indagação ainda não tem uma resposta concisa, mas alguns indícios de possibilidades.

            Alguns pensam que não há dilema pois o professor, como quase sempre se faz, deve passar atividades para as outras “séries”(anos) enquanto se dedica ao desenrolar da rotina didática para os alunos de 1º ano e/ou 2º ano. A questão é que essa velha prática deve ser revista, superada, pois como afirma Hage(2005),

as escolas  multisseriadas  têm  constituído  sua  identidade referenciada na “precarização do modelo urbano seriado de ensino” e para que essas escolas ofereçam um processo educativo de qualidade se faz necessário a transgressão desse padrão de organização do ensino, que tem se constituído enquanto empecilho em face da rigidez com que trata o tempo escolar, impondo a fragmentação em séries anuais e submetendo os estudantes a um processo contínuo de provas e testes, como requisito para que sejam aprovados e possam progredir no interior do sistema educacional.

             

            Temos nos encontros presenciais, refletido sobre a necessidade de encontrar melhores e adequadas formas de desenvolver o pacto em classes multisseriadas. As visitas, portanto, tem fornecido elementos desencadeadores de possibilidades. Ali no mesmo espaço alunos e professores vão se mostrando e apontando caminhos...

4 PROPOSTA DIDÁTICA PARA ALFABETIZAR LETRANDO EM CLASSES MULTISSERIADAS: REDESENHANDO A FORMAÇÃO PRESENCIAL, NO MUNICÍPIO DE VALENÇA

            “Não há ensino de qualidade, nem reforma educativa, nem inovação pedagógica, sem uma adequada formação de professores” (Antonio Nóvoa). Mas o que seria uma adequada formação de professores se tratando da educação do campo e em especial das classes multisseriadas?

            Iniciamos a formação do Pacto com uma turma de professores com regência nas escolas do campo, com professores que trabalham com turmas multisseriadas e\ou multietapa.  São 30 professores alfabetizadores. Diante do que vem sido dito nos encontros da formação presencial percebemos a urgência em rever a dinâmica da formação, já que buscamos seguir o modelo de formação que temos com os formadores estaduais.

            A partir do acompanhamento pedagógico ficou mais intensa a convicção de que a nossa formação deveria seguir novas diretrizes, assumindo como finalidade o desenvolvimento da autonomia docente. E para isso encontramos suporte epistemológico na teoria da Pedagogia da Ação Comunicativa.

Uma pedagogia que se inspira no paradigma da comunicação se apresenta como práxis emancipatória, humanamente libertadora, pois implica o reconhecimento de cada sujeito como um “outro”, distinto e livre, possuidor de seu próprio horizonte de sentido. Na comunicação solidária o outro aparece em sua dignidade própria, como alguém que não pode ser reduzido a aspecto ou momento de um sistema qualquer (BOUFLEUER, 1991, p.110).

           

            Ao começar havia a consciência de que não incorreríamos no erro de fazer do Pacto um pacote educacional, mas ainda não sabíamos como evitar isso. Agora, porém, estamos certos de que o caminho é criar na formação “contextos de cooperação e de confiança em que se produzem acordos consentidos, democráticos e, possivelmente, mais eficazes”.(IDEM, p.98)

            Existe uma proposta que precisa ser conhecida, debatida, e que está sendo levada para as salas de aula. A proposta em si não muda o que deve ser mudado, é exatamente o entendimento dos professores sobre essa proposta, sobre suas possíveis contribuições que dirão do sucesso do Pacto. E esse sucesso só será observado por meio do sucesso da criança. Ou seja, estamos diante de um contexto que demanda a produção de acordos intersubjetivamente validados.

            Um dos grandes desafios da docência em classes multisseriadas é, talvez, a abertura para uma práxis pedagógica multirreferencial, para uma prática que valorize o cotidiano desses(as) alunos(as) que vivem no campo.

