“Longo e difícil é o caminho que

do inferno leva à luz”

(Milton, 2006).

 Introdução

O filme Seven – os sete crimes capitais, produzido em 1995 e dirigido por David Fincher é um thriller que aborda a fragilidade da mecânica social pós-moderna através dos pecados capitais. Os capitais[1] tomaram forma no período Patrístico, porém foi na Antiguidade Clássica, com Aristóteles, que a ideia de uma classificação nasceu.

 Aristóteles, em Ética e Nicômaco (2001), define e analisa os maiores vícios e virtudes dentro de uma sociedade, classificando-os e contrapondo-os e é através dessa concepção filosófica que se criará a primeira ordenação dos males humanos.

 O processo de transformação dos vícios em pecados e, consequentemente, sua organização em uma lista de sete capitais atravessou todo o Medievo e parte da Idade Moderna[2], solidificando-se e tornando-se oficial dentro da doutrina cristã somente no Concílio de Trento (1545 – 1563).

 Por meio da lista dos pecados, a Igreja reivindicou o monopólio da missão que lhe permitia absolver o pecado. Assim, se a pastoral do pecado, cujo desenvolvimento, tanto na Idade Média quanto hoje, pode ser considerável, supõe-se que a mesma lista visa a potencializar a culpabilidade dos fiéis e, sobretudo, a valorização dos meios de salvação oferecidos pelos clérigos (BASCHET, 2000, p.380). O seu principal propósito era controlar, catequizando todos os principais pilares sociais e seu reflexo dentro da sociedade se dá de forma eficaz. Baschet (2000) discorre sobre o medo imposto com o uso dos pecados e sobre como existiu uma hierarquia dentro da lista dos pecados, hierarquia mutável, uma vez que conseguia acompanhar as mudanças sociais.

 A Igreja utilizou a lista dos pecados para comedir certos aspectos sociais, envolvendo, de fato, desde o próprio clero até as classes mais baixas. Por um longo período, essa lista foi didaticamente divulgada pelos padres, em sermões e diversas iconografias – vitrais, pinturas, murais e escritos – ilustrando como seriam as punições aguardadas no Inferno e no Purgatório.

 O criminoso do filme Seven, John Doe, analisa a sociedade pós-moderna e acredita na necessidade de uma intervenção divina, purificadora e catequizadora. Com um conhecimento profundo da doutrina medieval/moderna dos pecados, John Doe acredita ser parte de uma missão martirizadora e propõe, por meio dos assassinatos que comete, um novo direcionamento moral dentro de uma sociedade dominada pelo afã capitalista e mercadológico.

 Entrando na mente de John Doe.

O filme de Fincher conta a história de três personagens. Dois são policiais: o detetive David Mills, jovem sedento pela luta diária de sua profissão, e o detetive William Somerset, cansado e desgastado pela profissão. Enquanto o mais jovem está entrando, iniciando sua carreira em Nova York, o mais velho está se aposentando. As vidas dos dois policiais se entrelaçam quando um caso de assassinato chama a atenção do Departamento de Polícia e cabe aos dois resolver. O terceiro personagem é John Doe, um serial killer que tem como modus operandis uma fixação pelos sete pecados capitais, e é fazendo alusão a eles que comete seus crimes.

O foco deste trabalho está nos motivaram John Doe a cometer os crimes e é por esse viés que o iniciarei.

Faltam sete dias para o detetive Somerset se aposentar e é exatamente durante esses sete dias que os assassinatos ocorrerão. Existem dicotomias interessantes entre os policiais: enquanto o mais novo se mostra esperançoso, o mais velho se mostra saturado, e percebe-se um equilíbrio entre os dois e até um complemento que, no fim, se mostrará peça chave para o desfecho do filme. Durante grande parte da trama os policiais buscam entender três principais pontos que expliquem a lógica do assassino: o primeiro é o motivo impulsionador do assassino, o segundo é a ligação entre os crimes e o terceiro é o objetivo final.

