Os Outros

Ante o vazio de políticas para a população afro-brasileira, notadamente para a população quilombola, era previsível a reação de uma pequena parcela da sociedade brasileira contra a certificação de terras de quilombos, e sua conseqüente demarcação, bem como as denúncias e tentativas de levar ao descrédito a maior ação governamental reparatória do Brasil.

2. Eis a nossa contradição: de um lado está o avanço da legislação brasileira que, a partir de procedimentos jurídicos e administrativos, passa a reconhecer a cidadania aos quilombolas e legitima a posse da terra em que vivem e que lhes pertence, até então, de fato, mas não de direito. No cerne da questão estão as potencialidades e particularidades dessas comunidades que tem suas sobrevivências físicas, identitárias e cultuais visceralmente ligadas à Terra, e que sobreviveram aos modos peculiares sobre o qual a nação brasileira foi erigida: violência, negação e reificação do outro, em proveito de interesses individuais.

3. Do outro lado está a desconsideração dos avanços do Estado por uns e a tentativa de se permanecer auferindo lucros sobre a exclusão de tantos outros.

4. Para sabermos quem são uns e quem são outros, basta lembrar que reconhecemos bem (os livros e os filmes nos ensinaram!!) o que é um imigrante, um cigano, um índio; como deve ser seu cabelo, a cor da pele; sabemos de cor onde ele mora, o que come, onde dorme, quais seus hábitos, quais palavras incorporamos ao nosso idioma vernáculo.

4. Mas não sobre os quilombolas.

5. Os livros e os filmes não nos ensinaram que os Quilombos são fatos históricos datados, e que mesmo após a Lei de 1888, seus descendentes sobreviveram e ainda hoje habitam este País. Não ensinaram também que para maioria dos quilombolas, a condição colonial não acabou: continuam negados, violentados e reificados pela política, pela imprensa, pelas disciplinas escolares, pelas instituições – em proveito de interesses de indivíduos que tem o estranho poder de fazer uns falarem e outros, calarem.

6. Essa questão não está nos livros – apesar da Lei 10.639/03 -, não cai no vestibular- apesar das cotas-, nem vira seriado de TV – apesar da epopéia que evoca.

7. O x da questão é que o quilombo não é um grupo de indivíduos que estão cansados da poluição e do burburinho dos centros urbanos e resolvem morar no mato, de forma bucólica e pitoresca, como querem tantos desbravadores que, via satélite , admiramos o desprendimento. Também não é uma legião de fugitivos ou desajustados que não tem capacidade para conviver com as novas tecnologias, com as leis e rituais cotidianos dos centros urbanos, e que por isso vivem em relativo isolamento. Não se trata de grupo dissidente de índios, de aborígenes, de bisnetos naturais das Terras brasileiras. Nem tampouco é um agrupamento composto por trabalhadores rurais pobres, de diferentes origens e lugares, que não detém os meios de produção dos bens e produtos que geram para outrem, e que, por isso, se juntam para reivindicar a posse da Terra – pelo que se deduz que quilombo não é acampamento de sem-terra.

8. Quilombo não é taba nem reserva indígena, como também não é acampamento de cigano, e menos ainda ação de sem-terra, e em não sendo qualquer dessas opções mais comuns e aceitas pelo imaginário brasileiro, sua existência enquanto grupo não está fundada no nomandismo, em movimentos migratórios, nem em uma escolha casual, política ou mesmo religiosa do lugar onde vivem.

9. Para falar de Quilombo é prudente ritualizar o ato de narrar e retomar o fio da história. Reza a lenda que numa terra distante chamada Brasil havia, no século XVII, uma legião de homens africanos e descendentes de africanos trazidos para trabalhar como escravos nas lavouras e nas minas do Brasil. Dizem que em noites aflitas, fugiam das fazendas, das senzalas, dos porões, para viver em liberdade nas matas distantes: lugares improváveis, sítios longínquos, íngremes onde construíam suas casas, vilas e espaços comunitários. Nesses lugares passavam a viver com pouca ou nenhuma comunicação com as demais civilizações, tanto que o estatuto da escravidão acabou em 1888 e muitos quilombolas sequer ficaram sabendo. Como hoje, ainda não sabem que o Estado Brasileiro reconhece seu direito à cidadania plena, incluindo o direito à Terra, à educação, à saúde e à auto-atribuição, conforme todo indivíduo.

10. Viviam do que efetivamente produziam – da cultura de subsistência e do cultivo de gêneros de primeira necessidade para a manutenção do corpo e da alma. Para o corpo: derivados da mandioca e do coco, das raízes e dos tubérculos; da pesca e da caça. Para a alma: o culto aos deuses e aos ancestrais, como os ritos ensinados às pressas, à guisa de despedidas, nos caminhos de fuga, nos lamentos dos tumbeiros; nos enterros em pleno mar. Para a alma, a recriação de cantigas, danças, lutas, artefatos e histórias aprendidas de geração em geração, nas noites de tristeza ou de celebração.

11. Reza a lenda que um dia, um homem desses, imbuído de uma sanha indomável abriu clareira e liderou, no Brasil, o maior contingente de negros livres antes da abolição de que se tem notícia. Em 1695 teria ele caído em combate, após mais de 50 anos de consolidação de uma nova civilização, pautada na resistência, no comunitarismo e na liberdade. Quilombo: Um modelo de comunidade que ameaçava a proposta absurda da sociedade colonial. Proposta frágil por que pautada na negação da humanidade do outro –, e opressora – por que voltada para a exploração e violação de toda possibilidade de integridade desse outro.

12. Nós brasileiros, pacíficos e cordatos que somos, não temos dúvidas sobre a verídica existência de 300 anos de escravidão no Brasil, nem da marginalidade imposta aos descendentes de escravos. Tanto daqueles que se isolaram nas matas para fugir do regime escravista, quanto dos outros que permaneceram nas vilas e cidades, prestando serviços do modo possível.

13. Também não admitimos dúvidas sobre a indiferença dos sucessivos governos e de parte da sociedade civil, para com esse contingente de crianças negras que insistem em morrer de falsemia, de sarampo e de lúpus antes dos cinco anos de vida, aumentando as notícias ruins sobre o Brasil nos noticiários estrangeiros. Não duvidamos da existência desses milhares de jovens negros que lotam as favelas, as penitenciárias e as estatísticas de morte violenta e de desemprego, nos causando embaraço nos estacionamentos dos shoppings centers. Não consideramos alucinação nosso convívio complacente e silencioso, em nossas casas, com essas mulheres negras seqüeladas pela eclampsia, pela hipertensão e pelos miomas. E definitivamente percebemos, com asco, a presença, na esquina do nosso escritório, desses velhos negros, com seus olhos cozidos, azuis de glaucoma e suas pernas embrulhadas em panos que não cicatrizam nunca.

14. Para além de nós, os outros existem e nós os sabemos: não importa de que modo se apresentem. Sabemos das especificidades, dos potenciais e das fragilidades. Reconhecemos neles suas histórias possíveis e – admitamos – temos dificuldades em concebê-los distantes de um passado marcado pela exclusão.

15. Nesse mês de Novembro, não vamos denunciar, nem reclamar. Talvez constatar, e se tivermos coragem de comentar a presença e as condições em que se encontram os outros – indizíveis 50% da população brasileira – já será uma ação importante para sairmos do (in)cômodo lugar de sermos nós mesmos, tão solidários para com todo mundo, mas incapazes de aceitar a possibilidade de igualdade com o outro.


Juscelina Nascimento
Salvador, 18 nov 2008