1. Introdução

Este trabalho busca investigar, a partir do contexto musical brasileiro, os reflexos do movimento de contracultura, originário dos Estados Unidos ao longo dos anos sessenta. A palavra “reflexos” foi utilizada inicialmente para enfatizar a incidência dos princípios contraculturais que se propagaram sob variadas formas aqui no Brasil. Um destas foi através da música.

A motivação para construir um texto a respeito deste tema assegura-se em três aspectos. O primeiro é de caráter subjetivo. Através de inúmeras experiências pessoais, a visão de mundo do pesquisador acabou tendo influências que tornaram interessantes a opção pelo assunto. O segundo é de ordem conceitual. Durante as primeiras leituras, chegou-se a conclusão que o termo contracultura apareceu correlacionado com a idéia tradicionalmente negativa de “cultura de massa” ou “alienada”. E o último está ligado à produção bibliográfica. No decorrer da produção do trabalho, a maior dificuldade caracterizou-se pela falta de referências sobre o tema no Brasil, portanto, considerou-se uma necessidade por parte da pesquisa, colaborar no preenchimento desta lacuna.

Além da investigação musical vista de um ângulo mais amplo, existem outras metas a serem atingidas, a saber, em que pontos específicos pode-se observar o reflexo da orientação contracultural no Brasil a partir de pequenos trechos da letra de algumas canções escolhidas; em que medida é aceitável a visão da relação da contracultura com “cultura de massa”, e quais as heranças do movimento para os dias de hoje. Para construir algumas respostas, serão utilizadas mais objetivamente as bibliografias que se teve acesso (incluindo as virtuais) e a experiência individual do pesquisador. Tendo todos estes elementos como horizonte, a contracultura será aqui apresentada dentro de uma lógica dialetizada, em que ela ocupa o lugar de negação a um mundo em ponto de convulsão devido à Guerra Fria e às ditaduras constituídas no Ocidente.

Para discutir os reflexos da contracultura no Brasil, impõe-se, antes de mais nada, definir os limites do termo a ser usado. Quando se pensa em contracultura verificam-se duas possibilidades de designação. A primeira engloba todos os movimentos culturais de contestação promovidos em escala mundial pela juventude, especialmente ao longo dos anos sessenta e setenta. E a segunda refere-se a uma visão de mundo extremamente crítica em relação aos valores ocidentais modernos, que ultrapassa o momento histórico correspondente. No presente ensaio o primeiro significado será utilizado com maior freqüência, ficando o último como peça fundamental das considerações finais.


2. O surgimento histórico da contracultura

Contracultura. Conceito inventado pela imprensa norte-americana com o objetivo de enfatizar uma característica de oposição aos padrões culturais do Ocidente, praticada pelos jovens através de certas formas de manifestação. Faz-se necessário destacar que os principais teóricos[1] do movimento possuíam uma idade relativamente avançada, o que demonstra a participação não exclusiva da juventude. Os meios de expressão eram essencialmente a música (particularmente o rock), as Universidades (por meio do antiacademicismo), o orientalismo, as drogas e o ideal hippie.

A origem da rebeldia tem raízes na tradição boêmia beatnik dos anos cinqüenta, ligada à uma espécie de anarquismo romântico que apoiava, através de um literatura descontente, o desengajamento da política partidária tradicional. Essa relação com o anarquismo encaminharia um importante canal não institucionalizado de comunicação para grupos marginais como os negros, as mulheres e os homossexuais. Vários protestos encabeçados pelo black power, gay power, flower power e women's lib, demarcam fortemente a presença da contracultura como foco alternativo aos espaços políticos já conhecidos até então.

Os momentos mais representativos do movimento, em nível internacional, foram o Maio de 68, na França, e o festival de Woodstock, em 1969. O acontecimento francês, iniciado pela juventude universitária, iluminou alguns princípios da contracultura: “O sonho é realidade”, “É proibido proibir”, “O álcool mata, tomem LSD”. E no final da década de sessenta, o rock 'n roll já havia se disseminado amplamente em quase todo o mundo. Seus precursores foram, sobretudo, os negros como Chuck Berry e Little Richard, responsáveis por um balanço frenético ao som de guitarras estridentes. O público destes músicos mais velhos era uma juventude branca contestadora em relação à sociedade norte-americana materialista. Depois disso surgiria o rock, feito por jovens para jovens em que bandas como Beatles, Rolling Stones e cantores como Bob Dylan (considerado um dos gurus da contracultura) marcaram época.