O Detetive Somerset consegue ver uma conexão entre os dois primeiros assassinatos por meio de duas palavras deixadas nos locais dos crimes: Gula e Cobiça[3], dois dos sete pecados capitais. Este se torna o ponto de partida para a compreensão do motivo que impulsiona o assassino a cometer os crimes.

A partir deste momento os dois policiais iniciam uma pesquisa sobre o assunto e estudam três importantes obras: Paraíso Perdido de John Milton, publicado em 1667 (SIMÕES, 2006, p. 8), A Divina Comédia de Dante Aliguieri (parte de sua publicação se iniciou em 1317) (DONATO, 1981, p.14) e Os Cantos de Cantuária de Geoffrey Chaucer, escritos  entre 1386 e 1400 (VIZIOLI, 1986-1987, p. 6).

 Os três escritos trabalham com a questão da moral e do pecado:

Em Paraíso Perdido, Milton desenvolve um poema narrando a queda do homem pelo pecado e sua expulsão do paraíso. A principal abordagem da poética de Milton é sobre o pecado original, e sobre como cedemos às tentações em prol de um prazer superficial. O autor trabalha o pecado em seu nascimento divino e sua conjuntura com a criação de Deus.

 Já Alighieri irá trabalhar o pecado e suas consequências punitivas narrando a aventura de seu protagonista pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, ou seja, subdivide a destinação pós-morte dos homens em três níveis e traz pela primeira vez uma descrição geográfica do Além.

 Dante cria novos conceitos teológicos, como a ideia de Purgatório e a consolidação de uma hierarquia de pecados, e suas respectivas punições (LE GOFF, 1993). Mesmo se o objetivo do poeta, pelo fantástico de uma viagem ao Além, fosse apenas proporcionar a si mesmo cômodas ocasiões de vingar-se de seus inimigos[4], é impossível não colocar a Divina Comédia no centro da história do pecado no Ocidente, sobretudo quando se leva em conta sua ampla difusão: “Pela sua obra prima, Dante demonstrava em todo caso que a culpabilização tinha se tornado, desde o século XIV, mesmo entre os leigos, a grande preocupação da cultura dirigente” (DELUMEAU, 2003, p. 391).

 Em seu Purgatório, Dante aborda os sete pecados capitais (representados por uma montanha). Em cada um dos sete níveis, os condenados expurgam seus pecados para, talvez, conseguirem a redenção e a possibilidade de subirem ao Paraíso. É a partir desse momento que uma nova visão acerca dos males cometidos na terra é observada, revigorando o discurso da Igreja, e consolidando de vez a ideia dos sete capitais.

 Nos Contos de Cantuária, Chaucer apud Vizioli (1986-1987) irá abordar o pecado como parte do homem e independente de sua posição social. A história centra-se num grupo de viajantes que se dirigem à Catedral de Cantuária para prestar homenagem ao Santuário de São Tomás Becket. Durante a viagem, o dono de uma pousada sugere que os viajantes contem histórias para passar o tempo. Nessa “peregrinação” estão todos os tipos de pessoas, em suas diversas classes sociais, do servo ao nobre. O último a contar uma história é um pároco que aborda, dentro de um extenso tratado moral, a doutrina dos sete pecados capitais Ele os especifica e aponta suas principais características e respectivas condenações. Chaucer encerra Os Contos de Cantuária com o Conto do Pároco, exemplificando através dos pecados um pouco de cada um dos viajantes que ali estavam.

 Os três textos pesquisados pelos protagonistas de Seven mostram uma gradação da história do pecado, sua origem, seu desenvolvimento e suas consequências. À medida que mais assassinatos acontecem, os policiais percebem uma incongruência nos crimes: as vítimas não possuem ligação direta entre si, porém fazem parte de uma mesma lógica, a “lógica do pecado” de John Doe.

 Cinco assassinatos ocorrem, os pecadores da gula, cobiça, luxúria, preguiça e vaidade cumprem seu papel e é nesse momento que o assassino se entrega O assassino confessa mais dois assassinatos (ira e inveja) e promete revelar onde estão os corpos somente se os dois policiais o levarem ao local que ele indicará Mesmo desconfiados de algum possível estratagema, eles decidem jogar o jogo de John. Durante o percurso, segue-se uma tensa e enigmática conversa entre protagonistas e antagonista e John Doe revela qual era seu objetivo final ao cometer todos os crimes.

