Os poderes das Agências Reguladoras: Qual a real extensão de seu poder normativo?

 

 

 

Isabel Siqueira Sepúlveda Figueiredo[1]

 

Resumo

O presente artigo pretende demonstrar a forma com que os poderes das agências normativas se inserem no contexto da intervenção do Estado na economia, na medida em que a nova conjunção histórica propicia a abertura dos mercados para que empresas privadas pudessem atuar na seara até então controlada exclusivamente pelo Poder Público. Em especial, para a abordagem da temática em apreço, serão analisadas as origens das Agências Reguladoras, assim como sua estruturação, natureza jurídica e funções, para enfim se alcançar o cerne da questão por meio do estudo dos poderes das Agências.

 

Palavras-chave: Agências Reguladoras. Poder Normativo. Estado Democrático de Direito

 

  1. 1.    INTRODUÇÃO

O surgimento das Agências Reguladoras no ordenamento jurídico brasileiro deu-se em um momento em que o País passava por grandes transformações sociais, econômicas e políticas. Em períodos anteriores à década de 90, o Estado começa a perceber que não mais seria possível realizar uma atuação exaustiva e integral em todos os setores da sociedade.

Um Estado inflado, que acumula funções em todos os setores não seria capaz de desempenhar suas amplas atribuições de modo satisfatório. Dessa forma, é a partir da década de 90 que passam a ser transferidos à iniciativa privada alguns setores da economia, surgindo então o chamado Estado Regulador.

Neste contexto nascem as Agências Reguladoras, institutos originariamente presentes no direito americano e que foram paulatinamente incorporados à realidade brasileira, contribuindo significativamente para a mudança no perfil do Estado e da Administração Pública no Brasil.

  1. 2.    ORIGEM DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

As primeiras notícias de institutos semelhantes às agências no Direito Comparado remontam ao final do século XIX, nos Estados Unidos da América, através da atuação do Presidente Cleveland, que objetivava a regulação do setor ferroviário e demais aspectos comuns aos transportes: “em 1887, com a criação da Interstate Commerce Comission, instituída para a regulação dos serviços interestaduais de transporte ferroviário e tida como a primeira agência reguladora independente norte-americana” (BINENBOJM, 2008, p. 247).

No entanto, quando do surgimento das agências reguladoras, o Brasil vivia um presenciava um cenário oposto ao dos Estados Unidos. A intensificação da política neoliberal implicava em maior autonomia do mercado. Dessa forma, as agências surgiram em conjunto com a onda de privatizações iniciadas pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, na década de 1990. (BINENBOJM, 2008, p. 272-273).

De fundamental importância são as observações de Gustavo Binenbojm (2008)

 

A atração do setor privado, notadamente o capital internacional, para o investimento nas atividades econômicas de interesse coletivo e serviços públicos objeto do programa de privatizações e desestatização estava condicionada à garantia de estabilidade e previsibilidade das regras do jogo nas relações dos investidores com o Poder Público.

Na verdade, mais do que um requisito, o chamado compromisso regulatório (regulatory commitment) era, na prática, verdadeira exigência do mercado para a captação de recursos. (BINENBOJM, 2008, p. 272).

 

A Emenda Constitucional nº 05, de 1995, alterou a redação do art. 25, parágrafo 2º da Constituição da República de 1988 a fim de permitir a atuação de empresas privadas em serviços que anteriormente só podiam ser prestados por empresas estatais, como por exemplo, a distribuição de gás canalizado. Nesta mesma esteira vem a EC nº 09, que pôs fim ao monopólio estatal da produção do petróleo e gás natural.

É justamente neste contexto histórico no qual o Estado passa a descentralizar sua atuação que surgem as agências reguladoras, instituições voltadas para a regulação de determinados setores da economia, dotadas de autonomia e amplos poderes de fiscalização.

 

  1. 3.    ESTRUTURA E NATUREZA JURÍDICA

O legislador optou por enquadrar as agências reguladoras no gênero autarquia, considerada como pessoa jurídica de direito público. Porém, em virtude de algumas características que possuem e que acabam por diferenciá-las dos demais integrantes da Administração Indireta, são consideradas autarquias de regime especial, principalmente porque gozam de maior autonomia em face da Administração Pública.

O referido regime especial das agências compreende um conjunto de privilégios específicos, com vistas à consecução de suas finalidades, dentre os quais se destacam a estabilidade de seus dirigentes (que possuem mandato fixo e maior autonomia política frente à Administração Direta), a ampliação da autonomia financeira (auferem renda mediante outras fontes de arrecadação com liberdade de aplicação) e o poder normativo, que será objeto de análise mais detida posteriormente.