Como é possível observar, a música afirma-se definitivamente como um grande instrumento de crítica aos valores vigentes e que vai ter reflexos diretos no Brasil, como veremos mais adiante. Nos estudos de história mais atuais, o componente musical vem aparecendo freqüentemente nos trabalhos de inúmeros historiadores, pois esse tipo de análise aponta que a música se coloca, por vezes, como um agente autêntico de expressão de idéias. Historicamente, todo esse sentimento se concretizaria no festival de Woodstock, nos Estados Unidos, em 1969. A "paz" e o "amor", em contraposição à guerra corrente no Vietnã, foram os ideais defendidos pelos seus participantes. Até hoje, muitos intelectuais de esquerda consideram essa experiência como um momento de alienação em massa, mas foi a partir dali que o movimento mundial pela paz ganhou força e segue vivo na idealização das esperanças humanas.

Os hippies foram os grandes líderes desta caminhada. Com suas roupas coloridas e seus cabelos compridos, os "ripongas" proclamavam o combate à repressão, exteriorizada através da constituição das famosas comunidades alternativas. Em termos teóricos, o orientalismo fez muitos adeptos entre os hippies, já que esta filosofia valoriza a busca pela libertação individual dos seres, e que para alguns, também podia ser conseguida através das psicodelias proporcionadas pelos alucinógenos. Era o momento do "drop out", isto é, o momento em que se "caía fora" do sistema. É nessa perspectiva que vai se construindo rapidamente o universo da contracultura.

Como complemento, é interessante ressaltar que, além da música, um outro aspecto que vai desembocar aqui no Brasil é a atuação dos poetas e escritores, que vão, através das publicações alternativas, organizar formas de combate ao autoritarismo ditatorial, assim como valorizar a ligação da cultura nacional com a estrangeira. O interessante é a relação de contradições que se engendra nesse processo, pois é exatamente contra os ditames externos que muitos pensadores brasileiros vão se colocar, como meio de abrir espaços para a difusão da cultura nacional. A busca por novos campos de expressão (luta oriunda principalmente da contracultura européia), entra em choque com a necessidade brasileira de mostrar pro próprio país a originalidade não só da música como da arte brasileiras. Como superação dessa contradição, veremos mais a frente o trabalho feito por Gilberto Gil e Caetano Veloso ao mesclarem as tão combatidas guitarras elétricas, que simbolizavam a dominação imperialista, e as letras insuperáveis na crítica moderna, e mais especificamente à situação brasileira dos anos sessenta e setenta. Em linhas gerais, a música é o grande pilar em que este trabalho se apóia para construir uma interpretação em relação aos modos de como a contracultura refletiu no Brasil. O interesse por esta manifestação cultural advém da análise bibliográfica, que contribuiu para indicar que foi a partir dela que a contracultura apareceu de forma mais efetiva no Brasil.


3. As formas de expressão da contracultura na música brasileira

No instante em que diferentes estilos musicais apareciam nos palcos brasileiros já no período da ditadura militar, uns estabelecendo uma tentativa de valorizar as tradições mais populares (samba, frevo e choro), e outros criticando a Bossa Nova que em meados da década de sessenta já não "desafinava"[2] tanto quanto em seu início, surgia uma geração de novos compositores oriunda da Bahia, que buscava fugir do purismo nacionalista, retomando o sentido impactante causado por Tom e Vinicius na década anterior, com suas sétimas e nonas aplicadas ao violão.

Influenciados pela idéia de contínua “evolução” da música brasileira, Caetano Veloso e Gilberto Gil passaram a incorporar guitarras nas suas canções, assimilando explicitamente uma nova identidade gerada no circuito internacional da contracultura. O tropicalismo, termo que se refere a uma espécie de mescla esteticamente antropofágica entre elementos modernos estrangeiros e as experiências de cunho regional ou local[3], ganhava dois de seus grandes representantes.