 A inversão dos valores morais

 Antes de entendermos os porquês de John Doe, é imprescindível compreender a inserção das principais ideologias responsáveis por modificar a mentalidade do homem pós-moderno.

 Ao longo do tempo, a Igreja Católica acumulou uma vasta gama de conhecimentos, opiniões e atuações no que diz respeito aos desvios morais: os conceitos de pecado e de pecar tiveram extensa evolução durante a história da Igreja, que, com vistas a proteger suas próprias posições, reordena e modifica a gravidade e a ordem dos mesmos segundo o contexto histórico. A “versatilidade” da Igreja em adaptar-se fez com que a própria instituição permanecesse vigente, porém grande parte de sua doutrina se alterou durante a história. Durante toda a Idade Moderna, a moral católica oscilou, seja pendendo para uma afirmação ou consolidação de seus preceitos, seja anulando-se, questionada por novas linhas de pensamentos que surgiam, entre elas o Liberalismo[5].

 Em meados do século XX, “novas” correntes ideológicas surgem: a mais forte e a “principal” delas foi o pós-modernismo[6], que assumiu o direcionamento a uma nova linha de pensamento, se responsabilizando pela ressignificação de toda uma milenar acepção desenvolvida pela Igreja durante a história. O pós-modernismo desregulou uma linearidade dentro da moral católica já construída e validada, invertendo seus valores[7]. “As doutrinas éticas pressupunham certa homogeneidade local, em que podiam reescrever exigências institucionais como normas interpessoais e com isso reprimir realidades políticas nas “categorias arcaicas do bem e do mal” [...]” (JAMESON apud ANDERSON, 1999, p. 77).

 O pós-modernismo trouxe a possibilidade do questionamento e da autonomia, desconstruindo doutrinas enraizadas, desqualificando-as e oferecendo vastas opções, como diz Jencks:

É uma era em que nenhuma ortodoxia pode ser adotada sem constrangimento e ironia, porque todas as tradições aparentemente têm alguma validade. Esse fato é em parte conseqüência do que se denomina de explosão das informações, o advento do conhecimento organizado, das comunicações mundiais, da cibernética (JENCKS apud KUMAR, 2006, p. 142).

  Se o pós-modernismo projetava o indivíduo cada vez mais dentro da lógica do mercado, a retomada do liberalismo, o neoliberalismo[8], o inseriu de vez.  Essa “nova” ideologia trouxe consigo um desejo de liberdade, onde o homem basta-se a si mesmo quando inserido no mercado e, neste particular, a economia não segue leis, mas tendências. (GALVÃO, 1997).

 Na Idade Média, o homem desprezava o corpo e cultuava a alma. No período conhecido como a “Pastoral do Medo” (DELUMEAU, 2006), durante a Idade Moderna, com o Renascimento e o Iluminismo, o homem se configurou em dois processos principais: o de desconstrução (do ser, antes definido pela Igreja) e o de racionalização. A partir da pós-modernidade e, consequentemente, do neoliberalismo, o homem se encontra no cerne do sistema de mercado. Para Assmann (1989, p. 232), o neoliberalismo fez com que tudo que era produzido pelo homem fosse reduzido à condição de mercadoria; a natureza e todos os recursos naturais e o próprio ser humano, parte dos mecanismos mercadológicos, foram reduzidos a mercadorias.

 O sistema de mercado só conseguiu impor-se quando conseguiu impor uma determinada visão do homem, como marionete dirigida pelo interesse próprio na competitividade do mercado, dispensando de angustiar-se com esforços de repensar, sempre de novo, as possibilidades da liberdade própria e alheia, numa conjugação social de ambas. A liberdade ficou dogmaticamente definida: as relações contratuais do mercado são a única liberdade possível. [...] Quem parafraseasse, na primeira etapa, o salmo 23(22), aplicando-o (“o Mercado é meu pastor, nada me pode faltar”), hoje poderia rezá-lo com mais devoção ainda, se estiver de acordo com a ideologia neoliberal. (ASSMANN, 1989, p. 234,253).

