No século XVIII, a Revolução Industrial fez multiplicar a riqueza produzida até então nas sociedades. As suas raízes foram o avanço científico, com a máquina a vapor e a máquina de tear; o acúmulo de capital proveniente da exploração do Novo Mundo; e o aumento da demanda na Europa e nas Colônias do Norte, graças à crescente populacional. Como fenômeno de mercado, estas condições materiais reunidas, juntamente à superestrutura remodelada, como o Estado burguês em ascensão, à concepção protestante do trabalho e ao Direito liberal codificado, produziram uma explosão de indústrias e de produtividade no ocidente.

Qualquer análise coerente sobre a História observa que o acúmulo de capital entrelaça-se ao acúmulo de pessoas. É quase impossível, e até infértil, afirmar qual acúmulo permitiu a existência do outro. Conhecendo a complexidade dos fenômenos, a probabilidade admissível é a de que eles ocorreram simultaneamente.

Ora, o aumento da produtividade é a matriz do aumento de riqueza, isto é, do acúmulo de capital. A produtividade, por seu lado, cresceu, ante a ausência das modernas tecnologias, por meio da divisão do trabalho, que, cada vez mais, tornou-se complexa e vasta em cadeia. Maior número de pessoas em mais distintos trabalhos para produzir maior variedade de bens e serviços. O que se infere é que o aumento de indivíduos permitiu a também uma amplitude da divisão de trabalho e, portanto, operou o crescimento produtivo. E o crescimento produtivo disponibilizou o acesso a uma quantidade crescente de bens e serviços, o que, ao longo do tempo, aumentou o padrão de vida humana. Desse modo, são circunstâncias conexas.

Embora todo esse processo exija explicação melhor desenvolvida, não é a intenção deste artigo analisar o processo histórico de produção. Pretende-se, nesse sentido, ater-se à questão do trabalho na vida social e individual. Para os fins aqui propostos, ter-se-á trabalho por toda atividade desenvolvida para a produção. A relação de trabalho, na mesma linha, compor-se-á da prestação de serviços produtivos a outrem mediante remuneração.

O trabalho é o corolário da busca pela satisfação das necessidades humanas. Veja que qualquer indivíduo tem necessidades e que o mundo é um ambiente de escassez, visto que os recursos disponíveis estão em formas dificilmente aproveitáveis, ou não aproveitáveis ou não aproveitáveis de imediato, necessitando de transformação para se tornarem consumíveis. Neste processo de transformação é que se contém a maior parte das atividades produtivas, isto é, do trabalho. É evidente, não obstante, que todas as atividades que promovem a satisfação das necessidades, como caça, colheita ou pesca, por exemplo, são trabalhos. Acontece que a divisão do trabalho promoveu formas tão distintas de produção que, com o desenvolvimento da civilização, as técnicas produtivas mais arcaicas se tornaram obsoletas.

Cada trabalho, portanto, modernamente, está incluso em uma cadeia produtiva que tem por fim satisfazer as mais diversas necessidades humanas. Como dito anteriormente, o acúmulo de pessoas, associado ao acúmulo de capital, diversificou os trabalhos e os diluiu em meio às massas, espalhando as diversas funções entre os diferentes extratos sociais.

Neste ponto é que se pode avaliar como ocorre a distribuição dos trabalhos e quais os efeitos disso. As exigências para o trabalho consistem no conhecimento de suas técnicas de realização e na aptidão para executá-las, isto é, tem que conhecer o trabalho e saber fazê-lo. Pode-se, portanto, distinguir o trabalho qualificado do não qualificado. Este consiste no trabalho que não exige técnicas específicas ou que apenas exige técnicas ordinárias, de fácil obtenção. O trabalho qualificado é aquele que demanda alto conhecimento técnico ou técnica de difícil ou complexa obtenção.

Assim, o trabalho qualificado, inevitavelmente, carrega um valor agregado muito superior ao do trabalho sem qualificação. É uma evidência da lei de oferta e procura: o trabalho qualificado exige condições escassas - pessoas com conhecimento de difícil ou longa aquisição, que logo se tornam de maior valor, dada a demanda crescente, advinda do progresso tecnológico, e a oferta reduzida, dada a formação complexa da qualificação. Já o trabalho sem qualificação exige apenas, em geral, força humana, que qualquer um pode ordinariamente dispor, e, quando muito, técnicas obtidas empiricamente.

As consequências deste quadro são duas: (I) os indivíduos que exercem trabalhos qualificados possuem maiores rendimentos, pois agregam maior valor e produtividade, e, consequentemente, são melhores remunerados; e (II) a qualificação demanda investimento, uma vez que, para obter qualificação, é preciso dispor de recursos.