Do ponto de vista analítico, resolveu-se estudar duas letras de composições feitas por músicos que tiveram alguma relação direta ou indireta com o movimento tropicalista ou com os ideais contraculturais. A justificativa para essa escolha se efetiva, primeiro, por ser principalmente através de canções que o movimento contracultural defendeu seus ideais e, segundo, porque as letras ajudam a visualizar de forma mais objetiva as relações dos artistas brasileiros com os princípios da irracionalidade, do antiacademicismo, da insegurança e da nova forma de fazer política, identificados com a contracultura. Saliente-se aqui que não se deve compreender o Tropicalismo como um movimento totalmente adepto da contracultura. A questão central é entender que a alguns dos seus representantes mantinham vinculação com pensamentos característicos do contraculturalismo, mesmo sem defendê-los abertamente.

As duas letras a serem analisadas são Alegria, Alegria, composta em 1967, de Caetano Veloso, e a Balada do Louco, feita em 1972 por Rita Lee e Arnaldo Baptista, ambos do conjunto Os Mutantes, grupo que assumiu uma atitude relativamente autônoma em relação ao Tropicalismo. As letras completas das duas canções estão em anexo.

Antes de mais nada, cabe destacar que, em termos musicais, o Festival Internacional da Canção, realizado em São Paulo, em 1968, foi essencial. Realizado dentro de um contexto de repressão e de censura prévia levada a cabo pelo regime militar, o evento marcou um momento de grande debate cultural e político acerca da situação brasileira. E foi nele que irromperam as guitarras da banda de Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Baptista, que acompanharam o clássico do compositor baiano: É proibido proibir. Aliás, foi neste festival que Caetano foi vaiado. Ao cantar de forma desafinada e fazer referências à revolta da juventude francesa na letra desta canção, a resposta do público juvenil foi extremamente hostil. Irritado com a situação, Caetano soltou sua célebre frase: “Se vocês em política forem como em estética, estamos feitos”. Marcos Napolitano, em belo artigo,[4] ainda destaca os festivais de 1966 a 1968 como símbolos de oposição à ditadura brasileira. Para a análise a seguir, irá se recorrer a frases específicas de cada uma das canções.


3.1. - Alegria, Alegria (Letra completa no Anexo A)

Caminhando contra o vento / sem lenço sem documento / no sol de quase dezembro / eu vou”. [Grifo nosso]

Partindo da letra é possível perceber alguns elementos importantes. Que vento será este? Ao que parece, este designa a representação do contexto histórico, isto é, do regime de ditadura militar já em vigor desde 1964. A luta a favor da liberdade tem expressiva relação com a contracultura, funcionando como uma das suas principais bandeiras. O regime brasileiro, em oposição à esta idéia, era fundado no autoritarismo. Talvez aí possa estar um sentido para a frase “caminhar contra o vento”.

Já na frase "sem lenço sem documento", a sensação que se obtém é de uma certa despreocupação. Imagina-se que um "documento", no sentido burocrático, estabelece uma indispensável identificação com o próprio "sistema", pois é produzido por ele com o objetivo de manter as pessoas como uma parte do mesmo. Portanto, ao não necessitar dele, este indivíduo se desliga implicitamente da relação de submissão orientada pelo "establishment", sem se preocupar com as conseqüências. Trazendo essa noção para o presente, é perfeitamente questionável como seria a vida de uma pessoa "não identificada"? Iluminando brevemente esta questão, Arbex Jr. assinala:

As máquinas da imagem (a televisão, o computador, as câmaras portáteis de filmar, as máquinas fotográficas etc.) permitem que todas as atividades do cotidiano sejam transportadas para as telas e transmitidas por redes mundiais de informações (como a internet); os radares "inteligentes", as câmaras de vigilância contra roubos nas lojas, os sistemas eletrônicos de segurança em bancos e zonas de segurança militar transformam a imagem em dígitos; os códigos de barra dos cartões de crédito, os sistemas alfanuméricos de identificação, a rede de informações sobre o crédito pessoal transformam a vida em um feixe de dados. A cada momento, e em todos os momentos, algo nos diz que fazemos parte de um imenso fluxo digital, de um gigantesco banco de dados [Grifo nosso].[5]

Fechando este confronto de contradições, cabe salientar que, independente das complicações sociais e políticas de uma nação atrasada do ponto de vista tecnológico e possuidora de uma cultura distinta das grandes potências econômicas, o Brasil procurava se ajustar a este universo do qual não fazia parte. Os caminhos desta transformação foram traçados por meio de uma grande influência cultural norte-americana, baseada no consumismo e no desenvolvimento tecnológico. Inclusive é nesta afluência que a contracultura descobre uma via de chegada ao país. Mesmo sendo vista como um produto de consumo e mais tarde se tornando efetivamente um produto, a contracultura serviu, entre outras funções, para dar uma orientação crítica à música brasileira. Jogando com elementos nacionais e estrangeiros, o importante, como demonstra a letra, é “ir” em frente, independente das dificuldades criadas ou impostas.