 O neoliberalismo definiu novos contornos sobre a relação do homem com a religião: se por um lado ele a descarta, apoiando-se nos mecanismos disponíveis do mercado, por outro ele se agarra de forma fundamentalista e enfática aos diversos “novos” deuses. Este homem não precisa mais de um direcionamento sobre seu agir, sua conduta e sua ética, já que o próprio mercado o oferece.

 Os conceitos de ética e conduta estão diretamente ligados a outros dois conceitos – moral e moralidade – que, de certo foram desenvolvidos pela Igreja durante seu percurso na história. O principal interesse da Igreja era direcionar o homem a uma conduta que estivesse de acordo com as doutrinas católicas e, para isso, ela desenvolveu um longo processo de caracterização ou definição das “condições humanas”, seguindo a linearidade do desenvolvimento dessas “condições humanas e morais”.

 A construção do homem neoliberal se dá principalmente através da renúncia ao instinto: “os prazeres da vida civilizada vêm num pacote fechado com os sofrimentos, a satisfação com o mal-estar, a submissão com a rebelião (FREUD apud BAUMAN, 1998, p. 8). As compulsões do homem neoliberal, suas regulações e supressões são a marca registrada do pós-modernismo, resultando nos excessos, antes trabalhados pelos gregos, condenados pela Igreja e, agora, validados pela lógica do mercado. O mercado oferece possibilidades de satisfazer os mal-estares dos homens, e o mercado nos estimula a isso. O individualismo, tão cultuado pelo pós-modernismo, fez com que aprendêssemos a “honrar” os nossos deveres morais individuais.

Enquanto o catolicismo e outras religiões tentam a todo custo um “retorno” de uma moral altruísta, o mercado “descentra[9]” o individuo estabelecendo uma “‘moral sem obrigações nem sanções’ segundo as aspirações da massa, que se mostra cada vez mais inclinada a um individualismo hedonista democrático” (LIPOVETSKY, Gilles, 2005, p. 105).

Jean Delumeau (2003) escreveu sobre a culpabilização do pecado no Ocidente, e como o homem medieval se sentia (ou o faziam sentir-se) quando cometia pecado: “Na história europeia, a mentalidade obsessiva foi acompanhada de uma “culpabilização” maciça, de uma promoção sem precedentes da interiorização e da consciência moral. Em escala coletiva, nasceu no século XIV uma “doença do escrúpulo” que se amplificou” (DELUMEAU, 2003, p.9). Na sociedade neoliberal, o conceito de culpa passa a ser considerado obsoleto: para Menninger (apud GUINNESS, 2006, p. 18), dentro da teologia pós-modernista, a noção de “mal” deixou de ser pecado para ser crime (definido legalmente), e se tornar doença (definida em categorias psicológicas). Em outros termos, a moral “profana” suplantou as leis morais de salvação eterna, apontando para uma nova perspectiva em que um grande número de sólidas prescrições morais ainda continua envolvendo uma incessante busca pelo prazer.

A moral do Ocidente neoliberal remete aos conceitos de “permissivo” e “transgressivo” [10]. No neoliberalismo, a noção de pecado se torna minimizada: contrastando com a tradição milenar dos pecados e virtudes, a cultura pós-modernista é permissiva, induzindo e estimulando que o indivíduo faça o que bem quiser e como quiser; a única “punição” a ser temida é a lei. Deus se tornou meramente mais uma das partes do mercado. Nessa sociedade transgressiva, tem-se licença para empanturrar-se de comida, dormir com quem desejar, angariar lucros (mesmo que isso ultrapasse uma “boa ética” social), atacar quando se sentir acuado, competir para suprir frustrações, utilizar os mais diversos recursos para adquirir uma aparência falsa, ou simplesmente se acomodar. Pode-se até cruzar qualquer limite legal ou ético que não seja suscetível de ser descoberto.

