OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E A UNIÃO HOMOAFETIVA: UMA ANTINOMIA DA NORMA MAXIMA ESTATAL 

Ana Carolina Albarelli.

Erwin Rodrigues Ricci.

Sumário: Introdução; 1. Histórico, 2. A União homoafetiva e o Direito atual; 3. Princípio do respeito à dignidade da pessoa humana, 4. Princípio do pluralismo familiar ou da liberdade de constituição de uma comunhão de vida familiar, 5. Princípio da afetividade como legitimador da união homoafetiva, Conclusão.

Introdução

As mudanças sociais são inevitáveis, e por conseqüência destas, o Direito deve estar em constantes modificações. Este, deve sempre acompanhar a sociedade, sob pena de se tornar ineficaz e até mesmo injusto. A família é a entidade base de uma sociedade, por conseguinte, quanto esta muda, a sociedade também se modifica. O Direito, como forma de proteção prestada pelo estado à sociedade, visa assegurar que sejam respeitados os direitos dos membros desta sociedade – seja em caráter individual, ou coletivo- utilizando-se para isso de normas e princípios, estes últimos, previstos e assegurados pela força da nossa carta magna, a Constituição Federal.

No que tange as mudanças na entidade familiar, temos atualmente presente diversas mudanças quanto às formas as que essa forma na sociedade. Na atualidade, o homossexualismo passou de mera opção sexual, ou como seria mais certo afirmar, opção afetiva, e esta por vir a ser uma forma de se constituir família. Faz-se presente na nossa sociedade verdadeiras famílias constituídas na união entre pessoas do mesmo sexo. Estas se baseiam não em laços sanguíneos ou em laços matrimonias, mas sim em laços afetivos que traspõem o sexo biológico.

Não obstante a mudanças sociais no que diz respeito à entidade familiar, tem-se a necessidade de mudanças no Direito que visem a assegurar os direitos destes, que são socialmente presentes, mas não legalmente reconhecidos. Apesar de não haver expressa previsão legal e reconhecimento jurídico da existência destes, podemos ver tal reconhecimento – mesmo que não de forma expressa – com base na análise de princípios constitucionais como o da afetividade, o do respeito a dignidade da pessoa humana e o do pluralismo familiar ou da liberdade de constituição de uma comunhão de vida familiar.

1. Histórico

            Historicamente, constata-se a presença de relacionamento entre pessoas do mesmo sexo em diversos momentos. Como na Grécia antiga, que claramente aceitava a postura homossexual, tal como descrito na mitologia grega e até mesmo por Platão no discurso de Aristófanes. A homossexualidade nesta cultura possuía contornos pedagógicos, ao estreitar a relação entre tutor e aprendiz estabelecendo uma hierarquia entre os mesmos e fortalecendo a sincronia de energias. Era visto também como forma de afirmação social, restrita á ambientes cultos, como manifestação legítima da libido, verdadeiro privilégio dos bem nascidos[1].

            Em Roma, a sodomia era permitida em relações hierárquicas, e admitida como natural, quando praticada ativamente. Já o pólo passivo era ligado á idéia de impotência política.

            Já na Idade média modifica-se essa postura de permissividade deste tipo de prática sexual. A igreja católica considerava tais atos como aberração, perversão. Já que nos tratados bíblicos contém a expressa proibição deste “pecado da carne”, toda atividade sexual com função diversa da procriadora é pecado, portanto deve ser severamente punida, inclusive com penas de morte. O sexo, de qualquer das maneiras, desligou-se do prazer, que era visto como transgressão, sendo restrito aos fins procriativos. Sendo as condutas diversas severamente punidas pela Santa inquisição.

            A partir da expansão do Cristianismo, os homossexuais vêm sofrendo os reveses do preconceito. No entanto, com o declínio de poder da igreja católica, a realidade pouco a pouco ganha novos contornos, com a promoção gradual do homossexualismo não como transgressão, mas como simples escolha. A dessacralização do casamento, com o advento do papel do estado na oficialização das uniões, com também o reconhecimento de outras formas de família como a monoparental, foram contribuições decisivas para a crescente aceitação das relações homossexuais.

2. A União homoafetiva e o Direito atual

             Hoje, outro aspecto que também deve ser abordado diante de um tema tão controverso, corresponde aos aspectos político-sociais da questão. Sim, pois ao vivermos sob a égide de um estado democrático de Direito. Dito este democrático, deve, portanto, assegurar a liberdade de seus participantes desde que o faça sem prejuízo aos demais, essa segurança deve ser promovida em nome do respeito aos Direito fundamentais

 Aflora como fundamental o Direito á felicidade. Na era dos Direitos humanos, não pode o estado deixar de cumprir sua real finalidade, fazer com que a família exerça o seu papel de garantir a cada um de seus membros o direito de ser feliz. Um estado que não garanta tal promessa a todos deixa de cumprir uma obrigação ética[2]

            A promoção de medidas estatais que visem resguardar os novos contornos do conceito de família, é não só um direito fundamental, extrapola esse sentido, é também uma obrigação estatal de promover o cumprimento desse direito, proporcionando aos participantes deste estado a segurança jurídica que lhes é devida, através da adaptação progressiva do direito á necessidade de seus cidadãos.