3.2. - Balada do Louco (Letra completa no Anexo B)

“Dizem que sou louco / por pensar assim” [Grifo nosso]

Este trecho da canção “Balada do Louco” abre um vasto campo de análise histórico-filosófica. Na 11ª edição do Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, o adjetivo louco designa, entre vários outros significados, um extremamente representativo para o presente estudo: “aquele que perdeu a razão”. No questionamento sobre o que seja razão, as respostas podem ser inúmeras e bem diferentes. Mas para dar-lhe um sentido mais específico, ela será aqui concebida como uma faculdade que proporciona conhecer o mundo circundante. Considerando a sobrevivência do racionalismo científico do século dezenove, a razão já foi (e em muitos casos, ainda é) colocada como o único meio aceitável para se chegar à “verdade”. Por vezes, a “civilização” e o “progresso” eram tidos como criações desta “razão”. Para a crítica contracultural, estes conceitos referiam-se à doenças do mundo, às quais seus princípios se colocavam contra. Portanto, quem se posicionava contra a “civilização” e às suas formas de funcionamento, não podia ser admitido como um “normal”. O mundo supostamente “racional e científico” produzia uma de suas antíteses: a contracultura.

“Se eles têm três carros / eu posso voar” [Grifo nosso]

Neste trecho há uma crítica à sociedade que se preocupava somente com as conquistas materiais, deixando em segundo plano as espirituais. Para quem podia “voar”, de que adiantariam três carros? O verbo voar pode assinalar uma diversidade de significados metafóricos. Tendo em vista a constituição física do homem, ele não consegue voar objetivamente, mas através da imaginação isso lhe é permitido. A possibilidade de voar é compreendida então, como um aumento das capacidades humanas configurado a partir da imaginação. E ao se colocar a imaginação como uma categoria não-racional, ela passa a determinar uma valorização do sentimento e da sensibilidade como formas potenciais de consciência:

[...] A consciência racional, como a chamamos, constitui apenas um tipo especial de consciência, enquanto, a seu redor, dela separadas por um tenuíssimo biombo, jazem formas inteiramente diferentes [...]. Nenhuma concepção do universo em sua totalidade que ignore essas outras formas de consciência pode ser definitiva [...]. Elas impedem um fechamento prematuro de nossas contas com a realidade.[6]

A contracultura requisitava o fim da hierarquia que sentenciava a razão como instância superior à imaginação ou à “irracionalidade”, no campo do pensamento. Historicamente, a idéia de um mundo imaginário, ou do “mundo da lua”, sempre esteve atrelada à loucura, enfim, à irracionalidade. Na tentativa de ilustrar que eram apenas instâncias diferentes, a geração beat afirmava a importância da “irracionalidade” como forma de se opor à forma “correta”, ou “racional” de pensar. Voar podia (e pode), enfim, ser melhor que ter três carros.

Se eu posso pensar que deus sou eu” [Grifo nosso]

Partindo para a última parte da análise da letra, tratar-se-á de um contundente desafio lançado a um dos pilares do pensamento ocidental: a religião cristã. Intermináveis discussões iniciadas ainda no século IV d.C. sempre procuraram encontrar uma saída para a natureza de Cristo. O arianismo, primeira grande heresia, alegava que Pai e Filho fossem da mesma substância; em outras palavras, que Jesus não era Deus. Em contrapartida, o nestorianismo defendia que Maria não era mãe de Deus, pois foi apenas no nascimento de Jesus que as duas naturezas uniram-se nele (a divina e a humana). Depois disso aparece o monofisismo, decretando Cristo como único em duas naturezas.[7] Olhando atentamente, os simples mortais simplesmente não surgem no debate. Os homens podem ter sido criados por Deus, mas eles, para a religião cristã, não são deuses. Não só por desconsiderar tal tese, a contracultura adotou espiritualmente as religiões orientais. Em uma obra intitulada “O homem em busca de Deus”, há uma citação retirada da Enciclopédia de Crenças do Mundo, produzida na Inglaterra, que contribui para visualizar o desprezo dos ocidentais com o budismo oriental:

O primitivo budismo aparentemente não levou em conta a questão de Deus, e certamente não ensinou e nem exigiu a crença em Deus. Em sua ênfase em cada pessoa procurar a salvação por si mesma, voltando-se para a sua própria mente ou percepção em busca de iluminação, o budismo é realmente agnóstico, se não ateísta. Na tentativa de livrar-se dos grilhões de superstições do hinduísmo e seu atordoante rol de deuses míticos, o budismo pendeu para um outro extremo. Ignorou o conceito fundamental de um Ser Supremo, por cuja vontade tudo existe e opera. [Grifo nosso].[8]

Estamos diante de uma reveladora ilustração do que significa eliminar a hierarquia na qual, para os cristãos, Deus é superior aos homens. Quando a letra de Balada do Louco anuncia que “eu também sou deus”, bate de frente com o cristianismo dominante. Nunca é demais chamar a atenção para o fato de que a pretensão não é afirmar categoricamente que o fragmento da letra aqui estudado tem como objetivo estabelecer uma relação direta e inerente com o orientalismo, mas apenas reafirmar que esta expressão, cunhada por dois compositores oriundos de um país cristão como o Brasil, não condiz com a mais comum tradição do cristianismo, que afirma a existência de um Deus supremo que está acima dos homens. O budismo, ao contrário, ensina o caminho à bondade e à sabedoria sem advogar a crença em um Deus ou num Criador, possibilitando uma salvação na qual cada um é seu próprio salvador, isto é, seu próprio Deus.[9] Logo, aí está a identificação da letra com mais uma característica da contracultura.

Certamente, depois de uma breve discussão como esta, o sentimento que permanece é o da necessidade de continuar. Assim como foram trabalhados aspectos de apenas duas canções, muitas outras (exemplo: Proibido Proibir, A hora e a vez do cabelo nascer, Vapor barato, O contrário do nada é nada, etc.) ainda podem ajudar no restabelecimento desta legítima ligação histórica da música brasileira com os princípios da contracultura.


4. Considerações finais

Evidentemente que a própria relação do Tropicalismo, a fabulosa produção literária tanto nas categorias jornalísticas quanto poéticas,[10] e a constituição de inúmeras comunidades alternativas desde os anos sessenta até agora,[11] também devem ser levadas em conta para futuras pesquisas sobre contracultura no Brasil, mas por conta do espaço, elas não foram aqui exploradas.

Ao longo de todo o trabalho, a maior dificuldade foi a de encontrar livros sobre o tema (não só da música brasileira com a contracultura, mas sobre o movimento em geral). Cláudio Willer, presidente da UBE - União Brasileira de Escritores, em artigo publicado recentemente, já tinha essa percepção:

Já o todo no qual se inserem as manifestações brasileiras aqui discutidas, ou seja, a contracultura e rebeliões juvenis dos anos 60 e 70, ganhou uma bibliografia fragmentária e lacunar, apesar de enorme. Não existe um relato abrangente daquela interseção de cultura e política, das tentativas de transformar a vida e a sociedade. Ainda há uma história a ser escrita, de quando e como essa rebelião pareceu converter-se em revolução.

Além desse entrave, existe um ainda maior, que diz respeito à certas interpretações. Para explicar isso, é necessário destacar que no momento da decisão do tema, após a leitura de um fragmento da obra “Movimentos Culturais da Juventude”, surgiu um pergunta enigmática: “Os anos 60 no Brasil: engajamento ou cultura de massa”? Ao ler a pergunta, veio à tona a introdução feita por Roberto Machado, para o livro Microfísica do Poder. Em resumo ele dizia que um dos objetivos de Michel Foucault era neutralizar a idéia que faz da ciência um conhecimento em que o sujeito vence as limitações de suas condições particulares de existência instalando-se na neutralidade objetiva do universal.[12] Ao observar o questionamento, interpretou-se que ali estava escancarado um enquadramento não neutro, o que, como atesta Foucault, não seria o problema, mas o preconceito captado neste enquadramento é problemático.