Os pecados capitais fazem-se presentes na sociedade neoliberal e permissiva, porém trocaram por virtuoso seu caráter negativo, e tornaram-se, por vezes, dentro da lógica do mercado, condutas convenientes e estimulantes.

Essa inversão de valores se torna o motivador e a justificativa necessária para que John Doe inicie um processo de expurgação social. Ele percebe essas mudanças e não se conforma com a naturalidade com a qual a sociedade lida com seus vícios e pecados. Cada um dos crimes cometido foi uma forma que Doe encontrou para exemplificar nossos pecados cotidianos.

Os Crimes

A gula foi a primeira expurgação[11] cometida por John Doe: na cena do crime se encontrava um homem em estado de obesidade mórbida sentado a uma cadeira de frente para uma mesa Seu rosto estava afundado em um prato de macarrão, seus pés e mãos amarrados. O glutão foi obrigado a comer até explodir seu estômago, demorando doze horas para chegar a óbito Atrás da geladeira, escrita com gordura aparece a primeira palavra que dá início à investigação: Gula. Na Divina Comédia de Dante, os condenados são obrigados a fazer um jejum eterno ao lado de uma árvore gigante com frutos de odores estimulantes; em Seven, Doe inverte a lógica punitiva.

A cobiça (avareza) vem em seguida: um advogado corrupto é encontrado morto em seu escritório, nu, de joelhos, com as mãos e os pés amarrados para trás. À sua frente, uma pilha de livros jurídicos, utilizados por ele ao longo de sua carreira e, em cima, uma balança (representando a Justiça). Ao lado, uma citação do livro O Mercador de Veneza:  “uma libra de carne, nem mais nem menos, sem cartilagem, sem osso, só carne. Cumprida essa tarefa, ele estará livre” (SEVEN, 1995). O advogado foi obrigado a cortar parte do seu corpo para equivaler ao dinheiro que tanto almejou em vida. Os avarentos do quinto círculo do purgatório de Dante também estão de frente para o chão, com as mãos e os pés presos, olhando durante seu tempo de expurgo para a terra e as coisas geradas ali.

A preguiça foi a terceira punição: um traficante[12] pederasta é amarrado em sua cama e ali permanece durante um ano Seu corpo foi apodrecendo, e ele comeu sua língua e seus dentes. John Doe o visitava diariamente para alimentá-lo de soro, assim mantendo-o em uma situação de sobrevivência, decerto como ele fazia com seus clientes. Alighieri retrata a preguiça no Purgatório como um incessante correr sem chegar a lugar algum Esse expurgo faz com que os punidos repensem sua estagnação, negligência e apatia, quando em vida não tomaram partido em prol do amor e do bem alheio.

A luxúria é o quarto pecado a ser punido: Doe encomenda em um sex shop um objeto em formato fálico, feito de aço, com lâminas de todos os lados e obriga um homem a usá-lo e fazer sexo com uma prostituta Ao introduzir o objeto na mulher automaticamente ele a corta de dentro para fora, seguindo o ritmo dos movimentos sexuais. A morte foi causada pela dor, uma alusão às doenças sexuais contraídas pelo exagero sexual. Na porta do quarto (entrada, permissividade, consenso), a palavra luxúria escrita com o sangue da prostituta morta. Dante trabalha com o pecado da luxúria de forma similar: pessoas caminham com pensamentos sexuais em filas, e quanto mais pensam, mais o fogo as consome.

 A vaidade[13] é o quinto crime cometido: na cena encontra-se uma mulher deitada numa cama, com o rosto retalhado. Em uma das mãos está amarrado um telefone, na outra, remédios, na parede atrás da cama, escrito a sangue está: - “Grite por socorro e viverá, mas ficará desfigurada, ou ponha um fim a sua própria dor”. (SEVEN, 1995). Na cabeceira da cama se encontra uma fotografia da moça desfigurada, uma famosa modelo. O nariz da modelo foi cortado para não ficar empinado. Comprovando a teoria de John Doe, a modelo não pede socorro e acaba morrendo por sua vaidade, Dante Alighieri aborda punição parecida na Divina Comédia: no primeiro círculo do Purgatório, os Soberbos, nus e sujos, são obrigados a carregar uma rocha do tamanho de seu pecado. A rocha os força a olhar para baixo (deixando a posição soberba de “nariz empinado”) e obrigando-os a se verem naquela situação, supostamente humilhante.

