A noite estava escura. Fazia frio e eu caminhava só pela estrada deserta, repleta de perigos e ameaças. Levava comigo uma alma destroçada, vazia e desprovida de sentido e propósito. Às vezes eu chorava. Outras vezes sentia uma terrível vontade de gritar. Eu queria fugir, mas não sabia para onde ir. Até as distâncias do horizonte, onde céu e terra fundiam-se um no outro, eu só via trevas, dor e destruição.

O mundo inteiro era um deserto e eu vagava só e perdido em seus caminhos. Foi então que cansado, sentei-me numa pedra, embaixo de uma árvore e fiquei pensado na vida. Meus pensamentos iam e viam descontrolados, rebeldes e implacáveis como navalhas em brasa. Eram pensamentos tão revoltosos, tão violentos e tão mesquinhos e carregados de vinganças latentes, que por mais de mil vezes eu me perguntei se eles eram realmente os meus pensamentos.

Pareciam espíritos errantes e malévolos, aqueles pensamentos... Desde pequeno sempre tive dúvidas sobre a realidade dessas minhas vozes interiores, que são muitas. Eram tantas as vozes que eu escutava...

Vozes de anjos, vozes de demônios, vozes de mulheres. Seriam de fato minhas aquelas vozes que tanto me fustigavam a alma com desejos ensandecidos e me levavam por caminhos que eu não queria percorrer? Hoje eu sei que nem sempre era eu que pensava meus próprios pensamentos, e que mesmo as palavras que me escapavam em profusão da boca, não eram todas minhas. Alguma coisa medonha pensava meus pensamentos e falava por minha boca... Enquanto eu pensava nessas coisas, ouvi uma voz doce, suave e serena a me chamar.

Como eu me alegrei ao ouvi-la. Que luz raiou na minha escuridão quando a música daquela voz retiniu nas profundezas da minha alma. Que voz maravilhosa de se ouvir era aquela. Olhei ao redor e não vi ninguém. De quem seria aquela voz maravilhosa? Um instante depois a ouvi de novo e então olhei para o horizonte e tudo já era diferente. Havia luz e já se podia ver com clareza o que era céu e o que era a terra, o que era bem e o que era mal. Meus pensamentos dobraram-se ao carinho daquela voz doce e se acomodaram serenamente no fundo da minha alma...

E eu finalmente encontrei a paz que procurava. Seria um anjo quem falava comigo? Clamei aos céus... Mas tudo era silêncio. Não, a voz que eu ouvia, agora eu sei não descia do céu.
Novamente ela me falou e minha vida vicejou imediatamente e meus passos se fortaleceram e eu limpei as lágrimas dos olhos e me coloquei a caminhar pela estrada seca e deserta. E enquanto eu caminhava a voz ia falando comigo, e flores sem espinhos iam surgindo às margens do caminho antes árido como um deserto profundo; fontes de água cristalinas brotavam das pedras duras e o céu clareou e ficou sereno e azulado. Bandos de pássaros voam e pousavam nos galhos das arvores que brotavam da terra agora fértil e rica.

O vento soprava uma doce música... Parecia música dos anjos.
A harmonia entre as vozes era perfeita; entre o grave e o agudo não havia qualquer vibração ou tremor de imperfeição. Os acordes fechados se alternavam à perfeição com os acordes abertos. Jamais imaginei um dia ouvir tão maravilhoso acorde que tudo impregnava com esperança e fé. Oh!
Que canção divina era aquela! Cada célula do meu frágil ser estava impregnado com sua harmonia e doçura.
O êxtase da alma assim tocada pelo dedo de Deus era delicioso. Surgia em mim, e fincava raízes nas minhas entranhas e se grudava aos meus ossos, infinitos desejos de santidade, perfeição e plenitude. Meu coração queimava, meu ser dissolvia na contemplação e na plenitude de todas as coisas, pois tudo reverbera e se alegra ao ouvir aquela música... Um rio de águas purificadoras se abriu diante de mim, e eu mergulhei nele, e fui do meu engano, desenganos e desilusões.

Não havia nos cânticos que eu ouvia, por menor que fosse, qualquer sinal que indicasse alguma dissonância entre os cantores. Eram milhares as vozes que cantavam, mas a harmonia entre elas era tal, que as várias vozes formavam uma só voz, um só canto de louvor e cura para o mundo. Era como se um único anjo cantasse... De fato, era um anjo, esse que cantava. Oh, como eu estava enganado! Não eram boas as intenções daquele anjo, se é que aquilo era mesmo um anjo... Talvez já tenha sido, mas hoje não é mais.

Que felicidade eu sentia, então. Eu voava com os pássaros, nadava com os peixes dos rios, nadava nos lagos...
Nesta altura da vida olhei para trás e vi o que tinha me causado tanto mal. Vi pessoas más e muita gente ruim... vi bando de seres disformes que eu julguei serem parasitas que me sugavam a liberdade e me escravizavam. Então, diante de tal visão do inferno, um ódio inumano inundou meu coração e eu me armei de palavras más e avancei sobre eles, amaldiçoando-os um a um até que eles se secassem e na minha presença virassem pó e se desfizessem e nada.
Eu agora era livre.