Engajamento. Palavra que soa tão bem aos ouvidos dos políticos profissionais. Cultura de massa. Estas trazem implícitas um ar aparentemente negativo. Histórico, é claro, mas negativo. Como se pôde perceber ao longo de todas as leituras, a contracultura vem sendo constantemente relacionada com o segundo. Por que? Por que pensar dentro de uma ótica cartesiana em que "cultura de massa" é negativa, e que, portanto, contracultura, por estar ligada a movimentos de massa, deve ser escondida, mascarada, representada como algo que não conseguiu produzir nada objetivamente ou "concretamente" ao não ser vender livros e músicas com esperanças baratas? Como já foi salientado, aí estava uma das motivações para escrever: tentar construir uma argumentação não com o objetivo de negar que a contracultura tornou-se uma cultura de massa, mas que tal conceito não deve ser visto como algo necessariamente negativo e muito menos que a contracultura tenha sido apenas isto. A contracultura esteve presente no Brasil, principalmente através da música, e talvez essa lacuna bibliográfica tenha parte de sua explicação neste preconceito ainda enraizado com relação à sua história:

Além de alienação, duas outras palavras são muitos utilizadas para diminuir a contracultura: massificação e consumismo. Geralmente são usadas de modo elitista e preconceituoso. Nelas está subentendido que o que é feito em série, em grande quantidade, é ruim. É de baixa qualidade. Em outras palavras, o que é da massa não presta.[13]

Todas as grandes revoluções imaginadas, só serão possíveis com a participação de uma grande quantidade de pessoas que compartilhem ideais comuns, e, sabe-se que nem por serem movimentos de massa, devem ser encaradas necessariamente como algo ruim ou negativo. Logo, não estaria aí um grande mito? Para a melhor compreensão do processo histórico é imperativo “desnaturalizar” certos clichês que se costumam utilizar no estudo da história. Para além destes reducionismos, propõe-se que a contracultura possa também ser vista como um processo de caráter internacional, que teve como conseqüências importantes a luta por uma sociedade menos repressora em relação aos padrões de existência dos homens, em que pese o fato de mais tarde ter sido transformada num produto, assim como ocorreu e ocorre com a grande maioria dos movimentos de lá pra cá.

Em termos de materialismo histórico, há uma necessidade gritante de compreendermos a importância da “superestrutura”. Edward Thompson já alertava que não adianta prender-se à velha divisão base e superestrutura, pois elas simplesmente pertencem a uma mesma realidade.[14] A contracultura, em termos nacionais, aponta que se todos fossem apenas corpo e razão, talvez muitos não sobreviveriam à ditadura militar. Uma das formas de respirar dentro deste sistema foi pensar diferente, acreditar em coisas que para muitos é ainda apenas uma esperança. É certo que esses sentimentos não são observáveis ou quantificáveis como bem deseja a "ciência", mas eles têm uma grande importância para os seres humanos. Eles é que possibilitam acreditar em mudanças. Imaginemos o que seria da humanidade se ela não pudesse fazer isso: acreditar em mudança? Como já dizia Marx, as mudanças também ocorrem devido à necessidade. E não é mais do que necessário mudar o que aí está?

Por estas e outras, a contracultura, seja ela vista como um mascaramento da ideologia dominante, como um produto de consumo, como alienação, como um importante momento histórico, ou como um conjunto de princípios de esperança, ela ainda existe. Para observar isso basta enxergar os movimentos de luta pela igualdade de direitos das mulheres, dos homossexuais, dos negros e dos movimentos pacifistas. Em parte, são heranças também da contracultura.

Também se deve admitir que ela teve seus erros e acertos, mas há de se ter em mente que, para além dos aspectos históricos aqui debatidos, ela tem sua relevância atual enquanto visão de mundo, enquanto modo de contestação dos padrões.

A síntese das contradições de um mundo em convulsão com o nascimento da contracultura nos anos sessenta, pode ser vista hoje na assimilação de tecnologias de um mundo “moderno” por parte de movimentos sociais que buscam difundir os ideais de paz entre os homens e de liberdade para as minorias.

Ao escolher este tema, não se quis defini-lo como um “objeto”, pois este trabalho tem motivações humanas, assim como o processo histórico em estudo tem parte de seu desenvolvimento calcado nelas. Além disso, qualquer trabalho produzido por aqueles que pretendem construir algum conhecimento, não pode se privar desta identificação entre tema e história individual de cada pesquisador. Assim, quando entendida dessa perspectiva científica mais flexível, a contracultura não está viva só no Brasil, mas no coração de inúmeros indivíduos que lutam por um outro mundo possível.


5. Referências bibliográficas

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BRANDÃO, Antônio; DUARTE, Milton F. Movimentos culturais da juventude. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 1990.