 Os pecados da ira e da inveja são respectivamente o do jovem detetive Mills e o do próprio John Doe. Durante toda a trama, Mills demonstra sua agressividade e intolerância para com o mundo, e Doe a sua insatisfação por não conseguir se adaptar. Durante o percurso a caminho dos dois corpos que os policiais pensam encontrar, John oferece sua explicação para os assassinatos:

"Um homem obeso e repugnante que mal podia ficar de pé. Você o apontaria com seus amigos; juntos zombariam dele. Se o vissem enquanto estivessem comendo, não acabariam a refeição. Depois, o advogado, cá pra nós, tinha que me agradecer. Foi um homem que dedicou sua vida a ganhar dinheiro, mentindo deslavadamente para manter assassinos e estupradores nas ruas. Uma mulher tão feia por dentro que não podia continuar vivendo se não pudesse ser bonita por fora. Depois, um traficante, um pederasta, na verdade. Não esqueçamos a puta que espalhava doenças. Só nesse mundo de merda você pode dizer que eles eram inocentes e não rir. Mas é aí que está, nós vemos um pecado capital em cada esquina, em cada lar e o toleramos. Nós o toleramos de manhã, de tarde e de noite. Quer dizer, tolerávamos. Estou dando o exemplo!" (SEVEN, 1995).

Ao chegar ao local indicado, John Doe caminha em direção a um lugar deserto, escoltado pelos policiais Às 7:00 em ponto um carro surge no horizonte. O detetive Somerset se dirige ao carro e o detetive Mills fica guardando Doe. Enquanto Doe conversa com Mills, Somerset para o carro e descobre que era uma entrega em nome de John Doe para o detetive Mills. Somerset se arrisca a abrir a encomenda e dentro encontra a cabeça da esposa grávida de Mills, assassinada por John.

Nos último minutos do thriller, antes de Somerset se aproximar, John Doe revela a Mills que matou sua esposa e seu filho, revela também que seu pecado é a inveja, e que vinha tentando vendar os próprios olhos dentro de uma sociedade apática e conivente com os pecados capitais, porém não conseguiu. Ele invejava uma vida comum, “normal” e rotineira como a de Mills e clama: - Acorde, Ira! É quando Mills se descontrola e, cego pela raiva, mata John Doe, finalizando a missão deste: virar sete pecados contra seus respectivos pecadores.

Dante retrata esses dois últimos pecados da mesma forma na Divina Comédia: no círculo da ira, punidos caminham em meio à névoa que os cega e não os deixa ver uma saída possível num emaranhado labirinto de rochas. Os punidos pelo pecado da inveja possuem seus olhos cerrados por arames, de frente para um abismo no qual são obrigados a se apoiarem, para não caírem.

 Conclusão

 O filme Seven de David Fincher é uma crítica ácida ao mundo neoliberal Ele utiliza a personagem de John Doe para exemplificar e expurgar nossas mazelas cotidianas.

Junto com o neoliberalismo, criou-se certa descrença sobre os valores morais tradicionais. O pós-modernismo renegou a fé na obrigação de viver para o próximo, construindo um indivíduo que valoriza e atenta principalmente para as questões do “eu”: o eu conquistou seu direito de cidadania. O individuo neoliberal não vacila em expor o caráter individualista de suas preferências, antes condenado pela religião, a qual  anteriormente inspirava uma ética de compartilhamento, compaixão e complacência.O mercado estimula a inversão dos valores morais. Os pecados se tornaram virtudes fomentadas pela lógica pós-modernista, e as virtudes se tornaram pecados, por incitarem um comportamento “humanitário” do “um” para com o “outro”, comportamento agora malvisto pela lógica do mercado “neoliberal”. O indivíduo se “liberta” das amarras doutrinárias religiosas (ou pelo menos acredita que o faz) tornando inúteis os valores inerentes ao sacrifício, sejam eles relacionados ao imaginário da vida eternizada ou a meras finalidades profanas.