A valorização do cotidiano possui uma certa sabedoria que se consubstancia na crença de que, para que uma mudança seja profunda, é necessário partir da intimidade das coisas; para entrar na intimidade das coisas, é preciso partir delas, conviver com elas; então podemos distinguir as que não interessam, e, a partir de dentro, montar o caminho da transformação mais relevante e pertinente, dentro da radicalidade que não desreferencializa, não arrasa. Estamos, é bom frisar, empanturrados de indigestas verborreias teóricas e de propostas milagreiras que ao longo da história do conhecimento e da educação fizeram apenas legitimar a voz da racionalidade descontextualizada, escamoteando a construção de consciências conectadas e/ou relacionais nestes campos da atividade humana (MACEDO, 2000, pp. 63-64)

            Essa “intimidade” esta sendo experienciada por meio do “acompanhamento pedagógico”, ao ir às escolas conviver por algum tempo com a realidade dessas classes multisseriadas.

            Numa das visitas realizadas para o devido acompanhamento pedagógico foi possível notar que o professor ainda está preso a organização seriada do ensino e tenta reproduzi-la nas classes multisseriadas. Para chegar ao Momento Pacto, primeiro a professora passou algumas situações-problema para os alunos do 5º ano, uma atividade para os do 4º, outra para os do 3º ano e também uma atividade para as de Educação infantil. Ficamos ali observando o trabalho árduo de tentar manter os alunos ocupados para que fosse possível dar atenção ao grupo formado pelos alunos de 1º e 2º anos.

            A professora iniciou a rotina, mas estava sempre chamando a atenção de alunos dos outros grupos. O que mais atraiu a nossa atenção foi a intromissão de alguns alunos dos outros grupos, dando resposta às perguntas que a professora fazia.

Foi interessante observar outras crianças (dos outros grupos) participando, apesar de não terem sido convidadas. Bem, será que esta atividade não poderia ser trabalhada com a turma inteira? Será que uma ação de planejamento perspectivando uma integração no momento “PACTO” nos levaria a uma prática menos cansativa para o professor, mais significativa para os alunos, no contexto da multissérie? (SOUSA, 2012, p. 4)

           

            Quando trata dos animais, no segundo mês da primeira etapa, há orientações didáticas que conduzem a criança à reflexão sobre sua realidade, como:

b) peça aos alunos que falem sobre os animais estudados: o que eles aprenderam? Quais dos animais estudados existem no município? Quais animais aparecem na televisão, nos desenhos animados? Quais animais são da selva? Floresta? Quais desses animais se criam na fazenda, no sítio, em casa?(MANUAL DO PROFESSOR, p.80)

  •  Pesquise sobre os animais que estão em extinção em seu município e fale para os alunos acerca da importância da preservação da natureza, em especial da região semiárida. (IDEM, p.84)

            Ficamos com a indagação: será que não estamos diante de uma proposta que pode servir de base para um trabalho na perspectiva da integração? Definimos como dispositivos que contam a favor: um tempo específico para o trabalho com a Língua Portuguesa todos os dias da semana, favorecendo assim a alfabetização na perspectiva do letramento; uma organização didática desse tempo: tempo para gostar de ler (em 15minutos todos os alunos poderiam ter acesso a portadores de texto e exercitar sua leitura), tempo de aquisição da leitura e tempo de aquisição da escrita(no caso dos alunos de 3º, 4º e 5º anos os alunos poderiam trabalhar nesses  tempos de maneira mais complexa, considerando seu nível cognitivo).

            Com base no que dizem os professores nos encontros da formação presencial e, principalmente, no que vimos no “acompanhamento pedagógico” decidimos provocar algumas mudanças no itinerário da formação desses professores. A formação agora será realizada mediante encontros com duração de dois dias; no primeiro dia haverá um momento para a escritura de memórias do ensino em classes multisseriadas e um momento para socialização das experiências com base no planejamento, refletindo sobre o que foi possível e o que não foi possível acontecer; o segundo dia consiste de um momento para simulação de um dia do tempo para alfabetizar no contexto multissérie e outro para planejamento e apresentação do mesmo.

            Outro aspecto que está sendo já considerado é a possibilidade de elaborarmos o planejamento de forma integrada. Para isso será feita uma análise da proposta curricular do município buscando encontrar pontos de encontro entre o que se ensina nos cinco anos do ensino fundamental.