DUCELLIER, Alain; KAPLAN, Michel; MARTIN, Bernadete. A Idade Média no Oriente: Bizâncio e o Islão, dos bárbaros aos otomanos. Lisboa: Dom Quixote, 1994.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

HOLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1986.

MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

NAPOLITANO, Marcos. Os festivais da canção como eventos de oposição ao regime militar brasileiro (1966-1968). In: REIS FILHO, Daniel Aarão (org.). O golpe militar e a ditadura 40 anos depois (1964-2004). São Paulo: EDUSC, 2004.

PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1986.

THOMPSON, E. P. Folclore, Antropologia e História Social. In: NEGRO, Antônio; SILVA, Sérgio. As peculiaridades dos ingleses e outros ensaios. Campinas: Ed. da Unicamp, 2001.

TORRE DE VIGIA, 1990. O homem em busca de Deus. São Paulo: Sociedade Torre de vigia de Bíblias e Tratados, 1990.

WACHOWICZ, Lílian Anna. O método dialético na didática. Campinas: Papirus, 1989.

WILLER, Cláudio. Das rebeliões românticas à contracultura: uma história a ser escrita. 2005. Disponível em: http://www.secrel.com.br/jpoesia/ag1314willer.htm. Acesso em: 15. dez. 2005.


Citações

[1] Entre eles estão Allen Ginsberg, William Burroughs, Jack Kerouac, Norman Mailer e McLuhan.

[2] O sentido da palavra desafinar diz respeito a uma certa inovação causada pela MPB no instante do seu surgimento. Ela funcionou como uma espécie de “desafinação” em relação às harmonias mais comuns da música brasileira.

[3] BRANDÃO, Antônio e DUARTE, Milton F. 1990. p. 71.

[4] NAPOLITANO, Marcos. 2004. p. 203-216.

[5] ARBEX JÚNIOR, José. 2001, p. 71.

[6] WILLIAM, James (apud PEREIRA, Carlos Alberto M.). 1986, p. 23.

[7] DUCELLIER, Alain; KAPLAN, Michel; MARTIN, Bernadete. 1994, p. 44/46.

[8] TORRE DE VIGIA, 1990, p. 159-160.

[9] Ibid., p. 145.

[10] Diferente do que muitos pensam, a contracultura também teve seus reflexos na produção literária brasileira. A base para esta afirmação advém da um extenso trabalho que vem sendo desenvolvido por Patrícia Barros em âmbito universitário. Ao constatar a enorme lacuna em relação a este tipo de estudo, deve-se valorizar aqueles que ajudam no sentido de torná-la menor. Cf. BARROS, Patrícia. A imprensa alternativa da contracultura no Brasil (1968-1974): Alcances e desafios. São Paulo: UNESP, 2005.

[11] Quem deseja conferir isso de perto, basta participar de alguma edição anual do Fórum Social Mundial, que vem ocorrendo em várias localidades do mundo, e que deve voltar ao Brasil em 2012. O Acampamento da Paz é rico nesse sentido. Por experiências tidas em 2005, observa-se que muitas destas comunidades defendem a liberdade, o desligamento da ação política tradicional, a relação com modos de pensar orientais, a valorização da sensibilidade humana, e, obviamente, a paz.

[12] MACHADO, Roberto. In: FOCAULT, Michel. 2004, p.XXI.

[13] WILLER, Cláudio. 2005.

[14] THOMPSON, E. P. In: NEGRO, Antônio; SILVA, Sérgio. 2001. p. 256

Anexo A
Alegria, alegria
Caetano Veloso
1967

Caminhando contra o vento
Sem lenço, sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou

O sol se reparte em crimes,
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou

Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não

Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço, sem documento,
Eu vou

Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone
No coração do Brasil

Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou
Por que não, por que não...


Anexo B
Balada do Louco
Arnaldo Baptista e Rita Lee
1972

Dizem que sou louco por pensar assim
Se eu sou muito louco por eu ser feliz

Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz

Se eles são bonitos, sou Alain Delon
Se eles são famosos, sou Napoleão
Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz

Eu juro que é melhor
Não ser o normal

Se eu posso pensar que Deus sou eu
Se eles têm três carros, eu posso voar
Se eles rezam muito, eu já estou no ar
Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz

Sim sou muito louco, não vou me curar
Já não sou o único que encontrou a paz
Mas louco é quem me diz