 Acredito que o sucesso dos sete pecados capitais é explicado por sua capacidade de adaptar-se às realidades em permanente transformação e por se constituírem em ferramenta de notável eficácia histórica em canalizar, sempre com fins “econômicos” de controle social, os impulsos humanos.

 David Fincher explora a frágil relação entre a religião e o mercado, utilizando do cinema como instrumento para criticar posições e fazer pensar questões através do choque: As mortes causadas por John Doe podem ser um grito abafado e desconcertante da religião que tenta retomar algumas doutrinas para se manter vigente neste mundo pós-moderno.

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NOTAS 

[1] Gregório Magno (540 – 604) foi o responsável por conceituar a ideia de capital (do latim caput, cabeça); para ele, os sete pecados capitais são como governantes que comandam um exército de outros pecados. Dos sete pecados principais, derivam uma horda de vícios que geram outros vícios, entrelaçados: os pecados seriam como os galhos mais fortes de uma árvore e as transgressões as suas ramificações. A lista dos sete pecados capitais enumera as principais falhas humanas ou (o que para a Igreja) seriam as maiores ofensas a Deus (AQUINO, 2001, pp. 75-77).

[2] Evágrio Pôntico (345 – 397) foi o responsável por levar parte da filosofia de Aristóteles para os mosteiros do deserto no oriente (ECCLESIA, 2009). A nova “filosofia” do combate aos vícios humanos deixava os monges temerosos. A filosofia dos vícios humanos chega ao ocidente através de João Cassiano (360 – 435), que, entre os anos de 420 e 429, escreve duas obras referentes aos vícios: Das instituições dos mosteiros e das oito falhas principais e seus remédios, livro XII e Conferências XXIV. (FORTESCUE, 1911). A cultura dos vícios começa a ser difundidas em toda a Europa, mas é com Gregório Magno (540 – 604) que de fato ela é instituída dentro da Igreja (HUDDLESTON, 1909). Porém, é com São Tomás de Aquino (1227 – 1274) que ela ganha sua fórmula final. É preciso salientar que a lista dos sete pecados capitais atraía pouca atenção da Igreja, até então. No início da Idade Moderna, os pecados tornam-se popularmente conhecidos, principalmente pelos manuais dos confessores, por uma rica e vasta literatura e por variadas iconografias (LOPES, 2009).

[3] No filme a palavra que aparece escrita na cena do segundo crime é Greed (em inglês, Ganância), traduzida como Cobiça na versão brasileira do filme. Nenhuma das duas palavras constam na lista dos sete pecados capitais, porém ambas são ramificações do pecado capital da Avareza.

[4] Na Divina Comédia, Dante aproveitou-se de suas inimizades e ilustrou como seria quando seus desafetos fossem para o Inferno e para o Purgatório. O poema é cheio de nomes e citações referentes aos seus contemporâneos e a outros nomes famosos da História Antiga e Medieval.

[5] O liberalismo, teoria filosófica iluminista, surgiu após a Revolução Francesa e trouxe na “razão” e na “liberdade” seus pontos fundamentais. Foi o liberalismo francês que propôs a separação do Estado e da Igreja, logo após a derrubada da monarquia. O liberalismo teve três momentos: primeiro como filosofia, segundo como tendência política e, por fim, como sistema econômico. Dentro dessas teorias, a primazia seria de elevar à categoria individual o pensamento do homem, criador de si mesmo e de sua própria história, ignorando de vez a intervenção direta das doutrinas religiosas (entre elas, a moral) para definir sua identidade no meio social. No início do século XX, com a Grande Depressão, o liberalismo entrou em descrédito.  (GALVÃO, 1997, pp. 54-55).