Lévy-Bruhl chega até a dizer que o traço dominante da evolução da família é a sua tendência e tornar o grupo familiar cada vez menos organizadoe hierarqueizado, fundando-se cada vez mais na afeição mútua, que estabelece plena comunhão de vida.[3]

O direito fora criado com o sentido de organização e delimitação de direitos e deveres, devendo este resguardar seus caracteres principiológicos, e quando estes princípios estiverem sendo feridos, remodelar o que o está atingindo.

            Deste modo, a homossexualidade, presente ao longo de toda história e vista sobre diferentes aspectos ao longo desta. Venerada ou odiada. Necessita, neste momento de controle estatal da organização social, de uma presença deste para ordenar deste tipo de relação. Sendo sua omissão uma clara agressão proteção a dignidade da pessoa humana e a liberdade de escolha, um dos pilares do conceito de Direito Fundamental. Assim como subsidiariamente aos princípios do Direito de família como pluralismo familiar e afetividade.

Em suma, deve-se reconhecer também a necessidade da constitucionalização do Direito de Família, pois “grande parte do Direito Civil está na Constituição, que acabou enlaçando os temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade.[4]

            E assim, iremos apresentar, no presente trabalho, os aspectos constitucionais da necessidade de organização pelo estado das uniões homoafetivas, uma realidade que merece e deve ser abordada por respeito à liberdade, a dignidade no que tange á constituição federal, para os princípios constantes nos direitos fundamentais estejam presentes na legislação da família.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

3. Princípio do respeito à dignidade da pessoa humana

O princípio constitucional do respeito à dignidade da pessoa humana é enumerado como um princípio fundamental e vem a ser um dos mais importantes – se não o mais importante – para o Direito de Família. Este está previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal brasileira; e vem por promover uma nova forma de se considerar e de se tutelar juridicamente as relações dadas no Direito de Família.

Pode-se ter tal importância devido à mudança quanto ao enfoque jurisdicional que a previsão deste principio constitucional provocou no Direito de Família. Agora, temos a prestação da tutela estatal de modo individualizado quanto aos membros de uma família, não se buscando mais a simples tutela à instituição familiar (como era feito com base no direito antes da constituição de 1988), mas sim de cada individuo que compõe essa família, restando respeitado sua dignidade e vários outros direitos que este enseja.

Segundo Edson Teixeira de Melo, podemos ter por estes vários outros direitos que tal princípio visa assegurar,

Os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal, que por sua vez está atrelado ao artigo 225, normas essas que garantem como direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, assim como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.[5]

Com isso, temos que no âmbito do Direito de Família, tais direitos devem ser respeitados a cada individuo constituinte da entidade familiar, não podendo tal individuo ser privados destes direitos por qualquer razão que seja, ou pela forma ou estrutura da entidade familiar a qual este participa. Ainda quanto a essa relação deste principio com tal ramo do direito ora estudado, Carlos Roberto Gonçalves nos diz que:

O Direito de Família é o mais humano de todos os ramos do Direito. Em razão disso, e também pelo sentido ideológico e histórico de exclusões, como preleciona Rodrigo da Cunha, ‘é que se torna imperativo pensar o Direito de Família na contemporaneidade com a ajuda e pelo ângulo dos Direitos Humanos, cuja base e ingredientes estão, também, diretamente relacionados à noção de cidadania’. A evolução do conhecimento científico, os movimentos políticos e sociais do século XX e o fenômeno da globalização provocaram mudanças profundas na estrutura da família e nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo, acrescenta o mencionado autor, que ainda enfatiza: ‘Todas essas mudanças trouxeram novos ideais, provocaram um declínio do patriarcalismo e lançaram as bases de sustentação e compreensão dos Direitos Humanos, a partir da noção da dignidade da pessoa humana, hoje insculpida em quase todas as instituições democráticas’.[6]

Alem da relação do princípio da dignidade da pessoa humana com o Direito de Família, pelas palavras citadas acima, podemos ter ainda a verificação que tal princípio estar por vir a tutelar as novas formas de família que vêm surgindo, decorrentes da mudança do conceito de família advindo da formação do moderno cenário familiar. E, uma dessas formas mais novas de família – a qual podemos ter como uma forma presente na nossa sociedade atual – é a união homoafetiva. Nesta, não por menos, na sua constância, deve haver o respeito a tal princípio no seu exercício.

4. Princípio do pluralismo familiar ou da liberdade de constituição de uma comunhão de vida familiar

Conforme este princípio, temos que os indivíduos de uma sociedade têm o direito de constituir uma família, a qual pode ser diversa a família matrimonial (aquela advinda do casamento), sem que haja a estes qualquer forma de diferenciação quanto ao tratamento destes. Alem das famílias matrimoniais, têm-se como outras formas de estruturação familiar as entidades familiares, sendo estas, a união estável e a família monoparental (apesar desta ultima não estar expressa no nosso Código Civil).