            “É nosso desejo penetrar no domínio da prática pedagógica investigando as fontes dos interesses que lhes dão sustentação” (BENINCÁ, 2002, p.51), por isso decidimos abrir um espaço para as memórias de professores que trabalham em classes multisseriadas, partindo do pressuposto de que

Esses sujeitos produzem em suas práticas uma riqueza de conhecimentos que precisa ser, juntamente com as suas experiências, assumida como ponto de partida de qualquer processo de aperfeiçoamento de seu trabalho e de mudança na escola. (p.80)

           

            Com isso será possível chamar este coletivo de professores a uma reflexão sobre sua prática, e como consequência, burilar a necessidade da transgressão do “Paradigma seriado urbano de ensino”.

            Ainda não temos uma proposta pronta, arquitetada para o trabalho do PACTO em classes multisseriadas, mesmo porque é de nosso interesse a construção dessa proposta com os professores alfabetizadores. Estamos partindo da ideia de que por meio da formação será possível refletir sobre um ensino, em classes multisseriadas, que se efetive de forma integrada. Nossa intenção, portanto, é fazer um trabalho mediante a Proposta Didática para Alfabetizar Letrando, norteando o trabalho com a tônica na multirreferencialidade e provocando a “transgressão ao paradigma seriado”.  

           

PALAVRAS FINAIS

            A “reflexão sobre a ação”, defendida por Shön, tem sido um exercício constante no processo de formação desses professores alfabetizadores. A cada encontro da formação presencial, a cada visita, vamos compreendendo os nós da docência em classes multisseriadas.

            Contudo, não podemos deixar de reverenciar esses professores, que enfrentam as adversidades na busca do exercício de uma docência com decência; eles são verdadeiros heróis(super-homens e supermulheres) que arriscam suas vidas num território muito carente de políticas públicas. No município de Valença ainda há localidades que ficam inacessíveis quando o tempo fica chuvoso, e com isso, os alunos ficam sem aula. Além das dificuldades relativas à condição precária da estrada, há também problemas relacionados à violência que estão afetando o campo. Mas entendemos que são questões que podem e devem mudar, e uma forma de fazer isso acontecer é não desistir!

            Acreditamos, portanto, que a prática de reflexão assumida no bojo da formação “apresenta-se como uma estratégia política adequada à transformação” da prática pedagógica desses professores, cuja docência se dá no domínio de classes multisseriadas. Nosso intento é provocar a consciência de que é possível fazer diferente do que se tem feito, com vista a superação da “consciência prática construída ao longo de sua história escolar”, consciência essa que embasa a compreensão do ensino pela ótica seriada.

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[1] A origem do PAIC aponta para o trabalho desenvolvido pelo Comitê Cearense para a Eliminação do Analfabetismo Escolar, criado em 2004, pela Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, através da iniciativa do deputado Ivo Gomes. O Comitê era constituído pela Assembleia Legislativa, UNICEF, APRECE, UNDIME/CE, INEP/MEC, e Universidades Cearenses como UECE, UFC, UVA, URCA e UNIFOR.( http://www.idadecerta.seduc.ce.gov.br/index.php/historico/historia acesso: 30 de junho de 2012).

[2]O ano letivo foi dividido em quatro etapas.

[3]

[4] Conjunto de ações articuladas que asseguram a melhoria do ensino nas redes existentes, bem como, a formação dos professores, produção de material didático especifico, acesso e recuperação da infraestrutura e qualidade na educação no campo em todas as etapas e modalidades -  Decreto n° 7.352/2010.

[5] A região do Baixo Sul da Bahia é composta por 11 municípios: Cairu, Camamu, Ibirapitanga, Igrapiúna, Ituberá, Maraú, Nilo Peçanha, Piraí do Norte, Presidente Tancredo Neves, Taperoá e Valença. Esse conjunto abrange uma superfície de 6.138 km², com uma população de cerca de 260 mil habitantes.

[6] Turma multietapa: Turma que reúne alunos de diferentes etapas de Educação Infantil e Ensino Fundamental, com alunos da Pré-escola e do Ensino Fundamental. (ANUÁRIO BRASILEIRO DA EDUCAÇÃO BÁSICA, 2012, p.159)

[7] Dado apresentado pela Secretaria de Educação no dia 14 de março de 2012

[8] Um avanço, já que antes a obrigatoriedade era para a criança de 7 anos, com o Ensino Fundamental de 9 anos.