A título de complementação, importa salientar que atualmente existem no ordenamento jurídico brasileiro dois tipos de agências reguladoras:

a) As que exercem típico poder de polícia, impondo limitações administrativas com previsão legal, em atividades de fiscalização ou repressão, como é o caso, por exemplo, da Agência Nacional de Saúde Pública Suplementar (ANS) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

b) As que controlam e regulam as atividades que figuram como objeto de concessão, permissão ou autorização de serviço público ou de exploração de bem público, como é o caso da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e da Agência Nacional do Petróleo (ANP).

Devido à sua condição de autarquia, é fundamental que as agências sejam criadas por lei, como determina o art. 37, XIX da Constituição Federal:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

XIX - somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação;

Assim como sua criação, sua extinção também só pode se dar através de lei específica e por motivos de interesse público. As leis instituidoras disciplinam uma série de prerrogativas jurídicas, com o objetivo de conferir uma maior autonomia técnica, orçamentária e jurídica que as outras entidades autárquicas não possuem. Outra peculiaridade no que tange à natureza jurídica das agências reguladoras diz respeito à estabilidade de seus dirigentes, ou seja, seus diretores são indicados pelo Presidente da República após aprovação pelo Senado Federal para exercerem mandato fixo que não necessariamente coincide com o mandado presidencial. Dessa forma, apesar de possuir um cargo com indicação política, os dirigentes não podem ser demitidos livremente, mas somente após processo condenatório transitado em julgado.

Neste mesmo sentido, destaca-se a doutrina de Alexandre Santos de Aragão:

Podemos afirmar que as competências complexas das quais as agências reguladoras independentes são dotadas fortalecem o Estado de Direito, vez que, ao retirar do emaranhado das lutas políticas a regulação de importantes atividades sócias e econômicas, atenuando a concentração de poderes na Administração Pública central, alcançam, com melhor proveito- não meramente formal- da separação de poderes, qual seja, o de garantir eficazmente a segurança jurídica, a proteção da coletividade e dos indivíduos empreendedores de tais atividades ou por elas atingidos. (ARAGÃO. 2002. p. 98)

  1. 4.    PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

A competência decisória, além do poder de fiscalização, das Agências Reguladoras reflete uma de suas características mais importantes, que se perfaz por meio de sua função regulamentar. Estas agências possuem competência para editar atos normativos que se relacionem às atividades reguladas referentes a cada setor da economia.

Segundo resta claro na doutrina brasileira, este poder normativo conferido às agências pode ser perfeitamente compreendido à luz do Princípio da Separação de Poderes, tendo em vista que a Constituição da República atribui competência normativa para os demais poderes, não se limitando ao Poder Legislativo. Principalmente no que tange à regulamentação e administração de seus próprios entes.

Dessa forma, entende-se por poder normativo aquele conferido à Administração para, mediante "expedição de decretos e regulamentos, oferecer fiel execução à lei" (SPITSCOVSKY, Direito Administrativo, 2005, p. 90).

Neste momento, insta destacar a lição de Maria Sylvia Di Pietro:

O poder regulamentar é privativo do chefe do Executivo (art. 84, IV da CF 88) e se exterioriza por meio de decreto. Ele somente se exerce quando a lei deixa alguns aspectos de sua aplicação para serem desenvolvidos pela Administração, ou seja, quando confere certa margem de discricionariedade para a Administração decidir a melhor forma de dar execução à lei. Se o legislador esgotou a matéria, não há necessidade de regulamento (DI PIETRO, 2008, p. 79)

Na contemporaneidade, muito se discute acerca desta atribuição de poder normativo às agências reguladoras, na doutrina brasileira é possível identificar dois posicionamentos divergentes. Os questionamentos acerca do poder normativo deferido a essas agências se devem em grande parte à originária influência norte-americana, uma vez que, naquele país (Estados Unidos da América), tais agências possuem considerável liberdade legiferante.

Há autores que defendem que seu poder normativo deve se limitar à elaboração de regramentos de caráter estritamente técnico e econômico, restritos ao seu campo de atuação, sem invasão das matérias reservadas à lei, sob pena de violação ao princípio da legalidade. Como desdobramento dessa posição que atualmente prevalece, parte da doutrina enfatiza abusos temerários a serem perpetrados por esses entes. Nesse sentido se posiciona Celso Antônio Bandeira de Mello:

Desgraçadamente, pode-se prever que ditas "agências" certamente exorbitarão de seus poderes. Fundadas na titulação que lhes foi atribuída, irão supor-se - e assim o farão, naturalmente, todos os desavisados - investidas dos mesmos poderes que as "agências" norte-americanas possuem, o que seria descabido em face do Direito Brasileiro, cuja estrutura e índole são radicalmente diversas do Direito norte-americano (MELLO, 2001, p. 134).