Para entender os efeitos destas condições, tem-se que ter em mente uma compreensão a respeito dos recursos disponíveis para a vida humana. Como ser vivo, fadado ao fim, o ser humano apresenta como recurso mais escasso o seu próprio tempo de vida. Em seguida, apresenta como recursos valiosos, também escassos, sua força corporal, seu próprio corpo e sua capacidade intelectual. Todos os demais recursos provêm destes atributos naturais, seja pelo próprio labor produtivo, seja pelo labor de gerações passadas, que acumularam algum grau de riqueza e transmitiram-na adiante ou seja pela disponibilidade de recursos por terceiros.

De qualquer forma, em um mundo de escassez, algum recurso será consumido para se obter a satisfação das necessidades humanas. Da mesma forma que um homem desgasta o próprio corpo em uma caçada por um alimento animal, um trabalhador desgasta seu físico em atividades braçais e insalubres. Da mesma forma que um antigo gasta seu tempo forjando, modelando e construindo uma lança com ponta de ferro, sem poder caçar simultaneamente, e tendo, portanto, que escolher entre a caça ineficiente imediata ou a caça futura mais fácil, um estudante gasta seu tempo adquirindo conhecimento, não podendo, muitas vezes, remunerar-se simultaneamente pelo trabalho sem que haja prejuízo à sua qualificação, que, no futuro, render-lhe-á melhor renda. .A estas escolhas, entre a satisfação de uma necessidade ou objetivo e a perda de um recurso, se dá o nome de trade-off (escolha que envolve perda e ganho).

Neste ponto, contudo, é preciso enxergar um desnível contundente entre os diferentes extratos sociais. As influências intergeracionais, governamentais, institucionais e econômicas exercem anomalias na distribuição dos ônus componentes dos trade-offs, isto é, concentram escolhas mais prejudiciais em determinados grupos de pessoas. Há, portanto, uma disparidade colossal entre os prejuízos que a pobreza ou a riqueza de recursos confere a cada indivíduo, que, sob nenhuma ótica, pode ser admitida como minimamente justa.

Como exemplo, veja-se como indivíduos de poucos recursos tendem a encontrar grande dificuldade em capitalizar a si mesmos, isto é, investir em sua própria condição, cujo resultado é a ausência de qualificação própria para mercados de alta remuneração e, consequentemente, o raro acesso a desejáveis padrões de vida. É certo que a escassez de recursos leva ao aproveitamento dos meios ordinários disponíveis, como a força bruta humana e o tempo de vida, ambos genéricos em plano coletivo, embora, a longo prazo, valiosíssimos em plano individual.

Por outro lado, a abundância de recursos permite a indivíduos usufruírem de padrões elevados de vida, que, não raramente, garantem um bom aproveitamento do tempo disponível e um baixo desgaste do organismo e da força física. Constantemente, tendem a qualificar-se, seja pessoalmente ou empresarialmente, pois possuem grande capacidade de investimento.

Em linhas mais grosseiras, isto significa que quem é pobre tende a perder qualidade de vida e a própria vida em trabalhos sem qualificação, de maneira que o próprio exercício dessa vida dificulta sobremaneira o alcance a maiores rendas, uma vez que a renda depende fundamentalmente do investimento realizado, em sentido lato. Já quem é rico tende a ter elevada qualidade de vida, senão pelo menos um consumo sempre satisfatório, e a aproveitar grande variedade de lazer durante a vida, pois exercem atividades de alta renda, sejam intelectuais, laborais complexas ou empresariais, em virtude de grandes investimentos realizados, tanto geracionais, pelos próprios titulares na mesma geração, como intergeracionais, pelos antecessores de gerações passadas para futuras.

É preciso reconhecer, portanto, o trade-off para quem investe recursos em trabalhos menos qualificados: a perda da oportunidade de se obter conhecimento agregado, qualificando-se, em troca da rentabilidade do trabalho, embora baixa, e da experiência no exercício de técnicas laborais, relevantes para a permanência no mercado de trabalho.

Dado que um jovem rico, ou pelo menos com condições que não tornem o trabalho uma necessidade, pode abrir mão dessa experiência e dessa rentabilidade inicial para obter um desenvolvimento qualificado, que o projete em posições de mercado inacessíveis ao trabalhador sem qualificação, há uma tendência, a longo prazo, de reprodução de um sistema em que classes marginais se situem cada vez mais em trabalhos de baixo valor agregado, enquanto classes que dispõem de maiores recursos se perpetuem em posições continuamente mais rentáveis, já que uma classe tende a gastar recurso em trabalhos mecânicos, naturalmente desgastantes, enquanto outra agrega valor por meio da qualificação.