[6] Neste texto, utilizo o conceito de Frederic Jameson de pós-modernismo: “um novo estágio do capitalismo ou um capitalismo tardio” (JAMESON, 1985). De forma simplificada, seria a desconstrução dos conceitos ideológicos dominantes durante a Idade Moderna e a valorização do indivíduo e a efetividade da relação entre o indivíduo e o mercado.

[7] Cf. HARVEY, David. Condição Pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.

[8]A partir de 1970, a ideologia liberal retorna, desta vez como Neoliberalismo. É preciso salientar que o prefixo neo não se refere a uma nova corrente do liberalismo, mas sim à retomada de alguns preceitos liberais no contexto do pós-modernismo. “O centro de toda prática neoliberal é o mercado e, por conseguinte, o consumo.” (GALVÃO, 1997, p. 54-55).

[9] Cf. HALL, Stuart. A identidade cultural da Pós-Modernidade. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. O autor trabalha com o conceito de “descentração”, que seria uma fragmentação dos indivíduos e de suas identidades pelo mercado.

[10] Como diz Guinnes (2006, p. 18), “permissivo” foi capturado por Dostoievski, em Os irmãos Karamazov: se Deus estivesse morto e não houvesse vida futura, “nada mais seria imoral, e tudo seria permitido”. O termo “transgressivo” achou sua expressão clássica no lema pintado na parede da Sorbonne, em Paris, em 1968: “É proibido proibir”.

[11] Para John Doe, os assassinatos eram como expurgações, uma forma de virar o pecado contra o pecador.

[12] Podemos associar a posição da vítima que era traficante à melancolia despertada pelas drogas, que podem ser parte de uma fuga ou um alento para aquele que a consome. Durante todo o período medieval a acídia era um dos pecados capitais a sua abordagem se referia diretamente a uma tristeza excessiva, incapacitando o ser humano de realizar as devidas tarefas para com Deus. Hoje poderíamos compará-la com a depressão e até com a ociosidade não criativa. Jean Lauand (2000) argumenta que a substituição da acídia pela preguiça trouxe um empobrecimento de significado a esse da importância e da amplitude desse pecado, uma vez que a acídia medieval – e os pecados dela derivados – propiciariam uma clave extraordinária precisamente para a compreensão do desespero do homem contemporâneo (daí a necessidade do uso de substâncias que alterem sua realidade); já a preguiça se atém apenas ao fato de não se estar propício ao trabalho.

[13] No filme, a palavra escrita na cena do crime é Pride (em inglês, orgulho), porém na versão brasileira Pride foi traduzida como vaidade. De fato, o orgulho foi um dos pecados capitais, ainda quando a lista era de oito pecados. São Tomás de Aquino foi o responsável por compilar a lista até chegar ao número sete, incluindo o orgulho como uma das ramificações do pecado da vaidade (AQUINO, 2001, p. 68).

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Referências

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ALIGHIERI, Dante. Purgatório: A Divina Comédia. Trad. Hernâni Donato. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

AQUINO, São Tomás de. Sobre o Ensino (De Magisto). Os Sete Pecados Capitais. Tradução e estudos introdutórios. Luiz Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 63-133.

BASCHET, Jérôme. A Lógica da Salvação. A Civilização Feudal: Do ano mil à Colonização da América. São Paulo: Globo, 2000, pp. 374-385.

ASSMANN, Hugo; HINKELAMMERT, Franz J. A Idolatria do Mercado: Ensaio sobre economia e teologia. Coleção Teologia e Libertação. São Paulo: Vozes, 1989.

DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos 13-18). São Paulo:EDUSC, vol. I., 2005.

FREUD, Sigmund apud BAUMAN, Zygmunt. O Mal estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

GALVÃO, Antônio Mesquita. A Crise da Ética: O neoliberalismo como causa da exclusão social. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

GUINNESS, Os Sete Pecados Capitais: Navegando através do caos em uma era de confusão moral. Tradução Augustos Nicodemos. São Paulo: Shedd Publicações, 2006.

JAMESON, Frederic. Pós-Modernidade e a sociedade de consumo. São Paulo: Novos Estudos CEBRAP, nº12, pp. 16-26, jun 1985.

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