Os votos da cordilheira


Até completar quarenta anos de idade, a esquisitice  maior de Luca Matéria consistia em haver trocado de nome seis vezes. Foi, segundo ele mesmo declara, uma fase divertida.

 

De batismo era Mario Mariano, por influência do pai, devoto da Virgem Maria, e para  desgosto da mãe, cujo credo   negligenciava a Santa.  

 

Aos vinte e três anos, quando começou a interessar-se pela  Septuaginta, cheio de dúvidas quanto à qualificação dos tradutores, e convicto de que melhor houvera sido deixar o Pentateuco escrito em hebraico, trocou de nome pela primeira vez, passando a chamar-se Helvetius Terencius.

 

Aos vinte e cinco, querendo exorcizar in loco um fantasma antigo, o fantasma de Empédocles, que o perseguia em pesadelos recorrentes, acampou nas cercanias do Etna. O filósofo grego que, segundo a  lenda, atirou-se na cratera em plena erupção, havia de vagar por ali. Enquanto aguardava o contato, Helvetius Terencius  resolveu denominar-se  Lucano Leopoldo. Foi a segunda troca.  

 

Daí em diante, fez mais quatro alterações, estabilizando-se em Luca Matéria, seu nome atual.

 

Ninguém até hoje identificou critério algum nas trocas efetuadas.

 

No entanto, não será desmesurado atribuir a descontinuidade onomástica   ao gosto de pôr à prova idéias geniais, como a do livre-arbítrio, e o poder evocativo dos nomes. 

 

Assim, a cada nome novo, uma nova liberdade, uma nova personalidade.

 

Mestre Luca não recomenda a neófitos intentar semelhante prática. O perigo de não achar o caminho de volta é muito grande. Se ele se deu ao luxo  da experiência, foi porque sabia e sabe  manejar com as peças. 

 

A sexta e última troca aconteceu, quando ele, já  sábio e demiurgo, parou diante de um monólito, na cordilheira andina e, lá de cima, tomou três decisões: a) adiou por tempo indeterminado o seu próprio óbito; b) adotou o nome de Luca Matéria; c) fundou simbolicamente a sua própria igreja, cuja missão se consumará em templo deserto, despedido o último fiel.

 

As decisões de Luca Matéria foram testemunhadas pelos nativos que, adivinhando no visitante uma linhagem ancestral, tomaram-no por  “filho das pedras”, e o  reverenciaram com  danças, loas e oferendas. A espontaneidade das manifestações impressionaram vivamente a alma do homenageado, que aderiu ao ritual, dançando e cantando com a tribo.

 

Não havia como duvidar: os votos da cordilheira  cruzaram os lindes profanos, incorporando-se ao calendário local não como um manifesto, mas como um sermão.

 

Ato contínuo, desceu a cordilheira,  mandou equipar um galeão, e se fez ao mar, disposto a encontrar o sentido das contingências e os fundamentos da fatalidade. Tudo isso, é claro, sem nunca perder de vista o céu estrelado.     

 

Pretendo visitar  Luca Matéria, tão logo retorne  do hemisfério norte, onde passa o inverno.

 

Tomara que venha logo. Se demorar muito, pode pegar a gripe suína e morrer por lá, contrariando seus votos de longevidade, e distante, muito distante do hemisfério sul.