Maria Sylvia Di Pietro compartilha deste entendimento e expressa que a competência reguladora das agências, inclusive para aquelas dotadas de fundamento constitucional devem limitar-se “aos chamados regulamentos administrativos ou de organização, só podendo dizer respeito às relações entre os particulares que estão em situação de sujeição especial ao Estado” (DI PIETRO, 2008, p. 407)

Assim, argumenta-se que as Agências Reguladoras só atuariam no campo da regulação, especificando aspectos técnicos e econômicos das normas legais e atos normativos expedidos pelo Poder Executivo, estando impedidas de abordar a regulamentação, que seria exclusiva do Poder Legislativo no seu ofício precípuo de atualizar e inovar o ordenamento ou do Poder Executivo, como Administração Direta, quando da expedição de atos visando fiel execução à legislação, dentro dos limites nela definidos.

Em posição diversa estão doutrinadores que acreditam ter as agências reguladores amplo poder normativo. Neste contexto, destaca-se o posicionamento de Alexandre Santos de Aragão, a necessidade de “descentralização normativa, principalmente de natureza técnica, é a razão de ser de entidades reguladoras independentes, ao que podemos acrescentar ao fato de a competência normativa, abstrata ou concreta, integrar o próprio conceito de regulação” (ARAGÃO, 2002, p. 113). Porém este mesmo autor salienta a necessidade de imposição de limites ao poder normativo das agências:

Todavia, essa possibilidade do poder normativo ser conferido em temos amplos e às vezes implícitos, não pode isentá-los dos parâmetros suficientes o bastante para que a legalidade e/ou constitucionalidade dos regulamentos seja aferida. Do contrário, estaríamos, pela inexistência de balizamentos com os quais pudessem sem contrastados, impossibilitando qualquer forma de controle sobre os atos normativos da Administração Pública, o que não se coaduna com o Estado de Direito. (ARAGÃO, 2002, p. 115)

 

 

 

  1. 5.    CONCLUSÃO

 

Muito se discute sobre o poder normativo das agências reguladoras, tendo sido inclusive objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1668 do Distrito Federal, que acabou por reconhecer a competência normativa à Agência Nacional de Telecomunicações. Porém, segundo doutrina majoritária, este poder normativo não é ilimitado, devendo observar os parâmetros de legalidade e constitucionalidade no ordenamento pátrio. Caso contrário, a abrangência do poder conferido às agências poderia ser interpretada como abusiva, conforme o entendimento adotado no sentido de consistir ou não determinada matéria reservada à elaboração legislativa ou passível de abordagem direta por meio de meros atos administrativos.

Dessa maneira, prevalece, em princípio, o entendimento de que incumbe ao Poder Legislativo a criação das leis (legislar e regulamentar), que serão posteriormente executadas pelo Executivo, mediante atos administrativos que necessariamente devem ser pautados nos limites legais. Quanto aos aspectos técnicos e econômicos desta regulação, cabe ao poder normativo das agências reguladoras especificar.

Neste sentido, assevera-se que sem o balizamento constitucional e legal de sua produção normativa a atuação das agências não poderia jamais convergir com o princípio da separação dos poderes, e principalmente, com os fundamentos do Estado Democrático de Direito.

  1. 6.    ABSTRACT

This article seeks to demonstrate the way in wich the power of regulatory agencies fit into the contexto of state intervention in the economy, to the extent taht the new historical conjunction promotes the openning of the markets so that the private companies could act in spaces until now exclusively controlled by the Government. In particular, to approach the theme, Will be analized the origins of regulatory agencies, as well as its structure, legal nature and functions, to finally reach the heart of the matter by studying the powers of agencies

 

  1. 7.    Key-words: Regulatory Agencies. Normative Power. Democratic State of Law.

 

  1. 8.    REFERÊNCIAS

ARAGÃO, Alexandre Santos de. As Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

 

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: Direitos

Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL. Vade Mecum/Obra Coletiva. 5ª Edição. Revista, Ampliada e Atualizada. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2010

 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22 ed. São Paulo: Atlas,

2008.

FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito econômico. 5. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 430 p. 

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001. 870p. 

SPITZCOVSKY, Celso. Direito Administrativo. São Paulo: Damásio de Jesus, 2005.



[1] Graduanda em Direito na Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Contato: [email protected]