Sou livre! Gritei para mim mesmo. Sou livre! Então, enquanto eu gritava ouvi mais uma vez a voz doce e suave que me falava e vi e compreendi imediatamente que ela não vinha do céu. Não era a voz de Deus, não era também a voz de um anjo, muito menos era a voz de um demônio...
Eu me regozijei e chorei de alegria, pois a voz que me falava tão favoravelmente e que me libertava dos meus algozes e que transformavam meu deserto interior em um paraíso maravilhoso, só meu, era a voz do meu próprio coração. Deus! Oh meu Deus! Pela primeira vez na minha vida eu ouvia nitidamente o que o meu coração me dizia. Que felicidade! Eu agora sabia quem eu era...
Sabia o que queria e o que não queria da vida... Eu agora era livre... Não havia mais corrente a arrastar, não havia mais peso a carregar, nem mais ofensas a sofrer...
EU ERA LIVRE, LIVRE, LIVRE!!! Corri, voei a bem da verdade, pois urgia em meu peito a vontade insaciável de recuperar o tempo perdido. Cruzei estradas de ouro, naveguei em rios de cristal... Eu nunca tinha vivido tanto, corria e não me cansava e se ficava doente logo minha felicidade me curava. Foi então que sem que eu esperasse ouvi de repente um rugido desesperador...
Meu corpo se arrepiou de alto a baixo. Em seguida ouvi um estrondo no ar e a luz que cobria o céu virou num instante, um mando denso de trevas que desceram sobre mim e me sufocaram. Que terror eu senti, então.

Olhei a estrada antes florida e vi que ela era novamente um deserto de sal ardente que me entravava feito poeira, nos olhos... As trevas estavam cheias de vozes estranhas e de rugidos que faziam estremecer o ar. Ouvi tropel de cavos e sombras que me perseguiam... Nas alturas negras do céu explodiam relâmpagos e trovadas apavorantes e eu estava só, sem nenhum lugar de proteção...
Desesperado e sem ninguém no mundo gritei por socorro. Uma gargalhada sombria e ameaçadora me respondeu no meio das trevas e me chamou pelo nome com voz cínica e zombeteira. Quem está aí? Eu perguntei. Estendi os braços e procurei nas trevas ver quem me falava. Não havia ninguém. Gritei novamente: Quem está aí! Não houve resposta. Eu me apavorei e me desesperei. De repente senti uma tonteira e caí no chão.
Acho que desmaiei, mas não tenho certeza. Meu coração parecia que ia explodir dentro do peito. Senti que eu estava morrendo. Havia vultos terríveis ao meu lado, eu sentia suas garras gélidas tocarem minha pele e ouvia seus risos satânicos... Por fim, quando já o último alento me deixava a alma, ouvi mais uma vez aquela gargalhada asquerosa e procurei ver de onde ela vinha. Olhei para o céu e pude constatar que ela não vinha de lá. Olhei para as profundezas dos abismos infernais e também constatei que de lá a voz não vinha.
De onde estaria vindo então aquela voz tão cruel, tão enganadora e satânica...? De onde vinha aquela música que logo se transformou em marcha fúnebre? Antes de concluir meu raciocínio estremeci e entrei em pânico... A voz zombou de minhas lágrimas e então eu pude ver claramente de onde ela vinha... Vinha de dentro do meu peito... Vinha do fundo do meu coração. Aquela...
Deus meu! Aquela era a voz do meu coração! Mas não pode ser! Não pode ser! Então olhei melhor, pois agora, na hora da morte meus olhos se abriram e eu pude ver com clareza quem eu era e o que era o meu coração. Forcei a vista e vi que meu coração era negro como o carvão... Vi o quanto ele era dissimulado e enganoso... Mas espere... O que é aquilo? Que vulto medonho é aquele que se esconde atrás das sobras do meu coração. Quem é você sombra maligna?
Gritei. Revela-te! Então eu ouvi uma gargalhada satânica e uma aparição do inferno surgiu diante de meus olhos:
Era o Demônio que estava ali. Então eu entendi que todas as vezes que ouvi e obedeci meu coração, na verdade era ao Demônio que eu obedecia e servia. Mas, enquanto a morte me levava para seus abismos, ainda tive tempo de lançar um breve olhar pela estrada deserta e ver uma meia dúzia de cadáveres estendidos pelas suas margens. O sangue deles derramado sobre a terra clamava por vingança.

Eram os cadáveres daqueles que me amavam e que eu, enquanto ouvia e obedecia à voz do Demônio, pensado obedecer à voz do meu coração, que me parecia ser tão doce, mas que era mais amarga que fel puro, amaldiçoei, trai, enganei e matei. Sim agora eu sei ? mas agora já é tão tarde para saber e compreender essas coisas ? que muitos ouvem e obedece a voz de Satanás, pensado estar obedecendo à voz do seu próprio coração. Definitivamente, enganoso é o coração, quem o conhecerá? Então a luz se apagou e eu fui tragado para as profundezas dos abismos insondáveis, onde hoje vivo amargurado e cheio de arrependimentos.