Trazendo para a nossa realidade, números de 2017 mostram que quase 44% dos jovens brasileiros exercem trabalho em algum turno. Conforme se verifica, quanto mais pobres forem os jovens, mais imersos ao trabalho em tenra idade eles estarão. É notória, por exemplo, como a probabilidade de um estudante de universidade, com dedicação livre aos estudos mediante sustento paternal, de se tornar um trabalhador de alta remuneração, seja engenheiro, médico ou empresário, é muito mais alta do que a de um jovem que trabalha noturnamente, por exemplo, no McDonalds. O valor agregado do estudante em tempo integral, em tese, será bem superior, enquanto pessoas com vidas já pobres tenderão a manter-se em padrões baixos, em geral, de pouca oscilação ou cuja oscilação demore gerações. Evidentemente que pontos fora da curva existem, embora não sirvam para explicar a tendência de um fenômeno. Veja que o esforço grandioso de conquistar formação acadêmica, enquanto se trabalha diuturnamente, é verificado somente nas mais resistentes pessoas, exceções cuja raridade tem medida no tamanho do heroísmo delas.

Vale ressaltar que esse índice de trabalho na juventude é característico do mundo subdesenvolvido. O percentual do mundo desenvolvido beira à metade disso – a média da OCDE é 23,3%. Na Coreia do Sul, exemplo de liderança tecnológica e de desenvolvimento tardio, o percentual é de 5,9%. Em suma, lá os jovens estão estudando e ganhando capacitação, futuro valor agregado. Nações desenvolvidas, como atestam as evidências, costumam reduzir esses ônus em torno das classes sociais mais baixas, a fim de qualificar mão de obra nacional e, consequentemente, reduzir a pobreza geral.

É fundamental verificar esse mecanismo decantador, que tende a concentrar parte das pessoas em condições extremamente desiguais, no fundo da pobreza, enquanto uma parte minoritária flutua nos privilégios dos excessos de recursos.

Ademais, as condições de empreender e de trabalhar não são globais, mas profundamente nacionais. Totalmente desiguais entre os extratos da população e entre os países do mundo. Não é uma questão de puro esforço e trabalho, como o senso comum costuma inferir. É questão de reconhecer mecanismos de obstrução. É preciso reconhecer que as disparidades, econômicas e sociais, são mais profundas do que o indivíduo e seu mérito e do que as relações aparentes.

Este artigo tem a intenção de contribuir para o debate sobre a desigualdade social e os trade-offs do trabalho, contudo, não possui condição de travar todos os questionamentos necessários. Questionar, por exemplo, as raízes e os efeitos sociais de um jovem ou, em paralelo, um trabalhador sem instrução, estar fadado ao subemprego e a rendas irrisórias. Questionar se a atividade potencialmente perniciosa, como gastar recurso de vida em subemprego, é algo benéfico para nossa sociedade, que já vive nos confins da divisão de trabalho internacional. Questionar se o trabalho na infância e juventude provoca evasão escolar, em potencial incremento às fileiras do crime. Questionar se o gasto em ganho imediato, pela rentabilidade do subemprego acessível, prejudica o investimento em capital humano, em busca da qualificação de alto nível que somente pode ser alcançada com muita dedicação acadêmica – e como isso prejudica o potencial tecnológico do país, cuja ausência faz naufragar as transações correntes nacionais em déficits profundos, fazendo a dívida pública e os gastos governamentais galoparem e reduzindo as chances de se reduzir o gigantismo do Estado.

O quadro geral, portanto, é de ônus deletérios, inevitáveis pela própria condição natural do mundo, diluídos pela sociedade, com trade-offs excessivamente prejudiciais para certos extratos sociais e relativamente benéficos para outros.

Quer dizer, a ficção social que o homem projetou para si, de viver sob um regime de normas jurídicas, dotadas de previsibilidade e tendentes ao menor risco, acaba, quando não contestada, por salvaguardar privilégios para determinados grupos, construídos e presentes, a bem da verdade, durante toda a marcha civilizatória. Deve-se refletir sobre essa problemática.

Por fim, espera-se que a crítica social sobre a imposição sistêmica dos trade-offs do trabalho a uma parte da população, em razão da pobreza generalizada que torna necessário o sacrifício e obstruí a liberdade de escolha individual, bem como se torna um imperativo da sobrevida, e sobre a perpetuação da pobreza por meio da tendência de longo prazo à manutenção de extratos populacionais em subempregos, marginalizados da produtividade de grande valor agregado, e, assim, da riqueza, tenha se mostrado de alguma relevância.