Com base nisso temos que as famílias constituídas através de união estável e famílias monoparentais, serão equiparadas as famílias matrimoniais; pois, segundo o principio do pluralismo familiar, apesar destas espécies de famílias serem constituídas de maneira diferentes, devem ter o mesmo tratamento legal, a mesma proteção jurisdicional. Assim, tal prerrogativa do direito baseado na aplicação deste principio nos faz muito importante, pois nos assegura a proteção de novas e mais diversas entidades familiares que podem vir a surgir.

 Quanto a tal proteção, Edson Teixeira de Melo nos lembra que “O Direito é norma da conduta social; a família, base da sociedade; a evolução desta não pode escapar à evolução do Direito, sob pena de termos normas jurídicas legítimas, mas ineficazes.”[7].

Faz-se clara que a evolução da sociedade gerou essa nova forma de família, a família nascida de uma união homoafetiva. Através de toda evolução histórica já apresentada no presente trabalho, podemos notar que esta não surgiu recentemente; mas, na nossa sociedade atual, esta vem ganhando força e expressão, tornando-se cada vez mais presente. Por conta disso, há que ser considerada a necessidade de, assim como a união estável heterossexual, a tutela jurisdicional ser prestada no que tange a união estável homoafetiva.

Contudo, para que tal tutela seja prestada, há a prerrogativa do reconhecimento legal da união homoafetiva. Assim, temos que tal reconhecimento é necessário se faz necessário com a finalidade de resguardar os direitos dos constituintes dessa nova forma de família, sob pena de haver prejuízos aos participantes desta, e estes não terem seus direitos garantidos, os quais estão previstos constitucionalmente.

5. Princípio da afetividade como legitimador da união homoafetiva

            Pelo princípio da afetividade, temos que a entidade familiar pode ser gerada não apenas no que tange a previsão legal. Segundo este princípio, a família não necessita estar prevista ou descrita legalmente, não havendo necessidade desta ser baseada em um matrimonio ou laços sanguíneos. Assim, podemos ter, com base nesse princípio, que o elemento norteador para caracterizar uma família é o afeto. Com isso, temos que o centro de gravidade das relações de família situa-se modernamente na mútua assistência afetiva, e é perfeitamente possível encontrar o núcleo afetivo em duplas homossexuais, erradamente excluídas do texto constitucional[8]

            O convívio diário, a afetividade entre os parceiros é sim um requisito de ordem subjetiva que deve corroborar para o enquadramento de uma união ao status de família. Pois estes são sentimentos é que desencadeiam o objeto de regulação do Direito: a união. Portanto, todas as espécies de vínculos de natureza afetiva merecem regulamentação do estado e segurança jurídica proporcionada pelo mesmo. Proporcionando, pensão alimentícia, herança, assim como tantos outros benefícios que o direito pode e deve resguardar.

Conclusão

É notória a presença de relações homossexuais em toda a historia da sociedade. Faz-se notório também o reconhecimento da transição deste de simples relações entre pessoas do mesmo sexo, para o fator constituinte de uma nova forma de entidade familiar que veio a surgir, a família baseada em uma relação homoafetiva. Nesta, o afeto é o laço que os faz ser reconhecidos como uma família.

Tal nova entidade familiar, presente e de grande expressão na nossa sociedade, por não ser reconhecida legalmente, acaba por ter prejuízos no que diz respeito ao ferimento de direitos dos participantes desta. Por conta disso, há uma necessidade que o Direito se modifique e acompanhe as mudanças sociais, sob a pena de acabar se tornando ineficaz e até mesmo injusto.

Por tudo demonstrado no presente trabalho, e com base em princípios constitucionais, faz-se claro que a o não reconhecimento desta esta por vir a ferir tais princípios; estes, mesmo que de maneira indireta, nos mostram que a tutela de tal entidade familiar não seria apenas legitima, como extremamente necessária; pois sem esta, direitos individuais estão sendo feridos.


[1] IVONE COELHO DE SOUSA – UMA INSTITUIÇÃO RECONHACIDA APUD MARIA BERENICE. P 108

[2] DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva: preconceito e a justiça 4° Ed – SP: Revista dos Tribunais, 2009

[3]  GOMEZ, ORLANDO apud DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5: Direito de família. 18° Ed- SP: Saraiva ,2002. Pg 22

[4] TARTUCE, Flávio. Novos princípios do direito de família brasileiro. Pg.2

[5] MELO, Edson Teixeira de. Princípios constitucionais do Direito de Família.

[6] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. V. VI, Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2005.

[7] MELO, Edson Teixeira de. Princípios constitucionais do Direito de Família.

[8] AURVALLE, Luis Alberto  D’ Azevedo. Apud DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva : o preconceito e a justiça – 4° Ed.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2009.pg 128